MULHER IGREJA MUNDO

Yayoi Kusama e Carol Rama: o desvio como liberdade

E o estigma torna-se criação

 E lo stigma diventa creazione  DCM-004
05 abril 2025

A imagem da mulher artista está muitas vezes interligada com a da loucura. No imaginário coletivo do passado, a criação feminina foi muitas vezes reduzida a um ato impulsivo, irracional, quase febril. Uma narrativa que, embora derivada da tradição patriarcal, encontra encarnações fascinantes e complexas em certas figuras da história da arte. Basta pensar em Camille Claudel (1864-1943), uma escultora extraordinária, aluna de Auguste Rodin, cujo talento foi ofuscado pela sua relação atormentada com o mestre. A sua arte foi muitas vezes vista como uma expressão de instabilidade emocional e não de génio criativo, de tal forma que a sua família a internou num manicómio onde passou os últimos trinta anos da sua vida esquecida por todos. Outro triste exemplo é Séraphine Louis (1864-1942), conhecida como Séraphine de Senlis, pintora autodidata cujo talento só tardiamente foi descoberto pelo crítico e colecionador Wilhelm Uhde, para o qual trabalhava como empregada doméstica. As suas obras, caracterizadas por cores intensas e motivos florais quase visionários, foram interpretadas mais como o resultado de uma inspiração mística e obsessiva do que como um verdadeiro processo artístico. Na sequência de um esgotamento devido ao colapso da sua carreira durante a Grande Depressão, também ela foi internada num hospital psiquiátrico, onde morreu em solidão.

No entanto, há mulheres artistas que não sofreram passivamente a loucura, nem se deixaram definir por aqueles que as consideravam “diferentes”, mas transformaram a sua alienação num poderoso meio criativo e num instrumento expressivo revolucionário. Entre elas conta-se Yayoi Kusama, nascida em 1929 no Japão, atualmente uma das artistas vivas mais famosas do mundo pela sua linguagem visual marcada pela obsessão e pela repetição, em constante diálogo com a sua psique. Desde a infância, fascinada pelos motivos da toalha de mesa da família, sofria de alucinações, uma experiência que conseguiu transformar numa fonte de inspiração desde a sua juventude. Na década de 1950, Yayoi Kusama deixou o Japão e transferiu-se para Nova Iorque, ansiosa por se estabelecer na cena artística de vanguarda. Antes de partir, escreveu a Georgia O’Keeffe (1887-1986), que admirava profundamente, pedindo-lhe conselhos sobre a forma de se afirmar no mundo artístico dos EUA. A artista americana, que por sua vez passou por períodos de fragilidade psicológica a ponto de interromper a sua carreira por um longo período, respondeu com encorajamento, oferecendo-lhe conselhos sobre como lidar com o mercado de arte local. Durante este período, Kusama desenvolveu as suas famosas Infinity Nets – que é também o título da sua autobiografia - grandes telas cobertas de sinais repetidos de forma maníaca que, tal como as suas instalações de espelhos e bolinhas, são tentativas explícitas de dominar a ansiedade e o vazio interior. Convencida de que «a nossa terra é apenas um ponto entre um milhão de estrelas no cosmos», Kusama começou assim a criar obras capazes de dissolver a estrutura e o centro, mergulhando o espetador num vórtice sem limites para explorar o desconhecido.  Mas o sucesso não a impediu de entrar em crise profunda e, em 1977, decidiu voluntariamente viver numa clínica psiquiátrica no Japão. Atualmente, Kusama é conhecida pela sua arte imersiva e cativante e pelas Infinity Rooms Immersive, com as quais conseguiu transformar o transtorno obsessivo-compulsivo num sinal estilístico icónico, de tal forma que até contaminou a moda, como demonstra a sua colaboração com a Louis Vuitton em 2023. Ao integrar a terapia no seu processo criativo, o trabalho de Kusama demonstra o poder da arte para curar, transformar e transcender fronteiras, tornando-se um meio de ligação infinita.

Um caso italiano emblemático é o de Carol Rama (1918-2015), uma artista visionária e rebelde que conseguiu subverter as narrativas impostas sobre a loucura e a feminilidade. Embora tenha passado a sua infância em condições abastadas, a sua vida foi cedo marcada por traumas profundos, como o suicídio do pai e o internamento da mãe num manicómio, acontecimentos que influenciaram a sua sensibilidade artística e transformaram a pintura numa forma de cura e sobrevivência.

As suas primeiras obras mostram corpos femininos em poses explícitas e perturbadoras que vêm das suas memórias da visita à mãe: «[...] não me apercebi que estava num ambiente de manicómio e [...] vi aquelas mulheres, agachadas no chão, com as pernas abertas, o rabo no ar, e pensei que todo o mundo fosse assim, não é?». É assim que a sua perceção do mundo se transforma, levando-a a considerar a normalidade como uma construção social e a reconhecer a loucura como uma condição que desafia as convenções. A imagem destas mulheres, demasiado afastadas das expectativas sociais, ajudou a moldar a sua abordagem artística, em que a irregularidade, a transgressão e o sexo como instrumento de luta se tornaram elementos essenciais da sua arte.

Carol Rama nunca se definiu louca, mas jogou com o conceito de “desvio”, rejeitando rótulos psiquiátricos e transformando a dor em arte subversiva. A sua produção passou por diferentes fases, desde as primeiras aguarelas às assemblagens mais arrojadas, culminando em obras que questionam a loucura e a marginalidade. Hoje é reconhecida como uma das artistas mais originais e revolucionárias do século XX, celebrada pela sua capacidade de subverter os limites entre normalidade e loucura, intimidade e provocação. A sua exploração do corpo e da matéria, longe de rótulos fáceis de consumo, oferece novas chaves interpretativas para a sua obra, que continua a ser um poderoso ato de rebelião e liberdade, no qual a loucura se torna uma forma extrema de lucidez e o sexo um instrumento de luta social e política.

As histórias destas artistas mostram como a loucura, real ou sentida, pode ser retrabalhada numa linguagem artística inovadora e libertadora, retirando-a da retórica da fraqueza e transformando-a numa arma de emancipação. Kusama, Rama, Claudel e Séraphine de Senlis enfrentaram o estigma convertendo-o em criação, demonstrando que o limite entre o génio e a instabilidade é frequentemente uma construção cultural e não uma verdade absoluta. A “loucura” delas não é uma condição passiva, mas uma força geradora, um campo de exploração que as levou para além dos limites impostos pelo sistema da arte. Numa altura em que o conceito de normalidade é constantemente questionado, o seu trabalho recorda-nos que a loucura, mais do que uma doença, pode ser uma forma extrema de lucidez.

GIORGIA CALÒ
Historiadora e crítica de arte, Diretora do Centro de Cultura Judaica da Comunidade Judaica de Roma