A«caminhada» quaresmal aproxima-se da sua meta e do seu verdadeiro ponto de partida: a Cruz gloriosa, onde resplandece para sempre o Rosto do imenso, indizível amor de Deus por nós. Nesta altura do percurso (supõe-se que encetámos uma subida «espiritual»: entenda-se no Espírito Santo e com o Espírito Santo), batizados e catecúmenos devem estar já a ser iluminados por essa Luz, a ponto de se desfazerem das «obras das trevas» e de abraçarem as «armas da luz», como verdadeiros discípulos que seguem o Mestre até ao fim, que é também o princípio, a Fonte da Vida verdadeira donde jorra o Espírito Santo para nós (sempre At 2, 32-33; Jo 19, 30 e 34; 7, 38-39). Os catecúmenos têm neste Domingo v da Quaresma os seus terceiros «escrutínios»: última «chamada» para a Liberdade antes da Noite pascal batismal.
2. O Evangelho deste Domingo v da Quaresma (Jo 12, 20-33) apresenta-nos o último discurso e a última aparição de Jesus em público, aos olhos da «multidão» (Jo 12, 29 e 34), antes da narrativa da Ceia e da Paixão. Pouco depois, o evangelista diz nos que «Jesus se retirou e se escondeu deles» (Jo 12, 36). A nós, porém, foi-nos dado conhecer o Mistério deste escondimento, que o não é senão para se vir a manifestar (leia-se de novo inteligentemente o lógion de Jesus no Evangelho de Marcos: «Nada está escondido que não seja para se manifestar» (Mc 4, 22), e que esclarece o Mistério da Luz-que-vem (!), que é Ele, no versículo anterior). Em boa verdade, este Jesus que agora se esconde da multidão manifestar-se-á definitivamente, aos olhos de todos (também aos nossos!), na Cruz gloriosa, último e único sinal dado (por Deus) a esta geração (Mt 12, 39 40; 1 Cor 1, 20-24): «Olharão para aquele que trespassaram» (Jo 19, 37).
3. É neste contexto que «uns gregos» (Jo 12, 20) querem ver (ideîn) Jesus (Jo 12, 21). São gregos de nascimento (hellênes), mas já não são pagãos. São «prosélitos» ou «tementes a Deus», que receberam o dom do «temor de Deus» (cf. At 10, 2.22.35; 13, 16.26), e se converteram dos ídolos ao Deus único, aderindo ao monoteísmo de Israel e à prática dos mandamentos. Tão-pouco são os chamados «helenistas» (hellênistai), hebreus na diáspora, que falavam a língua grega e tinham aderido à cultura grega. Note-se, desde já, o verdadeiro alcance deste desejo de ver, formulado com o verbo ideîn. De ideîn deriva, em português, ideia e identidade. A formulação deste ver com o verbo ideîn implica, portanto, que aqueles gregos não são movidos por mera curiosidade, não pretendem ver apenas Jesus por fora, isto é, ver o aspeto ou o rosto de Jesus. Eles pretendem ver a identidade de Jesus, ou seja, pretendem ver quem é Jesus. Ora, ver quem é Jesus não se resolve em cinco minutos, num simples relance de olhos. Implica uma longa e intensa convivência com Jesus. É o que vai suceder com o publicano Zaqueu. Também ele «procurava ver (ezêtei ideîn) quem é (tís estin) Jesus» (Lc 19, 3). Aqui tudo é ainda mais claro, pois o texto esclarece que Zaqueu queria ver (ideîn) quem (tís) é Jesus. Para Zaqueu poder ver tanto, Jesus vai hospedar-se em sua casa (Lc 19, 5.9). E Zaqueu viu quem era Jesus, e viu também a sua vida virada do avesso! É o risco que correm estes gregos que querem ver Jesus. E nós também!
4. Os gregos comunicam este seu desejo a Filipe, o qual, por sua vez, o comunica a André. Filipe e André são conterrâneos, naturais de Betsaida Júlia (Jo 1, 44), situada nos confins da Galileia e no limiar do mundo helénico, e são os dois únicos Apóstolos com nome claramente grego. Contam-se também entre os primeiros discípulos que, querendo saber quem era Jesus, se dirigiram a Ele, e que logo comunicaram a sua experiência a outros, e os conduziram a Jesus (cf. Jo 1, 35-46). Pelos vistos, não se cansaram nem esqueceram esse jeito de fazer, e é assim que os vemos no episódio de hoje a desempenhar com diligência o seu papel de fazer de ponte entre a humanidade e Jesus. Os dois levam a mensagem a Jesus (Jo 12, 22). E Jesus marca a hora da entrevista: desde agora e para sempre. É este o sentido do a hora veio em que o Filho do Homem vai ser glorificado (Jo 12, 23). Veio (elêluthen: perf de érchomai) e fica para sempre: assim o indica o perfeito usado no texto grego. Esta hora que veio é a hora da morte perturbadora (Jo 12, 27), mas também da ressurreição e glorificação (um único acontecimento), é a hora da Cruz gloriosa, para sempre exposta diante dos nossos olhos (Gl 3, 1), último e único sinal dado (por Deus) a «judeus» e a «gregos», portanto, a todos. A entrevista começou e não termina mais, pois o futuro anunciado do discípulo é o presente do Mestre, a Glória celestial em que está: «Onde eu estou (eimí), aí estará (éstai) também o meu servo» (Jo 12, 26).
