Reflexão litúrgico-pastoral Para o domingo iii do tempo comum

A urgência da conversão

 A urgência da conversão  POR-003
18 janeiro 2024

Neste Domingo iii do Tempo Comum é-nos dada a graça de escutar o Evangelho de Marcos 1, 14-20. Não é a primeira vez que Jesus surge em cena. Já o tínhamos contemplado a dirigir-se da Galileia para o Rio Jordão, para ser batizado por João Batista (Mc 1, 9). Mas ainda não tínhamos ouvido a sua voz. Ouvimo-la agora pela primeira vez. Serão então dizeres importantes e programáticos, isto é, indicadores da missão que vem desempenhar.

2. Mas antes de ouvirmos, pela primeira vez, a voz de Jesus, anotemos desde já dois notáveis dizeres do narrador, que atravessam em filigrana o inteiro Evangelho de Marcos, unindo os caminhos e os destinos de João Batista, de Jesus e dos seus discípulos. O primeiro é este: «Depois de João ter sido entregue (paradothênai: inf. aor. pass. de paradídômi)» (Mc 1, 14a). Trata-se de uma prolepse, que serve para ver já o que irá suceder também a Jesus, acerca de quem o verbo será usado por 13 vezes neste Evangelho (Mc 3, 19; 9, 31; 10, 33; 14, 10.11.18.21.41.42.44; 15, 1.10.15), e aos seus discípulos (Mc 13, 9.11.12). O segundo é o uso do verbo anunciar (kêrýssô) para traduzir o afazer primeiro de Jesus (Mc 1, 14b). E, mais uma vez, este verbo é um fio condutor que une Jesus (Mc 1, 14.38.39), João Batista (Mc 1, 4.7), os Doze (Mc 3, 14; 6, 12), algumas pessoas curadas por Jesus (Mc 1, 45; 5, 20; 7, 36) e a Igreja de Jesus (Mc 13, 10; 14, 9). Mas o verbo grego kêrýssô (anunciar), antes de nos fazer dizer ou escutar mensagens, implica a radical fidelidade do anunciador ou mensageiro em relação a quem lhe confia a mensagem e o envia a anunciá-la. Fica, portanto, claro que antes de pregar, ensinar e curar, Jesus, os seus discípulos, a sua Igreja, têm de ser mensageiros fiéis, sempre vinculados a Deus, e a sua primeira missão é testemunhar esta proximidade e compromisso. Em poucas palavras: o mensageiro tem de ser transparente e deixar ver em contraluz aquele que o envia. E pode perceber-se agora bem o conteúdo da mensagem: «O Evangelho de Deus» (Mc 1, 14b). Sem equívocos, então: a primeira coisa que fica expressa com esta linguagem é que Jesus, o seu precursor (João Batista) e os seus seguidores (discípulos), se apresentam completamente vinculados a Deus e ao seu Evangelho [= «Notícia Feliz»], vivem de Deus e da Sua Notícia Boa, não agem por conta própria, não são emissores da sua própria sabedoria ou opinião.

3. E aí está então o primeiro dizer de Jesus, articulado em duas declarações inseparáveis: «Foi cumprido (peplêrotai: perf. pass. de plêróô) o tempo (ho kairós), e fez-se próximo (êggiken: perf. de eggízô) o Reino de Deus (he basileía toû theoû)» (Mc 1, 15). O acento cai sobre os dois perfeitos verbais que abrem enfaticamente as declarações, e revelam que o Evangelho é em primeiro lugar o anúncio da iniciativa divina, Deus em ação, que abre ao homem novas e belas perspetivas. O perfeito passivo (peplêrotai), que qualifica o kairós, indica bem que Jesus não se refere a qualquer segmento de tempo cronológico, mas àquele tempo e modo específico da intervenção definitiva de Deus e da adequada resposta humana. Só Deus pode agir sobre o tempo cronológico, tornando-o kairós, isto é, tempo grávido de alegria, de esperança e de salvação. Uma vez mais, o anúncio precede a ordem: Jesus não começa com normas e exigências, mas assinala quanto Deus já fez e está a fazer, por sua gratuita iniciativa, em nosso favor. Só depois, e como normal consequência, surgem na boca de Jesus dois imperativos: «Convertei-vos (matanoeîte) e acreditai (pisteúete) no Evangelho» (Mc 1, 15), que traduzem o que compete aos homens fazer. Jesus não é um moralista, nem sequer um Evangelizador. Ele é o Evangelho e o Evangelizador.

