Um país devastado por dois anos de guerra

 Um país devastado  por dois anos de guerra  POR-005
30 abril 2025

Giada Aquilino

Quase 13 milhões de deslocados. Mais de 3 milhões de refugiados que fugiram para os países limítrofes, sobretudo para o Chade, o Egito e o Sudão do Sul. Dezenas de milhares de mortos, num balanço extremamente difícil de quantificar e verificar devido à profunda insegurança no terreno. São estes os contornos da guerra que há dois anos, desde 15 de abril de 2023, ensanguenta o Sudão, opondo o exército de Cartum (Sudanese armed forces, Saf), sob as ordens do general Abdel Fattah al-Burhan, e os paramilitares das Forças de suporte rápido (Rapid support forces, Rsf), liderados pelo general Mohamed Hamdan Dagalo. A onu definiu-a como a maior crise humanitária do mundo. «Trata-se de um conflito que, infelizmente, não está minimamente perto do fim», sublinha Irene Panozzo, analista política e antiga advisor do representante especial da ue para o Corno de África, recordando o que evidenciou o Papa Francisco há mais de um ano: no início de 2024 o Pontífice tinha constatado dolorosamente como não se visse «uma saída» para o fragor das armas no Sudão, para depois continuar incessantemente, mesmo durante a sua recente hospitalização, a rezar pela paz no país africano.

«Por detrás da eclosão da guerra», explica Panozzo, «está uma luta pelo poder entre duas forças que na verdade faziam parte da mesma arquitetura de segurança do regime de Omar al-Bashir», que durou trinta anos até 2019. «Uma é o exército nacional, a parte mais institucional do sector da segurança, a outra é a das Rapid support forces, a força paramilitar nascida, na realidade, há mais de duas décadas no Darfur, mobilizada e armada pelo regime central para combater a guerra no terreno. Em conjunto, estas duas forças depuseram al-Bashir em abril de há cinco anos, pelo que nestes dias recorre também esse aniversário, depois tentaram manter o poder cedendo a uma coabitação com as almas — partidos políticos e sociedade civil — que tinham animado a “revolução” contra al-Bashir. Em seguida depuseram o primeiro-ministro civil em outubro de 2021, dando início a uma competição direta pelo poder».

Nas últimas semanas ao avanço do exército em Cartum contrapõe-se uma consolidação da Rsf no oeste: as forças de al-Burhan controlam maioritariamente o norte e o leste e os paramilitares estão presentes na região ocidental de Darfur e em algumas partes do sul. Um posicionamento no terreno que leva a prefigurar uma divisão de facto do país, a qual, sublinha a analista, «já existe desde que a guerra iniciou, com a frente que continua a mudar». Nos últimos meses, o exército «conseguiu reconquistar o terreno que tinha perdido no primeiro ano e meio de guerra e no início de março foi capaz de retomar uma grande parte de Cartum, Bahri e Omdurman, que formam um grande conglomerado urbano e metropolitano». Por outro lado, as Rsf «parece estar a concentrar-se mais no Darfur, uma região grande quanto a França: pretende tomar a capital do Darfur setentrional, El Fasher, sitiada desde maio do ano passado, com consequências humanitárias devastadoras para a população. Para além disso os paramilitares lançaram recentemente ataques com drones na parte mais setentrional do país, em direção à fronteira com o Egito, que até agora não tinha sido tocada pelos combates».

Ambos os lados da guerra não são porém «atores únicos», mas expressão de «coligações de grupos diferentes», precisamente quando o Movimento islâmico — o núcleo duro do regime de al-Bashir — procura reerguer-se. «É certo que o Movimento islâmico sudanês voltou a erguer a cabeça logo após o golpe de Estado de 2021 e depois com o início da guerra. Mas, neste quadro, há toda uma série de grupos armados, milícias de natureza islamista, jihadistas por sua própria definição, como por exemplo a al Bara Ibn Malik Brigade, que combatem juntamente com o exército, bem como uma série de outras milícias locais que também mudaram de lado mais do que uma vez. Há uma em particular, a das Sudan shield forces, que no início da guerra estava com o exército, depois passou para as Rsf e permitiu aos paramilitares de tomar Wad Madani, capital do Estado de Al Jazirah, e depois voltou para o lado do exército, permitindo às forças armadas sudanesas de retomar a cidade. O mesmo se aplica obviamente às Rsf, que se aliaram a toda uma série de outros grupos de autodefesa, milícias de base tribal, num prolongamento do que tem sido dramaticamente o modelo de combate das guerras civis no Sudão desde o início dos anos Oitenta».

