Reflexão litúrgico-pastoral Para o domingo xxxiv do tempo comum e solenidade de Cristo Rei do universo

Amor novo e subversivo

 Amor novo e subversivo  POR-047
23 novembro 2023

A«Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei» foi instituída pelo Papa Pio xi , em 11 de dezembro de 1925, com a Carta Encíclica Quas Primas. Os tempos apresentavam-se sombrios e turvos e os céus nublados como os de hoje, e Pio xi , homem de ação, que já tinha fundado a Ação Católica em 1922, instituiu então esta Festa com o intuito de promover a militância católica e ajudar a sociedade a revestir-se de valores cristãos. A Festa de Cristo Rei era então celebrada no último Domingo de outubro. A reorganização da Liturgia no pós-Concílio passou esta Festa para o último Domingo do Ano Litúrgico, com o título de «Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo». É esta Solenidade que hoje celebramos.

2. «O Senhor reina». É assim que, no Antigo Testamento, o Deus bíblico se apresenta em ação reinando, isto é, salvando, justificando, perdoando, criando. Na verdade, biblicamente falando, reinar é salvar, isto é, trazer o bem-estar, a alegria e a prosperidade ao seu Povo. É esta a missão do Rei. Salvar é justificar, o que implica a extraordinária ação de transformar um pecador em justo. Justificar é, portanto, perdoar. Neste profundo sentido bíblico, justificar e perdoar são ações que só Deus pode fazer, dado que transformar um pecador em justo é igual a criar ou recriar um homem novo. E da ação de criar também só Deus é sujeito em toda a Escritura. Já se sabe que o Novo Testamento transforma o ativo «Deus reina» no mais abstrato «Reino de Deus», expressão que ressoa no Novo Testamento por mais de 160 vezes.

3. Tanta e quase indescritível riqueza a de um Deus, sentado no seu trono de Luz, mas que Vem, como um Filho do Homem, com o domínio novo, frágil e forte, do Amor: «Aquele que nos ama» (Ap 1, 5). Da lição do Livro de Daniel 7, 13-14 e respetivo contexto, vê-se bem que todos os nossos impérios prepotentes e ferozes, por mais fortes que pareçam, caem face à doçura da Palavra e da Atitude do Filho do Homem, que dissolve no Amor as nossas raivas e violências, manifestações das bestas bravas que nos habitam. O Filho do Homem vence, sem combater, este combate. É assim que caem as quatro bestas ferozes que sobem do mar (Dn 7), símbolo da confusão e do mal, e que deixará naturalmente de existir (Ap 21, 1).

4. O domínio do Filho do Homem que nos ama, o domínio do Amor, é Primeiro e Último (Ap 1,8). Entre o Primeiro e o Último instala-se o penúltimo, que é o domínio velho e podre da violência das bestas ferozes que nos habitam. O Bem é de sempre e é para sempre. Por isso, é Primeiro e é Último. O Bem não começou, portanto. O que começou foi o mal que se foi insinuando nas pregas do nosso coração empedernido. Mas o que começa, também acaba. Os impérios da nossa violência, malvadez e estupidez caem, imagine-se, vencidos por um Amor que é desde sempre e para sempre, e que vence, sem combater, a nossa tirania e prepotência!

5. Entenda-se bem que tem de ser sem combater. Porque, se combatesse, usaria os nossos métodos violentos, o que só aumentaria a violência. É assim que Jesus atravessa as páginas dos Evangelhos e da nossa história e da nossa vida, entregando-se por Amor à nossa violência, abraçando-a e, portanto, absorvendo-a, absolvendo-a e dissolvendo-a. É assim que o Amor Reina, nos Salva, Justifica, Perdoa e Recria. Os Chefes dos Judeus, os Soldados e Pilatos representam os impérios envelhecidos, podres e caducos da nossa violência e estupidez. O Reino do Filho do Homem não pode, na verdade, ser daqui (cf. Jo 18, 33-37). Se fosse daqui, apenas aumentaria a espiral da mentira, da ganância e da violência. É de Amor novo e subversivo, transformante, que se trata.

