No Evangelho deste Domingo xxv do Tempo Comum (Mt 20, 1-16), Deus conta aos seus filhos mais uma história verdadeira, que é a sua história connosco, feita de incríveis paisagens de graça absolutamente inesperadas, tão inesperadas que atordoam e desconcertam a nossa mentalidade cada vez mais assente em folhas de cálculo, horários, faturas e recibos, de tal modo que até confundimos facilmente pensamento com contabilidade. O cenário do Evangelho de hoje atinge-nos em cheio, embora apareça situado na Palestina do primeiro século, em que os pequenos proprietários perderam os seus bens e foram atirados para a praça ou para a plateia onde, pelo menos, podem ver e ser vistos e, com um pouco de sorte, arranjar umas horas de trabalho que os ajudem a sustentar a família. A praça está sempre cheia de gente simplesmente ali parada, ou à espera de uma oportunidade para ganhar ao menos o pão de cada dia.
2. Rapidamente vem para primeiro plano o dono de uma vinha, preocupado em arranjar trabalhadores para a sua vinha. E é assim que se diz do dono da vinha que sai às 6h00 da manhã para a praça e contrata logo trabalhadores para cultivar a sua vinha. Acerta com eles que lhes pagará um denário, que era, na altura e naquele pedaço de mundo, o salário normal de um dia de trabalho, de sol a sol, doze horas, das 6h00 às 18h00. O dono da vinha sai outra vez às 9h00 da manhã e, encontrando mais gente desocupada na praça, envia-os também para a sua vinha, garantindo que lhes pagará o que for justo. Volta a sair às 12h00, às 15h00 e às 17h00, encontra sempre gente desocupada, e a todos vai enviando para a sua vinha. Em jogo está, não tanto o trabalho que estes últimos poderão realizar em tão poucas horas de trabalho, mas o olhar de graça inesgotável daquele dono da vinha, que é Deus. Claro que Deus é bom (agathós), mas a inveja e o ciúme podem tornar o nosso olhar mau (ponêrós) (cf. Mt 20, 15). Também é fácil de ver aqui a realização literal das palavras de Jesus ditas atrás, imediatamente antes do início do Evangelho de hoje, em Mateus 19, 30: «Muitos dos primeiros serão últimos, e os últimos primeiros», expressão repetida em Mateus 20, 16, encerrando numa inclusão literária o texto de Mateus 20, 1-15.
3. Impõe-se que anotemos um primeiro indicador: o dono da vinha sai por cinco vezes à nossa procura . Encontra-nos a toda a hora, e a toda a hora nos envia para a sua vinha. É dele toda a iniciativa e a iniciativa toda. Ele é iniciativa . Nós estamos sempre depois dele e na sua dependência.
4. Às 18h00, ao pôr do sol, o dono da vinha ordena ao seu capataz que pague o salário (um denário) aos trabalhadores, mas avança uma estranha condição: a começar pelos últimos! O capataz pagou a cada um, um denário, que era o salário habitual de um dia de trabalho. Também esta é uma bela iniciativa do dono da vinha. Até aqui, tudo bem: todos os que aqui estamos, estamos depois e por causa da iniciativa excessiva da graça de Deus!
5. Temos também, todavia, de prestar atenção ao que fazemos quando somos chamados a sermos nós a tomar a iniciativa. O texto não se demora a descrever o trabalho que fazemos, e tão-pouco diz se trabalhámos ou se fomos preguiçosos durante o tempo, muito ou pouco, que estivemos na vinha. Mas diz que somos mesquinhos, invejosos e ciumentos, quando reparamos que o dono da vinha nos trata a todos por igual, os da última hora iguais aos da primeira hora. Literalmente, quando se referem ao procedimento do dono da vinha para com os últimos, da boca dos primeiros, ouvimos o seguinte: «Fizeste-os iguais a nós» (v. 12). O dito é belo e verdadeiro, mas vê-se que é pronunciado com inveja e ciúme. Na verdade, o texto desvenda o nosso instinto de grandeza, superioridade e prioridade, e a dificuldade que sentimos em aceitar-nos e abraçar-nos como irmãos. E em relação ao dono da vinha, que é Deus, e que sai tantas vezes à nossa procura, que se interessa por nós e nos envia para a sua vinha, e nos entrega o salário que acertou connosco ou mais, muito mais, desmedidamente mais, ainda nos pomos a murmurar (goggýzô) da bondade de Deus. A murmuração (goggysmós) é uma espécie de rebelião interior, assente na insatisfação, desconfiança, inveja, ciúme e azedume contra os outros e contra Deus, um protesto instintivo do homem privilegiado contra a graça concedida àqueles que nada têm.
6. O amor desmedido de Deus, esse sim, está lá, excessivamente retratado, em todas as iniciativas do dono da vinha: sai a toda a hora à nossa procura . Quer-nos a todos por igual. Enche as nossas mãos com os seus dons. Mas nós ficamos tão mal na fotografia ou na radiografia, que são aí bem visíveis também as invejas, ciúmes e azedumes, que minam e enferrujam o nosso esclerosado coração e barram todos os acessos à fraternidade. Também é fácil de entender que qualquer empresa das nossas que queira tomar por modelo o comportamento de Deus irá certamente à falência. Mas é ainda mais compreensível que uma empresa das nossas em que o comportamento dos trabalhadores tenha por modelo as invejas, raivas, ciúmes e azedumes que vemos nos trabalhadores da parábola de hoje conhecerá ainda mais rapidamente a falência.
7. Aquela última hora é a hora da graça. É a nossa hora de filhos de Deus agraciados. Em que podemos bendizer a bondade de Deus ou murmurar contra a bondade de Deus. Mas é também a hora em que podemos ser aceites ou rejeitados como irmãos.
8. Compreendamos bem: em apenas uma hora se pode ganhar ou perder o dia inteiro, a vida inteira!
9. A lição do Antigo Testamento que hoje, por graça, nos é dado escutar (Is 55, 6-9), serve maravilhosamente de fundo ao Evangelho deste Dia. Apresenta-nos um Deus bom, que «se deixa encontrar» (Is 55, 6), e que é «rico em perdão» (Is 55, 7), e nos desafia a procurar novos caminhos, pois, diz Deus: «Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, e os vossos caminhos não são os meus caminhos» (Is 55, 8). Vê-se bem que esta última página do caderno do chamado «Segundo Isaías», na verdade um profeta e místico do tempo do exílio (século vi a. c .), foi escolhida para fazer coro com a personagem central do Evangelho de hoje, que vê as coisas de forma muito diferente de nós, muito melhor do que nós.
*Bispo de Lamego
D. António Couto *