Ambas as partes beligerantes foram acusadas pela onu de crimes de guerra e contra a humanidade. As Rsf também de genocídio. «As verificações são muito difíceis porque, de facto, o acesso a todas as zonas de guerra é muito limitado. Houveram investigações, sobretudo por parte de Human Rights Watch e de outras organizações similares conduzidas através de entrevistas a refugiados que chegaram ao Chade vindos do Darfur. As acusações de massacres de matriz genocida feitas às Rsf referem-se em particular aos combates que tiveram lugar em El Geneina, capital do Darfur ocidental, que fica muito perto da fronteira com o Chade. No entanto, naquele caso tratava-se de combates que já tinham provavelmente origem na guerra do Darfur» do início dos anos Dois mil, com um balanço de mais de 300.000 mortos. «Depois da reconquista de Wad Madani por parte do exército, houveram também acusações contra as milícias aliadas ao exército, por ataques com motivações étnicas contra populações não árabes ou consideradas potenciais apoiantes das Rsf. E nos últimos dias o Alto comissário das Nações Unidas para os direitos humanos, Volker Türk, afirmou que a onu tem evidências de assassínios extrajudiciais levados a cabo em algumas partes de Cartum depois de o exército e as milícias aliadas terem tomado o controlo da capital».

Mais de metade da população — 26,5 milhões de sudaneses — vive numa condição de carência de alimentos severa, com dois milhões de pessoas que enfrentam uma insegurança alimentar extrema e 320.000 que já passam fome, enquanto a carestia foi declarada em várias zonas do país, entre as quais o campo de refugiados de Zamzam (Darfur do Norte). Neste contexto de emergência, várias ongs, entre as quais os Médicos sem fronteiras, denunciaram que o acesso às ajudas humanitárias tem sido repetidamente utilizado pelos beligerantes como uma arma de guerra. «Infelizmente, esta é uma longa “tradição” sudanesa e não só. Muitas vezes, a ajuda humanitária, que de acordo com o direito internacional deveria ser sempre garantida, na realidade é bloqueada e dirigida para as comunidades e as áreas sob o controlo de uma parte e portanto retirada àqueles que vivem em zonas controladas pelo adversário». Num país rico de ouro, «mas também de outros recursos, como o gado, sobretudo dromedários e bovinos, bem como de colheitas, do sésamo ao algodão», no contexto de um controlo do terreno que se torna fundamental tanto para os dois principais partidos como para os vários grupos a eles aliados «para depois explorar estes recursos locais e manter o esforço bélico», o que nunca parou desde abril de 2023 até hoje foi o afluxo de armas. O assunto voltou à ribalta nestes dias com o confronto perante o Tribunal internacional de justiça de Haia entre os representantes de al-Burhan e os dos Emirados Árabes Unidos: a delegação de Cartum acusa Abu Dhabi de ter violado a Convenção das Nações Unidas sobre o genocídio por um alegado apoio aos combatentes das Rsf, enquanto os Emirados Árabes Unidos rejeitam todas as acusações. Contudo, o tribunal decidiu adiar o seu parecer sobre o caso para uma data posterior. «A aliança entre Rsf e os Emirados Árabes Unidos, sempre negada por Abu Dhabi, foi reiterada por muitos analistas, por uma série de inquéritos de jornalistas e de outras organizações, que falam, entre outras coisas, de operações humanitárias pagas pelos Emirados, através do Chade, para levar fornecimentos às Rsf no Darfur. Por outro lado, o exército nacional pode contar com a aliança do Egito e, em parte, da Arábia Saudita, embora Riade tenha mantido um perfil mais discreto. Depois, no último ano e meio, precisamente devido à nova relevância adquirida pelo Movimento islamista, foram reativados os contactos com o Irão, que parece ter vendido armas ao Porto Sudão, e os contactos com a Turquia e o Qatar, países mais próximos da galáxia da Irmandade muçulmana, bem como com a Rússia».