6. Aí está então a página divina do Evangelho deste Último Domingo do Ano Litúrgico, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo: Mt 25, 31-46. Texto espantoso. Surge em cena o Filho do Homem, o Pastor, o Rei, mas vê-se bem que é Jesus, o Senhor. Reúne e cria, separando (Mt 25, 31-33), como sucede no texto da criação de Gn 1, 1-2, 4a. A mansidão é a nota maior deste Rei, Pastor, Filho do Homem, Jesus e Senhor, que domina os animais, separando os mansos (ovelhas) dos violentos e orgulhosos (cabras). Mas esta ação de separação acontece apenas no entardecer da vida e da história, tal como sucede, para muito espanto nosso, ao trigo e à cizânia da parábola de Mt 13, 30-31 e 36-43. Para muito espanto também de João Batista que tinha anunciado um Messias que vinha aí, já e em força, com o machado e a pá de joeirar (cf. Mt 3, 10 e 12) para proceder aos devidos ajustes de contas com aquela geração má e perversa.

7. A parábola de hoje, que difere para o final do Evangelho e da história a separação «já e em força» proclamada por João Batista e por nós tanto apetecida, mostra em Jesus um Messias, Rei e Senhor, que não comunga da nossa atração sádica pelo espetáculo ávido de sangue, mas vem revestido da mansidão do Servo do Senhor, de Isaías 42, 1-4, que é, por sinal e de forma significativa, a mais longa citação do Antigo Testamento que o Evangelho de Mateus faz em 12, 18-21, retratando com ela Jesus, o Rei manso e novo que desconcerta João Batista e a nós também. O referido texto de Isaías 42, 2 diz do Servo do Senhor que «não fará ouvir desde fora a sua voz». Fica então claro que, se não faz ouvir a sua voz desde fora, só a pode fazer ouvir desde dentro. O grande pensador do século xx , de origem hebraica, Emmanuel Levinas, glosava, nas suas lições talmúdicas, este texto em sentido messiânico, escrevendo que «o Messias é o único Rei que não reina desde fora». Se não reina desde fora, então não reina com poder, dinheiro, armas ou decretos. Se não reina desde fora, então só pode reinar desde dentro, aproximando-se das pessoas, descendo ao nível das pessoas, amando as pessoas, salvando as pessoas. Jesus, Rei manso e novo, vai assumir por inteiro a identidade deste Servo e vai cumprir a sua missão.

8. Em ordem a uma melhor compreensão do andamento do imenso texto de Mateus 25, 31-46, importa notar que começa com um cenário descritivo introdutório (v. 31-33) ( a 1) e termina com um cenário descritivo conclusivo (v. 46) ( a 2). Entre os dois cenários descritivos que abrem e fecham o movimento do texto ( a 1- a 2), bem no centro da estrutura, surge a ação da Palavra, o dizer (v. 34-45), que podemos distribuir em duas vagas: um dizer positivo, dizer sim (v. 34-40) ( b 1), e um dizer negativo, dizer não (v. 41-45) ( b 2).

9. Lendo este imenso texto e captando o seu movimento, não passará despercebido a ninguém que o seu centro reside nas duas vagas que mostram a ação de dizer sim (v. 34-40) ( b 1) ou de dizer não (v. 41-45) ( b 2), uma e outra em consonância com a ação de fazer (v. 40) ou de não fazer (v. 45). Na verdade, aquela declaração afirmativa de Jesus: «Tive fome e destes- me de comer (1), tive sede e destes- me de beber (2), era estrangeiro e recolhestes- me (3), nu e vestites- me (4), estive doente e visitastes- me (5), estava na prisão e viestes ter comigo (6)» (v. 35-36), tem um alcance quase incontornável e insuperável, que não se confina neste pequeno imenso texto de Mateus, mas se insinua nas pregas e interstícios da Bíblia inteira, linhas e entrelinhas.

