MULHER IGREJA MUNDO

Alda Merini na recordação de um teólogo seu amigo

Poesia como ressurreição

 Poesia come risurrezione  DCM-004
05 abril 2025

Alda Merini (Milão, 21 de março de 1931 - 1 de novembro de 2009) é uma das maiores poetisas italianas.  De 1964 a 1972 esteve internada num hospital psiquiátrico; depois, alternou períodos de saúde e de doença, provavelmente devidos à síndrome bipolar diagnosticada em 1967. A sua experiência deu origem a textos intensos, incluindo a sua obra-prima «La Terra Santa». Marco Campedelli, «padre Chiodo» para ela, que era seu amigo e recebia muitos dos seus poemas sob ditado telefónico, relata-o no seu livro «Il Vangelo secondo Alda Merini» (Claudiana).


Na mesa do necrotério onde se dissecam as palavras dos poetas, já não se encontrava a poesia de Alda Merini. Como que numa espécie de combustão divina, ficaram marcas de queimaduras na mortalha. Das palavras, nenhum vestígio. Assim imagino a ressurreição desta poesia impertinente, o voo do pássaro “de ventre branco e gentil” que escapa às ciladas da crítica e da religião. Alguns soltaram cães de caça para localizar o poema em fuga. Viraram de pernas para o ar os prontuários médicos de Alda, ansiosos por encontrar o código secreto das suas pegadas na doença psiquiátrica. Mas enganam-se. Aliás, deviam procurar indícios nas tragédias antigas, onde outras como ela deixaram marcas de queimaduras divinas. É a mesma “mania” que aflige as mulheres do mito: Cassandra de Ésquilo, Antígona de Sófocles, Medeia de Eurípides. Ou nas profundezas do Evangelho, onde Jesus é chamado o “louco”, o “fora de si” (ex-stasis), como está escrito na mais antiga das narrações evangélicas, a de Marcos.

O que gera espanto e até medo é a imensidão do verso que nos atinge e poderia esmagar-nos. Ou seja, as palavras que se revoltam contra a burocracia da linha, do quadrado, e fogem às inspeções.

É a doença burguesa que atingiu as palavras, sob o regime rígido do poder. Nenhum tremor, nenhuma convulsão, nenhuma “catástrofe”, como ela acreditava que Cristo tinha sido para os medíocres calculistas, pode perturbar a falsa quietude da indiferença. A poesia de Alda Merini, pelo contrário, escapou a este verdadeiro manicómio da fiscalização social e académica. Rejeitou a medida do possível a favor do excesso do impossível. Só isto lhe permitiu sintonizar-se com o “fora”, com o “excedente divino”, com a paisagem do invisível. Assim, com esta perseguição arriscada, chegou ao quarto secreto de Maria, até ver o azul da asa de um anjo e o rugido do seu motor divino. Aí Alda encontrou «a Mãe,/ aquela que comigo/ comeu a terra do manicómio/ acreditando que era pastagem divina/ aquela que se agarrou aos pés do filho/ para ser arrastada com Ele para a cruz...».

O aparente paradoxo é que Merini atingiu as alturas, não negando o corpo, mas através dos seus “teclados divinos” (David Maria Turoldo). Com efeito, é o domínio do corpo que gera o domínio da palavra. Mas é precisamente através do corpo que Alda Merini foge da prisão, dos muros altos do domínio, das cercas do “politicamente correto”.

É só assim que Alda entra no corpo da Madalena e, num plano de eixos sobrepostos, a liga à pecadora: «Bem sei, ter-me-ias estreitado ao coração/ e todas as chagas/ que estes violadores infligiram/ voltaram a fechar-se/ (...) Como ardiam as minhas feridas, Senhor/ (...) Eu estava tão intacta, Senhor,/ perante o teu olhar/ que viste e escolheste a primeira discípula» (do Cântico dos Evangelhos).

Esta sobreposição culpada, de uma visão patriarcal, em que a pecadora teria retirado a autoridade a Madalena, torna-se, na obra de Merini, uma espécie de reabilitação poética e política da mulher, humilhada e violada pelo poder, uma inclusão definitiva da mulher no espaço do divino.

A partir daqui, imagino que Merini poderia lançar a sua invetiva contra o hábito burguês de limitar os sentimentos e de expulsar o amor de casa: «Mas vós, fariseus, com os vossos insultos [...] Nunca compreendereis o que é/ uma loucura de amor», pois «penso que todos os amantes são mártires, todos os amantes estão em Cristo, todos os amantes se encontram em Deus».

Nas horas diurnas e noturnas, durante muitos anos, ouvi os ditados poéticos de Alda Merini. Era aquela imensidão celeste que nos punha em estado de inquietação misturado com uma espécie de euforia. Era cada vez um salto além da cerca, um regresso à origem da poesia ou à poesia da origem. Uma palavra incontrolada, parente da palavra divina.

Era a força divina das mulheres. Compreendi isto quando acompanhei a casa de Merini uma jovem iraniana, que fazia a tese sobre “A poesia de Alda Merini e a mística sufi” (esta história é contada numa minha mais ampla reflexão dedicada à poesia de Alda, Il vangelo secondo Alda Merini, publicada por Claudiana, Turim). Era o dia 21 de maio de 2008.  A jovem era Mahtab Ali Mohammadi Malaieri, surda e cega. Para comunicar com ela, era preciso escrever na palma da sua mão. No diálogo entre estas duas mulheres, assisti à combustão divina da poesia, queimando as suas mãos, o seu corpo rodopiante, daquele «Jesus com coração de mulher» que Alda desenhou na palma da mão de Mahtab, o mestre divino que «arrastava a sua longa cauda de noiva».

Quando o meu pai faleceu, Alda ditou-me um poema no qual a morte e o amor se procuravam mutuamente:

«Pai, o meu maior pecado/ foi recomendar-me a Deus/ para que não morresses/ (...) Já não consigo falar contigo/ Já não terei a quem contar os meus segredos/ Voltei a ser criança/ Como a morte é gigante/ perante um homem criança!» (17 de agosto de 2005).

Perante o “gigantismo” da morte, senti toda a imensidão da criança, da sua espada de lata perante o incomensurável. E a partir daí, também eu escolhi entre o “pequeno-burguês” e a medida “mínima e imensa” da poesia, entre ficar dentro do espaço do “bom senso” e o “ex-stasis”, o divino fora, a dança louca de Alda. Ainda não me arrependi!

Marco Campedelli
Teólogo e narrador, amigo de Alda Merini