Amados irmãos e irmãs!
Estou grato ao Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral por ter organizado este simpósio de reflexão sobre a Evangelii gaudium, dez anos depois da sua publicação.
Naquela ocasião, dirigi-me aos cristãos para os convidar a uma nova fase no anúncio do Evangelho. Propus recuperar a alegria missionária dos primeiros cristãos, «cheios de coragem, incansáveis no anúncio e capazes de grande resistência ativa»,1 até num contexto que, naturalmente, «não era favorável ao anúncio do Evangelho, nem à luta pela justiça, nem à defesa da dignidade humana».2 Foram difamados, perseguidos, torturados, assassinados... e, no entanto, em vez de se fechar, foram o paradigma de uma Igreja em saída, que «soube tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas das estradas para convidar os excluídos».3
Também no nosso tempo existem dificuldades, menos explícitas mas talvez mais insidiosas. Não sendo tão visíveis, agem como uma anestesia ou como o monóxido de carbono dos velhos fogões, que mata silenciosamente. «Em cada momento da história existe a fraqueza humana, a busca doentia de si mesmo, o egoísmo conveniente e, em última análise, a concupiscência que ameaça todos nós. Esta realidade está sempre presente, de uma forma ou de outra».4
O anúncio do Evangelho no mundo atual continua a exigir da nossa parte «uma resistência profética, como alternativa cultural, diante do individualismo hedonista pagão»,5 como a dos Padres da Igreja, resistência perante um sistema que mata, exclui e destrói a dignidade humana; resistência face a uma mentalidade que isola, aliena e limita a vida interior aos próprios interesses, afastando-nos do próximo e de Deus.
Na Evangelii gaudium, eu quis mostrar claramente que, chamados a ter «os mesmos sentimentos de Jesus Cristo», a nossa missão evangelizadora e a nossa vida cristã não podem negligenciar os pobres. «Todo o caminho da nossa redenção é marcado pelos pobres».6 Todo! A começar pela sua Mãe, a Virgem Santa, uma jovem pobre da periferia remota de um grande império. O próprio Jesus que se fez pobre, que nasceu num estábulo entre animais e camponeses, que cresceu entre operários e ganhou a vida com as próprias mãos e que se circundou de multidões de deserdados, identificou-se com eles, colocou-os no centro do próprio coração, anunciou-lhes primeiro a Boa Nova, prometeu-lhes o Reino dos Céus e enviou todos nós, discípulos missionários, para lhes dar de comer, para lhes distribuir com justiça os bens e defender a sua causa, a ponto de nos indicar claramente que «a misericórdia para com eles é a chave do céu» (cf. Mt 25, 35s).7
«É uma mensagem tão clara, tão direta, tão simples e eloquente, que nenhuma hermenêutica eclesial tem o direito de a relativizar»,8 também porque aqui está em jogo a nossa salvação. Por isso, o Papa não pode deixar de colocar os pobres no centro. Não é política, não é sociologia, não é ideologia, é pura e simplesmente a exigência do Evangelho. As implicações práticas que este princípio indiscutível pode ter em cada contexto, sociedade, pessoa e instituição — nos organismos internacionais e nos governos, nos sindicatos e nos movimentos populares, nas empresas e nas instituições financeiras, nos políticos, nos juízes e nos meios de comunicação social — podem e devem variar, mas aquilo a que ninguém pode subtrair-se ou eximir-se é a dívida de amor que cada cristão — e, ouso dizer, cada ser humano — tem para com os pobres.
A Igreja pode encontrar nos pobres o vento que reacende a chama de um fervor em declínio, como aquele líquido espesso com que os antigos sacerdotes, no tempo de Neemias, reacenderam o fogo do altar depois do exílio, para que resplandecesse «uma grande fogueira, para o assombro de todos».9 No amor ativo que devemos aos pobres está a atenção ao «grande perigo do mundo atual, com as suas múltiplas e opressivas ofertas de consumo; é uma tristeza individualista que brota de um coração acomodado e mesquinho, conotado pela busca doentia de prazeres superficiais e por uma consciência isolada».10
Na Evangelii gaudium, sem pretender o monopólio da interpretação da realidade social, afirmei que, para resolver radicalmente os problemas dos pobres, condição necessária para resolver qualquer outro problema, uma vez que a desigualdade é raiz dos males sociais, era necessária uma profunda mudança de mentalidade e de estruturas. Gostaria de falar brevemente sobre estes dois aspetos, inspirando-me nalguns parágrafos da Exortação.
