Em 2017, o cardeal prefeito do Dicastério para a cultura e a educação divulgou o ensaio «A leitura infinita», dedicado à Bíblia e à sua interpretação. A 11 de junho, foi publicada a segunda parte desse volume, intitulada «Quem é então este Jesus? Interrogar e escutar os Evangelhos» (Ed. San Paolo, Cinisello Balsamo, 2024, páginas 143). Neste livro, o purpurado propõe um itinerário cristológico essencial, subdividido em sete etapas, ritmadas sobretudo, mas não só, por excertos tirados do Evangelho segundo Lucas. Publicamos a seguir a introdução do volume, na qual o cardeal prefeito analisa o mistério do rosto de Jesus, que permanece um desafio, um ponto de ligação entre o divino e o humano.
Não nos devemos surpreender com o facto de o rosto de Jesus continuar a ser uma questão em aberto; um mistério que nos põe a caminho; um conhecimento que possuímos e não possuímos; uma tarefa que cada geração de leitores dos Evangelhos é chamada a fazer sua. O filósofo Emmanuel Lévinas, que se debruçou longamente sobre o rosto como problema filosófico, escreveu que um rosto ultrapassa em cada momento a imagem que temos dele. Um rosto não se define de uma vez por todas, não se fixa em categorias, não sucumbe à tentação da instrumentalização ideológica. Pelo contrário, exprime-se como uma realidade viva; e é melhor apreendido quando, em vez de aspirar a uma definição, se aceita corajosamente entrar numa relação. Um rosto, ainda mais o de Jesus, constitui uma resposta em si mesmo, embora continue a ser uma pergunta que nos desestabiliza. De facto, um rosto encerra uma noção de verdade que não coincide totalmente com a descoberta a que chegámos, como se esta a pudesse satisfazer, mas que se manifesta na evidência e na promessa da sua própria autorrepresentação, à qual só se pode aceder aprofundando a experiência.
Ponto de intersecção entre o divino e o humano, o rosto de Jesus vem continuamente ao nosso encontro, instiga-nos a procurá-lo, desafia-nos a cada passo a aproximar-nos dele, sobretudo através da experiência que se adquire no amadurecimento da leitura e no dinamismo da fé. Não é por acaso que, em vez de escolher oficialmente um único Evangelho, o cristianismo primitivo decidiu incluir quatro narrativas no cânone. Jesus deve ser procurado, intuído, aprendido, num processo de compreensão que nos ultrapassa como indivíduos, mas que nos é concedido: na escuta da polifonia do texto evangélico, com as suas variantes, os seus contrastes, os seus diferentes aprofundamentos e complementaridades; na riqueza da tradição hermenêutica em que se funda a comunidade eclesial e em cuja transmissão ela vive; e na pluralidade que tantos testemunhos de busca da verdade ardentemente iluminam.
Para encontrar o rosto vivo de Jesus, os Evangelhos continuam a ser uma fonte à qual não podemos renunciar. Este tem sido, como sabemos, um dos limites de muitos estudos sobre o Jesus histórico, um Jesus que se pretendeu reconstruir com os instrumentos da historiografia moderna e que deveria, necessariamente, ser diferente do Jesus que inspira a fé. Assim, tem-se procurado um Jesus que não só é diferente do Cristo da fé, mas também diferente do Jesus narrado pelos Evangelhos. Como escreveu James Dunn, «a investigação do Jesus histórico tem sido conduzida como se se assemelhasse à busca do rádio por Madame Curie, um processo de filtragem de todos os elementos até ao composto final». Ao empobrecimento do «processo de filtragem» não podemos deixar de contrapor o desenvolvimento incessante da leitura que os próprios Evangelhos nos convidam a fazer, para que «a inteligência da revelação se torne cada vez mais profunda» (Dei Verbum, 5).
O livro que o leitor tem nas suas mãos constitui a segunda parte do volume A leitura infinita. A Bíblia e a sua interpretação, que a editora San Paolo publicou em 2017. Essa primeira coleção de escritos propunha uma reflexão contemporânea sobre o complexo tema da leitura, preparando os leitores para a experiência do encontro com o texto bíblico, que não é um texto qualquer. A imersão na Bíblia, por si só, não forja grandes leitores, porque a Bíblia ensina a ler-se a si mesma. O contacto com a hermenêutica bíblica, porém, é de enorme importância para dotar quem dela se aproxima de instrumentos que não só facilitem, mas também tornem mais fecunda, cultural e espiritualmente, a experiência da leitura. Esta segunda parte, construída à volta da pergunta «Quem é então este Jesus?», reúne sete pequenos ensaios que propõem um itinerário cristológico essencial, no qual o Evangelho segundo Lucas desempenha um papel preponderante, embora não exclusivo. Cada ensaio é, antes de mais, uma tentativa de ler o texto evangélico tal como ele é apresentado. E, no contacto com as palavras, talvez nos encontremos também a conhecer melhor o rosto e a mergulhar no mistério. Lembro-me do que o pintor van Gogh escreveu numa carta ao seu irmão Théo: «E depois, lê simplesmente a Bíblia e o Evangelho, porque dá que pensar, muito que pensar, para pensar em tudo».
José Tolentino de Mendonça