Testemunhos de três vítimas de abusos

A luz de Deus na escuridão da dor

 A luz de Deus na escuridão da dor  POR-040
03 outubro 2024

“Ouve, criador misericordioso": no canto inicial da Vigília penitencial presidida na basílica de São Pedro pelo Papa Francisco no final da tarde de terça—feira, 1 de outubro, está contido um dos significados primários do Sínodo sobre a sinodalidade: o da conversão.

Uma celebração discreta mas intensa, organizada pela secretaria geral do Sínodo e pela diocese de Roma em colaboração com a União dos superiores gerais e a União internacional das Superioras Gerais, e na qual participaram cerca de 2.500 fiéis, em particular jovens. Foi animada por dois coros: o da diocese de Roma, dirigido pelo monsenhor Marco Frisina, e o da comunidade congolesa residente na Urbe. Com simplicidade, os participantes e os membros da Assembleia sinodal, juntamente com os jovens e os fiéis romanos, prepararam—se para a escuta/predispuseram—se à escuta. Escuta da Palavra de Deus, mas também uns dos outros.

Depois da leitura de uma passagem do profeta Isaías (58, 1—14), o momento dos testemunhos foi tocante: três vozes que narraram três dramas diferentes e distantes, mas unidos pela dor. Os dramas do abuso, das migrações, da guerra. O primeiro a aproximar—se ao microfone foi Laurence: aos 11 anos de idade, na África do Sul, foi abusado por um sacerdote. «Conduziu—me pela mão para um lugar escuro onde, no silêncio gritante, me tirou o que nunca deveria ser tirado a nenhuma criança», disse, denunciando com firmeza «o véu de secretismo que a Igreja, historicamente, tem sido cúmplice em manter». Laurence tem hoje 53 anos, é barítono de profissão, mas não esqueceu a violência sofrida, o anonimato que muitas vezes circunda as vítimas, «reduzidas ao silêncio pelo medo, pelo estigma ou pelas ameaças».

Com clareza, este homem falou de «falta de transparência no interior da Igreja», de «acusações ignoradas, encobertas», de uma falta de responsabilidade que comprometeu a confiança dos crentes. Mas não só: as consequências de tais abusos, concluiu Laurence, vão «muito para além dos muros da Igreja», causando «uma crise de confiança que se repercute na sociedade» porque «quando uma instituição tão importante como a Igreja católica não consegue proteger os seus membros mais vulneráveis, transmite o sinal de que a justiça e a responsabilidade são negociáveis».

Suave, mas firme, foi também a voz de Sara, diretora regional, na Toscânia, da Fundação Migrantes. Da diocese de Carrara, chegou a S. Pedro para testemunhar os numerosos desembarques migratórios que têm lugar na sua cidade. «No nosso porto — explicou — chegam aqueles que sobreviveram», sobreviveram a viagens desumanas, à fome e à sede, a violências de todo o género que deixam marcas na pele, mas sobretudo na alma. Quem entra numa “barcaça da esperança”, prosseguiu, não encontra a solidariedade de uma comunidade que viaja junta, mas apenas a solidão de quem luta pela sobrevivência, como acontecia nos campos de extermínio, onde não havia pessoas, apenas números. Das palavras da responsável de Migrantes Toscana emergiu também a esperança de quem, trepidante, aguarda no porto a chegada de um familiar, um amigo, vivendo no terror de não saber se este sobreviveu ou não à viagem.

O percurso da migração, recordou ainda Sara, é mais difícil para as mulheres, «silenciosas e invisíveis», frequentemente vítimas de violências tanto nos países de origem como durante a fuga para uma vida melhor. Forçadas a abandonar os próprios filhos por receio de que não sobrevivam à viagem, “morrem por dentro”, esmagadas pela solidão, mas conscientes de que o único modo para criar um futuro possível é migrar. «Não tens outra escolha: se queres ter uma hipótese de sobreviver e de continuar a dar esperança aos teus filhos, embarcas», disse Sara.

Com ela, estava também Solange: nascida na Costa do Marfim, desembarcou em Carrara há cinco meses e, perante os participantes no Sínodo, levou «toda a minha África». «Estamos aqui hoje para dar testemunho de uma nova humanidade», concluiu Sara.

O terceiro testemunho veio de um país em guerra, a Síria, contado pela voz da irmã Deema Fayyad. Originária de Homs e membro da comunidade monástica de al—Khalil — fundada em 1991 no mosteiro siro—católico de São Moisés o Abissínio, pelo jesuíta Paolo Dall’Oglio, de quem não há notícias desde 2013 —, a religiosa síria quis narrar «uma experiência de profunda dor» como a do conflito que não só destrói «edifícios e estradas, mas que afeta também os laços mais íntimos que nos ancoram às nossas memórias, às nossas raízes». Com voz comovida e imbuída de grande consciência, irmã Deema sublinhou a urgência de trabalhar as relações num mundo «ferido por tanta violência». Porque mesmo onde a guerra faz emergir «o pior lado do homem», pondo em evidência «egoísmo, violência e avidez», é sempre possível encontrar uma luz na resistência não violenta que serve como «denúncia silenciosa contra quem tira proveito da guerra vendendo armas ou conquistando terras».

Acender pequenas luzes na escuridão do conflito é exatamente aquilo que a consagrada fez, empenhando—se com a sua comunidade em favor dos jovens, criando espaços de diálogo e de crescimento para eles. «Isto permitiu—nos recolher entre os escombros do sofrimento humano os tesouros mais preciosos – concluiu—: a solidariedade e a fraternidade, que continuam a resplandecer como sinais de esperança e de paz», porque «mesmo nos momentos mais sombrios, é precisamente aí que se pode encontrar Deus».

Depois da proclamação da passagem do Evangelho de Lucas sobre o fariseu e o publicano (Lc 18, 9—14), foi igualmente tocante o momento em que sete cardeais leram outros tantos pedidos de perdão, que relatamos nestas páginas. Intercalados por um cântico congolês e pelo Misericordias Domini entoado pela assembleia, os pedidos de perdão introduziram, após uma breve pausa de silêncio, a reflexão de Papa Francisco, seguida da oração ao Senhor: «Pedimos—te perdão por todos os nossos pecados, ajuda—nos a restaurar o teu rosto que desfigurámos com a nossa infidelidade — disse o Pontífice —. Peçamos perdão, sentindo vergonha, a quem foi ferido pelos nossos pecados. Dá—nos a coragem de um arrependimento sincero para uma autêntica conversão».

Depois, antes da bênção e do cântico final “O Senhor é a minha luz”, o Santo Padre entregou um exemplar do Evangelho a dois jovens, a um seminarista e a uma religiosa: um gesto simbólico para transmitir às gerações futuras uma missão que se espera melhor, sempre mais fiel à lógica do Reino de Deus.

Isabella Piro