Honrar a Deus

Abraham Skorka
A Bíblia fala do pesar pela morte de uma pessoa querida usando o termo “avelut”, ou luto. Em Génesis 50, 10-11 é descrito o “avelut” dos filhos de Jacob pela morte do seu pai. Deuteronómio 34, 8 observa que os Benei Israel (Filhos de Israel) choraram durante trinta dias a morte de Moisés. O seu choro exprimia o seu “avelut” pelo guia e o mestre que os tinha deixado.
“Avelut” é a manifestação do pesar pela perda de uma pessoa, bem como o processamento psicológico e espiritual da ausência física de alguém que estava entre nós, mas cuja alma regressou agora a Deus. É o processo através do qual o falecido é incorporado na memória daqueles que prosseguem no caminho da vida. Em circunstâncias particulares ou em momentos específicos, as recordações dos defuntos tornam-se uma visão mais completa de toda a sua vida.
O adeus que o mundo inteiro deu ao Papa Francisco foi um testemunho eloquente do respeito que tinha conquistado com a sua humildade e honestidade. Ainda que houvesse quem pudesse discordar de algumas das suas opiniões e posições, todos sabiam que se tratava de um líder que procurava incansavelmente a paz e a justiça e que se dedicava totalmente a ajudar os necessitados em todas as comunidades.
A imagem dos presidentes Trump e Zelensky envolvidos num diálogo aberto na Basílica de São Pedro, depois de terem oferecido a sua homenagem ao corpo sem vida de Francisco, é profundamente comovente. Pode ser vista como a poderosa concretização do empenho da sua vida a favor do princípio de “diálogo, diálogo, diálogo”. Naquele momento, ambos os líderes foram inspirados pelo legado global de Jorge Bergoglio. À sua maneira, estavam a cumprir o seu “avelut”.
Para além das divergências com alguns líderes judeus relativamente à guerra iniciada a 7 de outubro, hoje, olhando para trás para o quadro geral da vida de Bergoglio, recordamos também as suas reflexões sobre a relação especial entre cristianismo e judaísmo, resumidas num capítulo particular da sua Exortação apostólica Evangelii gaudium (nn. 247-249). O seu profundo empenho pessoal para combater o antissemitismo e o seu sonho de paz entre Israel e os seus vizinhos farão sempre parte da recordação da sua herança.
O seu último livro, Esperança. A autobiografia é uma reflexão autobiográfica que sugere que Francisco sabia que se aproximava o momento da sua partida. Falando da nossa amizade pessoal, explicou exatamente qual era a certeza que nos unia: a convicção de que honrar Deus significa honrar a humanidade. Por mais de duas décadas fomos muito próximos, procurando — através das nossas respetivas tradições espirituais — formas de honrar as pessoas que nos rodeiam. Fiz parte da delegação do Vaticano por ocasião da sua peregrinação à Terra Santa e pediu-me para estar ao seu lado quando visitou Auschwitz-Birkenau. A história e o sentimento judaicos sempre lhe foram caros. Reconheceu a sua importância, e a nossa amizade e o nosso trabalho em conjunto estavam embebidos desta preocupação.
O livro dos Provérbios 10, 7 afirma que a recordação dos justos é uma bênção. A sua memória inspira-nos e desafia-nos, levando-nos a empenharmo-nos pelos seus valores, e é aí que reside a bênção. Em Provérbios 20, 27 lemos: «O espírito do homem é lâmpada do Senhor, que penetra todos os segredos do coração». Jorge Mario Bergoglio dedicou a sua vida a Deus e promoveu os valores bíblicos entre os membros da sua congregação. Ele foi uma lâmpada que manteve viva a chama da espiritualidade e da santidade, iluminando um caminho que nunca se desvanece.