REFLEXÃO LITÚRGICO-PASTORAL
Para a solenidade de Pentecostes

Fonte inesgotável de dons

 Fonte inesgotável de dons  POR-020
16 maio 2024

OEvangelho da Solenidade deste Dia Grande de Pentecostes (Jo 20, 19-23) mostra-nos os discípulos de Jesus fechados num lugar, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou impedir de entrar ou de sair, nem as portas fechadas daquele lugar fechado, Vem em plena liberdade e fica de pé no meio deles, o lugar da Presidência, e por duas vezes lhes diz: «A paz convosco!», Shalôm. Não se trata de augúrio, mas de um Dom! Mostra-lhes, não o rosto, mas as mãos e o lado, bilhete de identidade de Jesus, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, Vida dada por amor, para sempre e para todos, e vincula os seus discípulos à sua missão de dar a vida por amor: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): a sua missão começou e continua. Não terminou nem termina. Ele continua em missão. A nossa missão está no presente. O presente da nossa missão aparece, portanto, vinculado e agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mt 28, 20). «Como o Pai me enviou, também Eu vos mando ir». Este como define o estilo da nossa missão de acordo com o estilo e a missão de Jesus. É-nos dito ainda que os discípulos ficaram cheios de alegria (o medo foi dissipado) ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo, também eles vêm com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito Santo, para a missão frágil-forte do Perdão, Jubileu Divino do Espírito. Este sopro, este vento, este alento, só aparece neste lugar em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah tm / emphysáô lxx ) criador de Deus no rosto do homem.

2. «Recebei o Espírito Santo» (Jo 20, 22). É o Espírito Santo que nos faz «filhos de Deus», «filhos no Filho», irmãos de Jesus e seus contemporâneos, e impede que sejamos catalogados, como reza a história empírica, em simples continuadores de Jesus.

3. O texto luminoso do Livro dos Atos dos Apóstolos 2, 1-11 mostra-nos o vento impetuoso do Espírito a recriar e renovar a nossa face e a face da terra, em duas vagas sucessivas: primeiro, no cenáculo, onde estávamos todos reunidos (vv. 1-4); depois na rua, onde está a multidão das gentes oriundas do mundo inteiro (vv. 5-11). Num e noutro lugar, em toda a parte, o vento impetuoso do Espírito varre as teias de aranha que ainda nos tolhem, e purifica os nossos corações com o seu fogo ardente. O Espírito, irrompendo em línguas como de fogo, não poisa, mas senta-se (kathízô) — bela e significativa expressão! — sobre nós (v. 3), Mestre novo dos tempos novos, que viria para orientar e guiar a nossa vida, como Jesus tinha prometido e anunciado, por cinco vezes, no Evangelho de João: 14, 15-17; 14, 25-26; 15, 26; 16, 7; 16, 13-15. Verificação: eis-nos a falar outras línguas, dádiva do Espírito! Milagre: cessam incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças, e nasce um mundo novo de comunhão e comunicação plenas, pois todos nos entendemos tão bem como se se tratasse da nossa língua materna no seu sentido mais puro, da palavra antes das palavras, divina e humana lalação, aquele balbuciar, repetindo sons, entre a mãe e o seu bebé. Chame-se-lhe confiança, intimidade, ternura, amor. Impõe-se, nesta bela comunidade, uma atitude de vigilância permanente, pois será sempre grande a tentação de querer levar o Espírito à letra! E aí está a advertência vinda dos Coríntios, cujo falar em línguas ninguém entende (1 Cor 14, 2), sendo preciso o recurso a intérpretes (1 Cor 14, 28). Todos consideraríamos um absurdo a existência de um intérprete entre a mãe e o seu bebé para traduzir aquela lalação que os dois tão bem entendem!

4. É esta divina lalação (stenagmòs alálêtos) (Rm 8, 26) única vez no Novo Testamento — do Espírito que nos ensina a compreender que «Jesus é Senhor» (1 Cor 12, 3), e que Deus é Pai (ʼAbbaʼ) (Gl 4, 6; Rm 8, 15). Anote-se também a importante afirmação de que «a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum» (1 Cor 12, 7), e «não para proveito próprio» (1 Cor 10, 33), sendo que o que define o proveito comum é a edificação, não de si mesmo, mas dos outros (1 Cor 10, 23-24).

