A eternidade num simples gesto de amor

 A eternidade num simples gesto de amor  POR-039
26 setembro 2024

Alição do Livro dos Números deste Domingo xxvi (Nm 11, 25-29) mostra-nos um Moisés, não dono de nada nem de ninguém, nada ciumento ou invejoso, mas livre, cheio de bem e de bondade, completamente a céu aberto, desejoso de ver, com olhos puros, o Espírito de Deus a operar maravilhas em todas as pessoas e através de todas as pessoas. Josué representa, neste texto, a figura sombria do ciumento.

2. O Evangelho deste mesmo Domingo xxvi (Mc 9, 38-48) segue o mesmo rumo e mostra-nos um Jesus feliz por ver que o bem saltou as fronteiras do pequeno grupo que o seguia, sendo praticado também por pessoas de fora. João encarna aqui a figura do Josué do texto supracitado do Livro dos Números, e quer o bem todo para Jesus e o seu grupo, vendo com maus olhos que também outros o possam realizar, talvez sobretudo porque os próprios discípulos tinham pouco antes fracassado (Mc 9, 18.28-29) onde agora veem alguém de fora ter sucesso.

3. Nas palavras de João, o facto é o seguinte: os discípulos de Jesus viram alguém a expulsar demónios no nome de Jesus, e trataram logo de o impedir. A razão apresentada para fundamentar este impedimento tem, porém, o seu quê de estranho e surpreendente. Na verdade, João refere, com todas as letras, que o grupo dos discípulos impediu o homem anónimo de continuar a sua atividade «em nome de Jesus», «porque não nos seguia» (ouk êkoloúthei hêmîn) (Mc 9, 38). O problema reside todo neste «porque não nos seguia». Trata-se, de facto, de uma fórmula estranha e surpreendente, porque, no Evangelho, fala-se sempre de «seguir Jesus», não «a nós», inclusive no único paralelo desta passagem, apresentado em Lucas 9, 49, em que se lê: «porque não segue connosco» (ouk akoloutheî meth’ hêmôn). Vê-se bem que estes discípulos de Jesus ainda não perceberam a lição da humildade e do serviço do Domingo passado, querendo eles próprios estar indevidamente «no meio», ocupando ou usurpando o primeiro lugar. Sempre este nosso doentio gosto de querer estar sempre no centro das atenções! Salta à vista que este texto notável funciona como um espelho: mostra-nos menos a figura do exorcista anónimo e mais a figura patronal assumida pelos discípulos de Jesus, que se julgam donos exclusivos de algumas funções e defendem ciosamente esse status.

4. Vê-se, no fundo da tela, que não basta querer o bem. Querer o bem nem sempre é bom. Por paradoxal que pareça, querer o bem pode ser mau. É de facto mau, quando queremos o bem só para nós, ciumenta e invejosamente. Às vezes, os nossos olhos maus levam-nos a retirar o bem do alcance dos outros, e até a destruí-lo, para que os outros não possam usufruir dele e não possam sequer realizá-lo, beneficiando outros! Ora, o bem que divide e exclui nunca é bem. O bem mostra-se tal apenas quando faz comunhão, fraternidade, mesa, pão, água, pura alegria entre irmãos.

5. Um simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade (Mc 9, 41). Aí está outra soberana lição de Jesus. Toda a atenção, portanto, às nossas mãos, pés, olhos, entranhas, coração. A mão, que indica a nossa ação, pode fazer o bem ou o mal. Se faz o mal, é melhor cortá-la, como faz o lavrador cuidadoso aos ramos secos das videiras e das árvores de fruto. O pé, que indica o nosso caminhar, pode levar-nos por e para maus caminhos. Se nos conduz para o abismo, é melhor cortá-lo. O olho, que indica os nossos desejos de bem e de amor ou de cobiça, ódio, raivas, invejas e ciúmes, pode levar-nos à mesa da alegria fraterna ou ao ciúme e à inveja. Estas últimas maneiras de ver levam-nos ao mal, e, portanto, ao sentimento venenoso de queremos o bem só para nós. Aí está como querer o bem nem sempre é bom; pode ser mau. E é melhor arrancar pela raiz este veneno mortal.