Uma nova mentalidade
«Uma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns».11
«A solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade particular. A posse particular dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho a outras transformações estruturais, tornando-as possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes».12
«Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos povos mais pobres da terra, porque “a paz se funda não só no respeito pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos”. Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados como justificação para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos dos povos mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de cada Nação, é preciso recordar-se sempre de que o planeta é de toda a humanidade e para toda a humanidade, e que a simples constatação de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente. É preciso repetir que “os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poder colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros”. Para falar adequadamente dos nossos direitos, é preciso ampliar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou de outras regiões do próprio país. Devemos crescer numa solidariedade que “permita a todos os povos tornar-se artífices do seu destino”, tal como “cada homem é chamado a desenvolver-se”».13
Novas estruturas sociais
As novas estruturas, baseadas nesta renovada mentalidade, devem «renunciar à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira, e agredir as causas estruturais das desigualdades».14
«A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem somente apêndices adicionados de fora para completar um discurso político sem perspetivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objeto de uma manipulação oportunista que as desonra. A confortável indiferença diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado. A vocação de um empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos».15
«Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos».16
Se não conseguirmos alcançar esta mudança de mentalidade e de estruturas, seremos condenados a ver como se aprofundam as crises climática, sanitária e migratória e, em particular, a violência e as guerras, que põem em perigo toda a família humana, pobres e não pobres, integrados e excluídos, pois «estamos todos no mesmo barco e somos chamados a remar juntos».
Na Evangelii gaudium procurei alertar para a seguinte situação:
«Hoje, em muitas partes, reclama-se maior segurança. Mas, enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos será impossível desarraigar a violência. Acusam-se da violência os pobres e as populações mais pobres, mas sem igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há de provocar a explosão. Quando a sociedade — local, nacional ou mundial — abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reação violenta de quantos são excluídos do sistema, mas porque o sistema social e económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça. Se cada ação tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas de uma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor. Estamos longe do chamado “fim da história”, já que as condições de um desenvolvimento sustentável e pacífico ainda não estão adequadamente implantadas e realizadas».17«Os mecanismos da economia atual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente daninho para o tecido social. Assim, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera uma violência que as corridas armamentistas não resolvem e jamais poderão resolver. Servem apenas para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje não se soubesse que as armas e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução numa “educação” que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos veem crescer este câncer social, que é a corrupção profundamente radicada em muitos países — nos seus Governos, empresários e instituições — seja qual for a ideologia política dos governantes».18
Do mesmo modo, as crises climática, sanitária e migratória mergulham as suas raízes na iniquidade desta economia que mata, descarta e destrói a irmã mãe terra, na mentalidade egoísta que a sustenta, de que falei mais detalhadamente na Laudato si’. Engana-se quem pensa que se pode salvar sozinho, neste ou no outro mundo.
Dez anos depois da publicação da Evangelii gaudium, reafirmamos que só se escutarmos o clamor muitas vezes sufocado da terra e dos pobres poderemos cumprir a nossa missão evangelizadora, levar a vida que Jesus nos propõe e contribuir para resolver os graves problemas da humanidade.
Mais uma vez, obrigado por este Simpósio!
Obrigado pelo que fazeis. Abençoo-vos e acompanho-vos com a oração. E vós, por favor, não vos esqueçais de orar por mim!
Cidade do Vaticano, 24 de novembro de 2023.
Francisco
1 Exortação apostólica Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), n. 263.
2 Ibidem.
3 Ibidem, n. 24.
4 Ibidem, n. 263.
5 Ibidem, n. 193.
6 Ibidem, n. 197.
7 Ibidem.
8 Ibidem, n. 194.
9 2 Mac 1, 22.
10 Exortação apostólica Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), n. 2.
11 Ibidem, n. 188.
12 Ibidem, n. 189.
13 Ibidem, n. 190.
14 Ibidem, n. 202.
15 Ibidem, n. 203.
16 Ibidem, n. 204.
17 Ibidem, n. 59.
18 Ibidem, n. 60.