5. Para o leitor atento do iv Evangelho, esta hora (hôra) de Jesus de há muito era esperada, dado que, em episódios sucessivos, Jesus e o narrador vão orientando para ela o olhar dos seus discípulos. Acontece logo nas bodas de Caná, quando Jesus diz: «Ainda não chegou a minha hora» (Jo 2, 4). E, em Jerusalém, no decurso da Festa das Tendas, o narrador informa-nos por duas vezes que os judeus bem queriam prendê-lo, mas não o fazem «porque ainda não tinha chegado a sua hora» (Jo 7, 30; 8, 20). Sempre durante a Festa das Tendas, o próprio Jesus enche esta hora com conteúdo novo e significativo, quando diz: «O meu tempo (kairós) ainda não chegou» (Jo 7, 6). Kairós não é o mero tempo cronológico, mas o tempo grávido da Palavra de Deus, verdadeira enchente da Palavra de Deus a que temos de responder, e não podemos não responder, dado que a Palavra de Deus se apodera de nós até transbordar. Sem Deus e a sua Palavra primeira e criadora, que está antes das coisas e do homem, antes de nós, que faz acontecer as coisas e o homem, não há kairós nem chrónos. Chrónos é o segmento de tempo que nos é dado viver. Kairós é este segmento de tempo com relevo, o tempo grávido de amor novo e pleno, que exige a nossa resposta.
6. Aí está a inaudita história nova do grão de trigo: «Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; mas se morrer, produz (phérô) muito fruto» (Jo 12, 24). É fácil ver neste único grão de trigo, e neste grão de trigo único, e na sua história de produção nova e incalculável, o próprio Jesus. Sim, esta é a sua história, mas vê-se também, olhando em contraluz o grão de trigo e o seu percurso, a inteira história humana, em que do abaixamento, do sangue inocente, da humildade e da humilhação, brota sempre vida nova. Paradoxal: a morte a produzir fruto abundante! A morte a produzir a vida! O v. 25, logo a seguir, esclarece e amplia este paradoxo, com Jesus a dizer bem alto: «Quem se agarra à sua vida, perde-a». Portanto, é forçoso que o discípulo de Jesus olhe para o chão, e aprenda a lição do grão de trigo semeado. Mas é igualmente necessário, e em simultâneo, olhar para o céu, para o alto, para o cume, para a Cruz, para poder ser, por graça, arrastado por Jesus (v. 32). Só assim se pode perceber e receber a vida eterna (zôê aiônios, e não bíos ou psychê) (v. 25), a vida divina. Fora deste paradigma, nada. Apenas agarrar-se a esta vida (bíos ou psychê) e «receber glória uns dos outros» (Jo 5, 44).
7. Aquele «veio a hora» enche o tempo, leva-o e eleva-o à sua plenitude, e vê-se toda a latitude aberta diante dos nossos olhos atónitos. É a hora da Cruz gloriosa, avenida para sempre aberta entre Deus e o nosso mundo. Graça a transbordar. Tempo novo. É importante acentuar que são «uns gregos», também os gregos, que querem ver Jesus (Jo 12, 20-21). Cenário grandioso, muito para além do imaginado, mas que mostra bem a largueza da ambiência desta hora e da audiência que segue Jesus para escutar esta cena altíssima da Revelação de Jesus acerca da chegada da sua hora, que é a Cruz gloriosa. Jesus terminará a suprema Revelação desta hora, dizendo: «Quando eu for levantado da terra, arrastarei (hélkô) todos a mim» (Jo 12, 32). E os próprios fariseus tinham confessado imediatamente antes do início do nosso texto: «O mundo (ho kósmos) veio atrás dele (opísô autoû)!» (Jo 12, 19). Sim. Por que é que veio atrás dele, e nem por isso vem atrás de nós?
*Bispo de Lamego
D. António Couto *