5. A tradição situa no Cenáculo e à sua volta, em frequências cada vez mais alargadas, as duas cenas acima descritas (Jo 20, 19-23 e At 2, 1-11). É a sala da Ceia Primeira, do último serão de Jesus com os seus discípulos (Lc 22, 21-38), da Aparição do Senhor aos seus Apóstolos (Lc 24, 36), da eleição de Matias (At 1, 26), da descida do Espírito Santo no Pentecostes (At 2, 1-4), enfim, o primeiro lugar de encontro da primeira comunidade cristã reunida em oração com Maria (At 1, 13-14), a primeira sede da Igreja nascente, a mãe de todas as Igrejas, a primeira domus-ecclesia [«casa-igreja»] do mundo, situada uns duzentos metros a sul da muralha de Jerusalém, em local muito próximo da Porta de Sião. O atual edifício remonta ao trabalho dos Padres Franciscanos no século xiv , e sucedeu a outras construções sucessivamente edificadas e destruídas, desde a basílica de Santa Sião [Hagía Sion], do século iv . Sintomaticamente, por se encontrar no quarteirão sul de Jerusalém, o primitivo Cenáculo resistiu à destruição romana da guerra de 70, pois os romanos atacaram e destruíram a cidade a partir da parte norte, mais facilmente expugnável.

6. Associada às cenas acima identificadas, a sala superior do Cenáculo [15,30 metros por 9,40 metros] assemelha-se ao Sinai com os fenómenos então lá registados. Veja-se, a propósito, a bela descrição que deles faz Fílon de Alexandria (± 20 a. c .-50 d. c .): «Deus não tinha boca ou língua, mas, com um prodígio, fez que um rombo se produzisse no ar, que um sopro se articulasse em palavras pondo o ar em movimento. Este transformou-se em fogo que tinha forma de chamas [...], e uma voz ressoava do meio do fogo e descia do céu, e esta voz articulava-se no idioma próprio dos ouvintes». Mas também Babel é evocada em contraponto: em Gn 11, 7, «ninguém compreendia mais a língua do seu próximo», mas em At 2, 6, «cada um compreendia na sua própria língua materna».

7. O Espírito Santo é também enviado em missão. E é Aquele que recebe o que é do Filho (Jo 16, 14 e 15), e que o Filho recebeu do Pai. O Filho é a transparência do Pai. O Espírito Santo é a transparência do Filho. O ensinamento do Espírito Santo é o mesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (Jo 14, 26), e processa-se, ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição de um público determinado, mas na interioridade da inteligência e do coração de cada ser humano. Este ensinamento interior do Espírito Santo é comparado à unção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestes a unção (chrísma) que vem do Santo e todos sabeis (oídate)» (1 Jo 2, 20); ou então: «a unção (chrísma) dele vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas» (1 Jo 2, 27). É a unção que lentamente penetra em nós, ocupa o nosso interior, suaviza as nossas asperezas, cura as nossas dores e faz nascer entre nós comunidade e comunhão. Maravilhoso saber que nos assemelha a Deus, que sabe de nós (Ex 2, 25), e nos põe em confronto com Caim, que não sabe do seu irmão (Gn 4, 9), e com Pedro, que não sabe de Jesus (Mt 26, 70.72.74).

8. Ensinamento novo. Não exterior, com sons e palavras, mas diretamente nas pregas da inteligência e do coração. É assim que a linguagem nova do Espírito afeta ao mesmo tempo o português e o chinês, o inglês e o russo, o católico, o muçulmano e o hebreu. É como quando, em vez de se porem a falar cada um a sua língua incompreensível para o outro, o português e o chinês entregassem uma flor um ao outro! É assim que fala o Espírito, é assim que age o Espírito, Pessoa-Dom, fonte de dons (1 Cor 12, 3-13).

9. Escrevendo aos Romanos (8, 9-13) e a nós, São Paulo adverte-nos que não é «na carne» (en sarkí), mas «no Espírito» (en pneúmati), que devemos viver. E ele insiste em dizer como é importante Cristo estar «em vós» (en hymîn), e o Espírito, Aquele que ressuscitou Jesus dos mortos, habitar (oikéô) «em vós» (en hymîn). A carne tem a ver com o currículo, o status, a importância, a ganância... Para nossa instrução e mapa de vida, podemos sempre socorrer-nos do vasto elenco, sempre atualizado, das «obras da carne», que São Paulo faz na Carta aos Gálatas: «São manifestas as obras da carne, que são: fornicação, impureza, devassidão, idolatria, magia, inimizades, rixa, ciúme, iras, ambições, dissensões, divisões, invejas, bebedeiras, orgias, e coisas semelhantes a estas, sobre as quais vos previno, como já preveni, que os que tais coisas fizerem não herdarão o Reino de Deus» (Gl 5, 19-21). E podemos também ver o confronto que ele faz com os «frutos do Espírito», que são: «amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio» (Gl 5, 22-23).

10. Nós somos do tempo da missão do Espírito, Aquele que vem para nós da humanidade glorificada do Filho de Deus e de Maria, Jesus. Note-se a fortíssima e ousada vinculação da nossa vida: «O Espírito Santo e nós» (At 15, 28).

D. António Couto
Bispo de Lamego