10. Diz-nos São João, no prólogo do seu Evangelho, que «foi pelo Verbo que tudo foi feito» (Jo 1, 3), e São Paulo escreve, na Carta aos Colossenses, que «n’Ele foram criadas todas as coisas» (1, 16), para acentuar depois, na sua Segunda Carta aos Coríntios, que o «Filho de Deus, Jesus Cristo [...], não foi “sim e não”, mas unicamente “sim”» (2 Cor 1, 19). Acentuações teológicas ricas e densas, que ganham ainda uma maior intensidade, se verificarmos que a narrativa de Gn 1, 1-2,4a, a grande narrativa da Criação, se compõe de 452 palavras hebraicas, não registando, todavia, o que é absolutamente espantoso, um único «não»! Esplêndida e contagiante harmonia das Escrituras. O denso texto de Gn 1,1-2, 4a, como o nosso texto de Mateus 25, 35-36, que fornece a base das nossas «obras de misericórdia», não contêm nenhuma negação! Antes, são uma extraordinária afirmação que se insinua em todas as linhas e entrelinhas da Escritura Santa, e que mantém o ser humano em permanente tensão e atenção, para mais quando Jesus nos revela que os pobres e necessitados a quem prestámos assistência são, na verdade, seus irmãos (v. 40). E mais ainda: todo o bem que fizemos a um desses pequeninos, foi, na verdade, feito ao próprio Jesus (v. 40). Vê-se bem que Jesus, o Senhor do sim , por quem tudo foi feito, em quem tudo foi criado, anda muito metido nos nossos caminhos lamacentos ou empedrados, mas sempre tortuosos, e pede a nossa esmola em cada esquina, e quer que o nosso «fazer» seja criador, sempre marcado pelo sim , como o d’Ele.

11. Toda a atenção, portanto, uma vez que o próprio Jesus se cruza connosco, todos os dias, nos nossos caminhos tortuosos e lamacentos. Mas atenção sobretudo, porque «negar» é «não-dizer-sim» (ne-aiere) ao rosto nu e interpelante do outro, e «não-dizer-sim» ao rosto nu e interpelante do outro é não responder ao apelo-mandamento do seu rosto nu e interpelante, e não responder ao rosto nu e interpelante do outro define-se como «indiferença», pelo que, nos interstícios de negare [neg, forma reforçada de ne], já se entrevê necare [= matar]. Veja-se então, em contraluz, o peso insuportável daquela declaração negativa de Jesus: «Tive fome e não me destes de comer (-1), tive sede e não me destes de beber (-2), era estrangeiro e não me recolhestes (-3), nu e não me vestistes (-4), estive doente e na prisão e não me visitastes (-5 e -6) (v. 42-43)», situação bem retratada na confissão de Caim, o assassino do seu irmão: «A minha culpa é demasiado pesada para a suportar» (Gn 4, 13). Mas também o orante que reza nos Salmos confessa: «As minhas culpas estão em acima da minha cabeça; como um fardo pesado, são demasiado pesadas para mim» (Sl 38, 5).

12. A selar a declaração afirmativa de Jesus, encontramos uma dupla afirmação sobre o «fazer»: «Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um destes meus irmãos, os mais pequenos, a mim o fizestes» (v. 40). O mesmo acontecendo no final da declaração negativa de Jesus, com uma dupla afirmação sobre o «não-fazer»: «Em verdade vos digo: cada vez que não o fizestes a um destes, os mais pequenos, também a mim o não fizestes» (v. 45). O narrador informa-nos, no v. 46, que estes vão para o «castigo eterno», a que Jesus já tinha chamado «fogo eterno» (v. 41), e os justos para a «vida eterna», a que Jesus já tinha chamado «Reino para vós preparado» (v. 34), em linha com a formulação das Bem-Aventuranças 1.ª e 8.ª (Mt 5, 3 e 10). A condenação aqui mostrada, sem que outros critérios tenham sido considerados no âmbito da fé ou da moral, assenta na inação. Tal como nas duas parábolas que precedem imediatamente o nosso texto de Mateus 25, 31-46, a parábola das dez virgens (Mt 25, 1-13) e a parábola dos talentos (Mt 25, 14-30), sucede às virgens insensatas, que não se prepararam, e ao servo que ficou paralisado pelo medo, e enterrou o seu talento. As virgens insensatas e o servo que nada fez não se aperceberam da atenção vigilante, da prontidão e da urgência que o Reino dos Céus requer de nós.

*Bispo de Lamego

D. António Couto *