6. É o que se ouve em Mc 9, 42-48, em que o vocábulo «escândalo» emerge por quatro vezes à flor do texto (vv. 42.43.45.47). A primeira vez, trata-se de «escandalizar» terceiros, os «pequeninos», atitude que assume particular gravidade, e leva Jesus a proferir uma sentença duríssima: quem escandalizar um destes pequeninos que acreditam em mim melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço uma mó de moinho e o lançassem no fundo do mar. Como quem diz: ao menos aí, no fundo do mar, estaria seguro, pois não prejudicaria ninguém e estaria ele próprio a salvo de cometer outros erros semelhantes (v. 42). Os vv. 43-48 dizem respeito ao próprio que pode sair prejudicado pelo mal feito por alguns dos seus órgãos mais importantes, como sejam a mão, o pé, o olho. Diz Jesus que é preferível cortá-los e permanecer ligado a Jesus e à vida eterna do que entrar com eles para a perdição eterna. Fica claro: a comunhão com Jesus e com Deus na vida eterna pressupõe a ligação com eles na vida terrena.

7. Esta longa e incisiva instrução aos Doze (Mc 9, 35-50), feita por Jesus depois da segunda predição da sua Paixão, Morte e Ressurreição (Mc 9, 30-34), é, juntamente com o discurso em parábolas (Mc 4, 1-34) e o discurso apocalíptico (Mc 13, 3-37), um dos três grandes discursos de Jesus no Evangelho de Marcos. No início, e como fundamento de tudo quanto segue, os Doze aprendem, como vimos no Domingo passado, que o serviço humilde é o único caminho para a grandeza, e que a atenção solícita para com uma criança é o serviço exemplar (Mc 9, 35-37). Aprendem logo a seguir, e foi a lição deste Domingo, como devem comportar-se com aqueles que não pertencem ao seu grupo (Mc 9, 38-41), com os pequeninos que estão no meio deles (Mc 9, 42) e consigo mesmos (Mc 9, 43-48). No final, que já não foi lido hoje, Jesus exorta-os a estarem em paz uns com os outros (Mc 9, 50). Na verdade, só se estiverem prontos para servir, e não se quiserem dar ares de importantes, podem tornar-se verdadeiros seguidores de Jesus.

8. A lição de Tiago (5, 1-6), que lemos e abandonamos este Domingo (no próximo Domingo começa a ler-se a Carta aos Hebreus) mostra bem, numa linguagem duríssima, que o rico é o que quer o bem só para si, retirando-o (roubando-o!) aos outros. Autoexclui-se da comunhão, da bondade e da alegria da mesa fraterna. O resultado é a traça, o mofo, a ferrugem, a podridão, recuperando assim, em termos proféticos e sapienciais, muitos motivos patentes no Antigo Testamento. O pequeno texto da Carta de Tiago usa 119 imperativos, dos quais se ouvem três no texto de hoje. Permanentes chamadas de atenção para este mundo em que poucos têm quase tudo, e a maioria não tem quase nada. O texto da Carta de Tiago é claramente tardio, de finais do século i ou princípios do século ii , mas vale para todos os tempos.

9. Esta linguagem duríssima aproxima-se de quanto, no texto do Evangelho de hoje aparece retratado na «geena» (Mc 9, 43.45.47), do aramaico gêhinnam, hebraico gê-hinnom, que é o nome de um vale situado a sul de Jerusalém, lugar pagão onde se realizava o culto a Moloch, onde os ímpios Acaz e Manassés tinham sacrificado os seus próprios filhos (2 Cor 28, 3; 33, 6). O piedoso rei Josias, no decurso da sua reforma religiosa, acabou com estes cultos pagãos e destinou este lugar para queimar as entranhas dos animais. É daqui que vem o espetáculo tétrico da putrefação, vermes, fumo, fogo, (Jr 7, 31-34; 19, 1-13; 32,35), «vermes que não morrem, fogo que não se apaga» (Mc 9, 44.46.48), que fornecerão a linguagem adequada para dizer o inferno. A chapa original encontra-se em Isaías 66, 24, último versículo do profeta.

10. Aí está, no ponto e em contraponto, a lição soberana do Evangelho de Jesus: um simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade.

*Bispo de Lamego

D. António Couto *