4. Vem logo, para não se afastar da fonte, o tempo de chamar, de romper amarras, de «ir atrás de» de Jesus que passa (Mc 1, 16-20). Mas tudo começa ainda com o ver e o fazer primeiros e criadores de Jesus. Jesus viu (eîden) Simão e André, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores (Mc 1, 16), e disse-lhes: «Vinde atrás de mim, e farei (poiêsô) que vos torneis pescadores de homens» (Mc 1, 17). Verbos-chave: ver e fazer. É o ver e o fazer do Criador, como se lê no cenário da Criação (Gn 1). Continuando a passar, Jesus viu Tiago e João, que estavam com o seu pai, na barca, a remendar as redes (Mc 1, 19). Logo os chamou, e eles, deixando o pai na barca, foram «atrás dele» (Mc 1, 20). Está em cena um verdadeiro chamamento de Jesus. É dele toda a iniciativa. Não são os discípulos que se apresentam a Jesus, pedindo trabalho. E não é como colaboradores, com remuneração e férias asseguradas, que Jesus os assume. Jesus apenas e chama. Espanta aquele «imediatamente, deixando as redes, seguiram-no» (Mc 1, 18). Sem reticências nem calculismos. E nem sequer sabem onde os conduzirá o caminho em que agora entram. Confiança total em Jesus.

5. Consideradas as condições de trabalho em que os quatro pescadores estavam envolvidos, e a importância da pesca no mundo pobre da Galileia, a ordem de Jesus parece completamente disruptiva. Mas a resposta dos chamados é excessiva, imediata e radical: «Imediatamente (euthéôs), deixando as redes, seguiram-no!» (Mc 1, 18). Note-se, no entanto, que aquele «Vinde atrás de mim» não tem o tom de um convite; é uma exigência. Não se trata tanto do dizer de um Mestre, mas de um Profeta, ao jeito do chamamento de Elias a Eliseu (cf. 1 Rs 19, 19-21). É normal os discípulos seguirem o Mestre, «atrás do Mestre», mas já não é usual ser o Mestre a chamá-los; são os discípulos que devem procurar um Mestre. Por outro lado ainda, a atividade própria do Mestre é ensinar, mas no caso deste chamamento, Jesus parece ter em vista uma estranha atividade de pesca: «Farei que vos torneis pescadores de homens». Compreende-se a metáfora da pesca no seguimento da ocupação acabada de descrever daqueles quatro chamados, mas fica em aberto a natureza da nova pesca acenada por Jesus: de quê e para quê pescar pessoas? Jeremias 16, 16 põe Deus a falar e a dizer: «Enviarei muitos pescadores para a pesca, e pescá-los-ão». É a mesma metáfora da pesca, mas trata-se aqui de reunir os pecadores para o julgamento. É aqui que encaixa a pesca proposta por Jesus face à Vinda do Reino de Deus. Daí também a exigência da conversão ordenada por Jesus. E a força daquele chamamento feito por Jesus àqueles pescadores. Lendo outra vez as palavras de Jesus, percebemos que não se trata de convidar, mas de exigir, método de Profeta, e não de Mestre. E falar de «pescadores para pescar homens» é também linguagem profética e tem em vista o julgamento de Deus.

O chamamento disruptivo de Jesus e a resposta radical destes pescadores compreende-se na urgência criada pela proximidade do Reino de Deus, a que nada se deve antepor. Nada é primeiro em relação ao Reino de Deus: nem sepultar o próprio pai ou despedir-se dos familiares (Lc 9, 59-61). «Quem lança as mãos ao arado e olha para trás não está apto para o Reino de Deus» (Lc 9, 62). E o Reino de Deus não tem fronteiras, nem bandeiras, nem moeda própria. Não está aqui ou ali. Não é deste mundo. O Reino de Deus é o próprio Jesus Cristo com o Espírito Santo. Ele é o Reino em pessoa (hê autobasileía), conforme o belo dizer de Orígenes. É, então, face a Ele que nos devemos converter. É a voz dele que temos de ouvir. É o seu caminho que temos de seguir. O Reino de Deus, Jesus, põe-nos em cheque e em causa. Daí a urgência da conversão, daquele chamamento e daquela resposta urgente.

6. Perante o que nos é dado ver, uma primeira pergunta nos assalta, irrompendo sobre nós como uma onda súbita: quem pode dar uma ordem assim absoluta? Mas, ainda antes de esboçarmos a resposta, já uma segunda vaga, que tempera a primeira, cai sobre nós: Quem merece uma tal confiança?

7. Lembramos que a Igreja celebra neste Domingo iii do Tempo Comum o Domingo da Palavra de Deus. Com a Carta Apostólica  Aperuit Illis  [«Abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras» (Lc 24, 45)], sob a forma de  Motu proprio, datada de 30 de setembro de 2019, memória litúrgica de São Jerónimo e abertura da celebração do 1600º aniversário da sua morte (30 de setembro do ano 420), o Papa Francisco instituiu esta celebração anual neste Domingo.

8. É uma feliz oportunidade para toda a Igreja se debruçar com veneração sobre a Palavra de Deus, que deve escutar com amor e diligência, e da mesma maneira viver e anunciar, dado que a Palavra de Deus constitui para o cristão alimento indispensável. São Jerónimo dedicou-lhe toda a sua vida e atenção, e deixou escrita esta maravilha: «Que alimentos ou que doces são mais saborosos do que o conhecimento de Deus, a contemplação do pensamento do Criador, a instrução da Palavra de Deus? Que os outros possuam as suas riquezas! Para nós, seja a nossa delícia a meditação da Palavra de Deus dia e noite».

*Bispo de Lamego

D. António Couto *