Reflexão litúrgico-pastoral
O Evangelho deste Domingo iii do Advento põe outra vez em cena a figura central de João Batista (Jo 1, 6-8.19-28). Lendo, porém, atentamente o texto do iv Evangelho, compreende-se que não convém a João o título de Batista, como se vê nos Evangelhos Sinóticos, em que aparece designado como «João o Batista» (Iôánnês ho baptistês) (Mt 3, 1; 11, 11; 14, 8) ou «João o que batiza (Iôánnês ho baptízôn) (Mc 1, 4). Na verdade, no iv Evangelho, ainda que se diga que batiza, nunca é dado a João o título de «Batista». Se algum título se ajusta ao João do iv Evangelho é o de «Testemunha», pois é para dar testemunho (martyréô) da Luz que ele se apresenta (Jo 1, 7-8). João aparece como que entalado entre os dois Testamentos, fechando, em modos de resumo, a porta do Antigo, e abrindo, em modos de sumário, a porta do Novo. O seu nome de «João», hebraico Yhôhanan, que significa « yhwh faz graça», a isso se presta admiravelmente, resumindo bem o afazer de Deus em todo o Antigo Testamento, e oferece o sumário de todo o Novo Testamento. «Deus faz graça» é todo o afazer de Deus na Escritura Santa. Além disso, o nome «João» dado a este menino não é um nome nosso, suportado pelos nossos registos civis, como bem constatam os seus familiares reunidos, aos oito dias, para a festa da circuncisão e da dádiva do nome. O habitual era dar ao filho varão primogénito o nome do pai ou de algum familiar próximo, o que não se verifica neste caso. O pai chamava-se Zacarias, e ninguém, entre os seus parentes, tinha o nome de João (Lc 1, 61), motivo pelo qual todos ficaram admirados (Lc 1, 63).
2. Se o nome dado ao menino sai dos moldes habituais, temos então de indagar mais a fundo o porquê deste dado novo. E veremos então que esse nome veio do céu, como refere o Evangelho de Lucas que põe o arcanjo Gabriel a reportar a Zacarias que o menino se chamaria João (Lc 1, 13). E o iv Evangelho di-lo com todas as letras e sem rodeios: «Apareceu um homem enviado por Deus, chamado João» (Jo 1, 6). João surge, portanto, neste imenso texto do iv Evangelho sem qualquer amarra a este mundo: sem pai nem mãe (Zacarias e Isabel nem sequer são mencionados), sem proveniência terrena, sem introdução, sem luz própria. Só Deus o precede, o acompanha e o sustenta.
3. Como pode, pois, responder aos sacerdotes e levitas enviados pelos Judeus, de Jerusalém, que põem a João a questão acerca da sua identidade, assim formulada: «Quem és tu?» (Jo 1, 19). João não faz mais do que desviar de si mesmo todas as atenções. A sua resposta é uma rotunda negação: não sou, não sou, não sou! não sou a Luz, não sou o Messias, não sou Elias, não sou o Profeta! (cf. Jo 1, 20-21). E dirige todas as atenções para a luz , de quem dá testemunho, de quem é reflexo. João nunca responde: « eu sou ...». Mesmo quando responde à pergunta: «Para que possamos dar uma resposta àqueles que nos enviaram, que dizes de ti mesmo?» (Jo 1, 22), João não responde, como aparece vulgarmente nas traduções: «Eu sou a voz do que clama no deserto» (Jo 1, 23), mas literalmente: «Eu? A voz (phônê) do que clama no deserto», evitando cuidadosamente a locução « eu sou », que fica reservada para Jesus! E, ainda assim, tomando sempre as devidas precauções, João diz «voz» (phonê), e não «palavra» (lógos). Porque a Palavra (lógos) é também Jesus.
4. Sim, a luz , o eu sou , a palavra é Jesus. Mas Jesus é ainda, no certeiro dizer de João, « quem está no meio de vós» (Jo 1, 26). É de Jesus o lugar de honra e a chave da nossa existência. E dizemos sempre várias vezes na liturgia: ele está no meio de nós! Face ao meio , no iv Evangelho, João aparece sempre «no outro lado do Jordão» (Jo 1, 28; 3, 26; 10, 40), fora da Terra Prometida, mas apontando sempre para ela e para ele . João é a inteira Escritura apontando jesus em contraluz, em filigrana pura!
