As guerras perenes do Sudão

 As guerras perenes do Sudão  POR-005
30 abril 2025

Giulio Albanese

Para compreender a complexidade do cenário sudanês, é necessário refletir sobre o passado, pelo menos desde que, em agosto de 1955, eclodiu o primeiro conflito entre o Norte e o Sul do Sudão, ainda antes de ser proclamada a independência da coroa britânica e sancionada a criação de um Estado único. A guerra civil foi desencadeada pelo motim das tropas posicionadas na cidade de Juba, uma tentativa extrema de separar o destino das regiões meridionais do resto do país, que se tornaria um Estado árabe no dia 1 de janeiro seguinte. Após sucessivos golpes de Estado e crises institucionais, num país em que a vida política sempre se confundiu com a ação das corporações islâmicas, em acordo ou, mais frequentemente, em conflito entre elas, em março de 1972, foi assinado em Adis Abeba um acordo entre o governo do então presidente Jafaar Nimeiri e os rebeldes Anya Nya, comandados pelo coronel pró-israelita Joseph Lagu, que reconhecia a autonomia do Sul, instalando em Juba um parlamento e um Alto Conselho Executivo para agir como governo local.

A paz, embora sempre instável, durou apenas uma década, uma vez que a questão do Sul continuava a ser muito disputada. No clima de desafio Leste-Oeste da “guerra fria” do início dos anos 80, vieram ao de cima os programas de desenvolvimento que estavam a ser estudados no Alto Nilo, onde tinham sido descobertas grandes jazidas de petróleo. Os habitantes do Sul exigiam que a refinação do petróleo bruto fosse efetuada na região meridional, mas Cartum prefigurava uma estratégia monopolista nos seus planos. Não foi por acaso que, nessa altura, a companhia petrolífera Chevron elaborou um plano de exploração da bacia de Bentiu, 120 quilómetros a oeste de Malakal, enquanto a Snam-Progetti, uma empresa italiana que fazia parte da Eni, ganhou o contrato de construção de um oleoduto para levar o petróleo bruto até Porto Sudão, no Mar Vermelho.

Como se isso não bastasse, os meridionais desconfiaram de um projeto de engenharia colossal, o canal de Jonglei, concebido para recuperar as vastas zonas pantanosas junto ao Nilo, recuperando para fins agrícolas a água que se perdia por evaporação. O canal tornou-se um dos alvos da guerrilha, conhecida como Anya Nya ii, liderada inicialmente por Cherubino Kwanyin Bol, a quem sucedeu pouco depois o coronel John Garang. Foi este último que, em 1983, organizou política e militarmente o Exército Popular de Libertação do Sudão (spla). A gota de água foi certamente a decisão do regime de Nimeiri de alargar a lei islâmica a todo o país, com a promessa de que os “não-muçulmanos” não veriam os seus direitos diminuídos. Desde então, assistiu-se à segunda guerra civil, que causou morte e destruição nas três administrações separadas de Equatoria, Alto Nilo e Bahr el-Ghazal. Independentemente do golpe de Estado de 6 de abril de 1985, sem derramamento de sangue, que depôs Nimeiri quando este se encontrava de visita aos Estados Unidos (o destino da sua viagem teve, segundo os observadores, um valor emblemático das alianças existentes), o Spla revelou-se ao mundo como um movimento antigovernamental de inspiração marxista-leninista, com o apoio incondicional do “Negus Vermelho”, o líder etíope Menghistu Haile Mariam.

Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, Garang procurou dar ao spla uma nova imagem internacional, com o apoio do governo de Washington, evocando inclusive as Cruzadas no seu projeto político-militar, dando ao seu empenhamento, em particular, uma conotação religiosa em defesa dos cristãos do Sudão do Sul, uma componente minoritária, em todo o caso, não só no Norte mas também no Sul do país, território fortemente animista. Com a dissolução progressiva do regime soviético, a fação sudanesa da Irmandade Muçulmana, liderada por Hassan el-Turabi (um intelectual pouco dado a cargos públicos que assumiu o papel de ideólogo do fundamentalismo islâmico sudanês e de eminência cinzenta do regime), apoiou mais um golpe de Estado, a 30 de junho de 1989, desta vez do general Omar Hassan Ahmed el-Beshir, inspirador de uma política declaradamente antiocidental.

