Mensagem de Francisco por ocasião do Dia mundial da alimentação

A água não é mercadoria mas direito e bem comum

 A água não é mercadoria  mas direito e bem comum  POR-042
19 outubro 2023

«Nunca devemos considerar a água uma mera mercadoria, um produto de troca, um objeto de especulação», escreveu o Papa Francisco na mensagem enviada ao diretor-geral da fao por ocasião do Dia mundial da alimentação, que este ano tem como tema “Água é vida, água é alimento. Não deixar ninguém para trás”.

A Sua Excelência
O senhor Qu Dongyu
Diretor-geral da
fao

Excelência!

O Dia Mundial da Alimentação celebra-se numa conjuntura em que a miséria e o desalento não dão tréguas a numerosos dos nossos irmãos. Com efeito, o grito de angústia e desespero dos pobres deve despertar-nos da letargia que nos aflige e interpelar as nossas consciências. A condição de fome e subalimentação que fere gravemente tantos seres humanos é o resultado de uma acumulação iníqua de injustiças e desigualdades que deixa muitos à deriva na sarjeta da vida, permitindo que poucos se instalem numa condição de ostentação e opulência. Isto é válido não só para a alimentação, mas também para todos os recursos básicos, cuja inacessibilidade para muitas pessoas representa uma afronta à sua dignidade intrínseca, doada por Deus. Sem dúvida, é um insulto que deveria fazer corar toda a humanidade e mobilizar a Comunidade internacional!

Neste sentido, o tema que está no centro das reflexões do Dia deste ano, “Água é vida, água é alimento. Não deixar ninguém para trás”, convida-nos a ressaltar o valor insubstituível deste recurso para todos os seres vivos do nosso planeta, do qual deriva a necessidade urgente de planificar e implementar a sua gestão de forma sábia, atenta e sustentável, a fim de que todos possam usufruir dele para satisfazer as suas necessidades substanciais e também para que um adequado desenvolvimento humano possa ser sustentado e promovido, sem excluir ninguém.

A água é vida porque garante a sobrevivência; no entanto, atualmente, este recurso está ameaçado por graves desafios em termos de quantidade e qualidade. Em muitas partes do mundo, os nossos irmãos sofrem de doenças ou morrem precisamente devido à ausência ou escassez de água potável. As secas causadas pelas mudanças climáticas deixam vastas regiões áridas e provocam enormes danos aos ecossistemas e às populações. A gestão arbitrária dos recursos hídricos, o uso impróprio e a poluição são particularmente prejudiciais para os indigentes, constituindo uma afronta vergonhosa à qual não podemos ficar de braços cruzados. Pelo contrário, é urgente reconhecer que «o acesso à água potável e segura constitui um direito humano básico, fundamental e universal, pois determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos demais direitos humanos» (Encíclica Laudato si’, n. 30). Por isso, é imprescindível investir mais em infraestruturas, em redes de esgotos, em sistemas de saneamento e tratamento de águas residuais, sobretudo nas áreas rurais mais remotas e carenciadas. É igualmente importante desenvolver modelos educativos e culturais que sensibilizem a sociedade para a necessidade de respeitar e preservar este bem primário. A água nunca deve ser vista como mera mercadoria, como produto a comercializar ou bem a especular.

A água é alimento por ser essencial para alcançar a segurança alimentar, dado que constitui um meio de produção e um componente indispensável para a agricultura. Nos cultivos, é necessário fomentar programas eficazes para evitar perdas nas condutas de irrigação agrícola; utilizar pesticidas e fertilizantes orgânicos e inorgânicos que não contaminem a água; e promover medidas para salvaguardar a disponibilidade dos recursos hídricos, a fim de evitar que a grave escassez se torne causa de conflitos entre comunidades, povos e nações. Além disso, a ciência e a inovação tecnológica e digital devem pôr-se ao serviço de um equilíbrio sustentável entre o consumo e os recursos disponíveis, evitando impactos negativos nos ecossistemas e danos irreversíveis ao meio ambiente. Por isso, as organizações internacionais, os governos, a sociedade civil, as empresas, as instituições académicas e de investigação, assim como outras entidades, devem unir esforços e ideias para que a água seja herança de todos, melhor distribuída e gerida de forma sustentável e racional.

Concluindo, a celebração do Dia Mundial da Alimentação deve servir também para lembrar que a cultura do descarte deve ser incisivamente combatida por ações assentes na cooperação responsável e leal de todos. O nosso mundo é demasiado interdependente e não se pode dar ao luxo de se dividir em blocos de países que promovem os seus interesses de forma ilícita e tendenciosa. Além disso, somos chamados a pensar e a agir em termos de comunidade e solidariedade, procurando dar prioridade à vida de todos, em detrimento da apropriação de bens por parte de poucos.

Senhor Diretor-geral, lamentavelmente, hoje assistimos a uma escandalosa polarização das relações internacionais devido às crises e aos conflitos existentes. Desviam-se para a produção e o comércio de armas enormes recursos financeiros e tecnologias inovadoras, que poderiam ser utilizados para fazer da água uma fonte de vida e de progresso para todos. Nunca como hoje foi tão urgente tornar-nos promotores do diálogo e pacificadores. A Igreja não se cansa de semear valores capazes de edificar uma civilização que encontre no amor, no respeito mútuo e na ajuda recíproca uma bússola para orientar os seus passos, visando sobretudo os irmãos que mais sofrem, como os famintos e os sedentos.

Com estes votos, enquanto agradeço à Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura por tudo o que faz a fim de promover o desenvolvimento agrícola, uma alimentação sadia e suficiente para todas as pessoas e o uso sustentável da água, invoco abundantes Bênçãos celestiais sobre todos aqueles que lutam por um mundo melhor e mais fraterno.

Vaticano, 16 de outubro de 2023

Francisco