5. Voltamos a ouvir neste Domingo a metáfora das sandálias do Messias noivo, que já tínhamos encontrado no Domingo passado, e que leva João a confessar a sua incapacidade para lhe desatar as correias (Jo 1, 27). Trata-se de um dizer importante, pois encontramo-lo por cinco vezes no Novo Testamento: Mt 3, 11; Mc 1, 7; Lc 3, 16; Jo 1, 27; At 13, 25. Dissemos no Domingo passado que não se trata simplesmente de uma confissão de humildade por parte de João face ao Messias-que-Vem. Trata-se, antes, de chamar a atenção para o Messias como noivo de Israel. De acordo com o referido nos Salmos 60, 10 e 108, 9, «pôr a sandália sobre» significa «tomar posse de»; é, portanto, linguagem jurídica de posse. Passando do simples direito de posse para o direito matrimonial, vemos no Livro do Deuteronómio 25, 5-9 que o não-cumprimento da lei do levirato implica que seja retirada a sandália ao cunhado não cumpridor da lei, gesto que garante a sua perda de posse no domínio matrimonial. Aqui já se trata de direito matrimonial. Em Rute 4, 7-10, temos um caso jurídico concreto em que o que tem o direito de resgatar o património e de desposar Rute prescinde desse direito. Para o dizer juridicamente, em reunião pública realizada à porta da cidade (Rt 4, 1), o homem em causa tira a sandália e entrega-a a Booz, que é o segundo na escala, que fica assim com o direito de resgatar o património e de desposar Rute. A metáfora das sandálias em Jo 1, 27 e nos demais dizeres do Novo Testamento que anotámos significa também que é Jesus o noivo, a quem assiste o direito de desposar Israel, e que a João não assiste esse direito ou competência, mas é do ato uma importante testemunha.
6. A luminosa página de Isaías 61, 1-2.10-11 traça a vocação e a missão do anónimo profeta pós-exílio. Vocação e missão a transbordar de alegria e de beleza, que Jesus faz sua quando, na sinagoga de Nazaré, lhe apõe a sua assinatura com aquele: «Hoje cumpriu-se esta Escritura nos vossos ouvidos» (Lc 4, 21). Trata-se de um verdadeiro tornado que muda a história religiosa dos filhos de Deus, contagiando também a inteira criação.
7. Maria também canta essa alegria no magnificat (Lc 1, 46-54), hoje, Domingo da Alegria, elevado a Salmo responsorial. E nós com ela, de geração em geração (Lc 1, 48). Isabel foi a primeira a proclamar «Feliz», «Bem-Aventurada» (makaría) Maria, porque acreditou no cumprimento (teleíôsis) de tudo o que lhe foi revelado (laléô) da parte do Senhor (Lc 1, 45). Maria «cumprimentada» por Deus, por Isabel, por cada um de nós. Sim, porque Maria é a «causa da nossa alegria», como cantamos na sua litania. E é-o porque foi olhada com um olhar de graça (epiblépô) por Deus (Lc 1, 48), que fez (verbo da criação) para ela grandes coisas (Lc 1, 49), e assim vinha fazendo desde Abraão (Lc 1, 55), e assim continua a fazer ainda hoje e sempre.
8. E São Paulo, na sua Primeira Carta aos Tessalonicenses (5, 16-24), também se associa a esta onda de Alegria, com o seu estilo próprio, sobrecarregado de imperativos e de totalidade: «Alegrai-vos sempre! Orai sem cessar! Em tudo dai graças [...]. Não apagueis o Espírito. Examinai tudo: guardai o que é bom!» (1 Ts 5, 18-19).
9. Neste tempo, com tantos cristãos doentes, dormentes, parados, anémicos e anestesiados, e outros apagados ou atolados em tristes banalidades, sobram hoje incentivos para uma vida nova. No meio do frio próprio do tempo, o Domingo iii do Advento atira-nos uma imensa chama de Alegria. Tempo novo. Jesus, a Luz, no Meio. E nós por perto, ao redor dessa fogueira. Haverá, por certo, assim esperamos, mais termostatos, e menos termómetros.
D. António Couto
Bispo de Lamego