Durante o primeiro mandato presidencial de Bill Clinton, o Sudão foi incluído na lista dos “Estados Párias” considerados pelos Estados Unidos como apoiantes do terrorismo. O governo de Cartum foi acusado de ser um dos principais esconderijos de Al-Qaeda fundada por Osama bin Laden e de acolher membros do Hezbollah libanês, da Gama’at al-Islamiyya egípcia, da al-Jihad, da Jihad Islâmica Palestiniana, do Hamas e da organização Abu Nidal. Após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, o Sudão condenou todas as ações violentas contra civis e, desde então, o regime de el-Beshir tem-se esforçado por se distanciar — formalmente, é claro — do terrorismo. Entretanto, apesar de mais de dois milhões e meio de pessoas terem perdido a vida no segundo conflito sudanês, a voz da sociedade civil — igrejas, associações, grupos, movimentos ecuménicos — não foi quase sempre ouvida porque estava fora das regras da chamada “realpolitik” centrada no teorema Clintoniano do “Trade not Aid” (“Comércio não Ajudas”).

Em vez disso, foram os interesses petrolíferos, a longo prazo, que deram substância às negociações entre o Norte e o Sul. A este respeito, o oleoduto que liga a zona rica em jazidas de petróleo a Porto Sudão foi concluído no início de 1999 graças à “China National Petroleum Corporation”, o maior investidor estrangeiro no Sudão, bem como o principal fornecedor de armas ao regime de Cartum. Em 30 de agosto do mesmo ano, o primeiro navio-tanque carregado com seiscentos mil barris de petróleo bruto partiu para a refinaria Royal Duth Shell em Singapura. No mesmo dia, o Fundo Monetário Internacional promoveu o Sudão de país “não fiável” a país “fiável”, encorajando assim os investidores e os capitais estrangeiros. Por seu lado, a administração americana de George W. Bush, que se seguiu, fez pressão para que se chegasse a um acordo entre el-Beshir e Garang, assinado em Nairobi (Quénia) a 9 de janeiro de 2005, concedendo somas avultadas a ambas as partes.

É claro, portanto, que o acordo sobre a partilha das receitas do petróleo bruto, assinado em negociações entre o governo e os rebeldes, mas não totalmente especificado em termos de fronteiras, representou e continua a representar um fator de desestabilização nas relações entre os atuais dois países. No entanto, dois anos mais tarde, em dezembro de 2013, eclodiu uma nova guerra civil entre os homens leais ao Presidente Salva Kiir Mayardit — herdeiro de Garang que faleceu a 30 de julho de 2005, quando o seu helicóptero se despenhou por razões que nunca foram efetivamente apuradas — e os seguidores do seu antagonista, Riaek Machar. O conflito terminou formalmente em 2018, mas pode voltar a eclodir após a decisão de Salva Kiir de colocar Machar sob prisão domiciliária, bem como a sua esposa, Ministra do Interior.

Entretanto, no Norte, as coisas correm de mal para pior. Há dois anos que se desenrola um confronto armado entre as Forças de Apoio Rápido (rsf) do general Mohamed Hamdan Dagalo, também conhecido por Hemedti, e o governo militar sudanês do general Abdel Fattah Abdelrahman al-Burhan; um verdadeiro banho de sangue em detrimento da população civil exausta. Também não podemos esquecer, neste contexto, o recrudescimento do conflito na região sudoeste sudanesa de Darfur, que eclodiu dramaticamente em 2003 e continua latente, tendo causado centenas de milhares de mortos e mais de três milhões de refugiados entre os grupos étnicos Fur, Masalit e Zaghawa, por forças — não formalmente governamentais, mas sob o controlo de el-Beshir — na altura denominadas “Janjaweed” (cuja etimologia se traduz provavelmente em português por “demónios a cavalo”), comandadas pelo próprio Hemedti.

Como se isto não bastasse, as relações entre os dois países estão a tornar-se incandescentes desde fevereiro passado, quando se formou uma aliança entre vários movimentos armados, os mais importantes dos quais são o rsf de Hemedti e o splm/a-n de Abdel Aziz al Hilu, que controla há anos os montes Nuba no Cordofão do Sul e vastos territórios no Nilo Azul, numa função anti-Burhan. Há que ter em conta que o splm/a-n sempre beneficiou de um apoio logístico e político especial por parte do Sudão do Sul, uma vez que teve origem no splm, o partido no poder em Juba desde a independência. Por conseguinte, os dois Sudões estão novamente em rota de colisão e contribuem para agravar a situação em toda a região. Uma verdadeira agitação ligada ao controlo dos poços de petróleo, às rivalidades políticas, étnicas e pessoais. O resultado é que o termo “sudanês” — independentemente de ser do Norte ou do Sul — se tornou, ao longo das décadas, sinónimo de “beligerante perpétuo”.