«A verdade e a justiça são necessárias para construir a paz no mundo e a harmonia nas nossas sociedades», disse o Papa Francisco ao receber em audiência, na manhã de 21 de agosto, na Biblioteca particular do Palácio apostólico, uma delegação de advogados de países membros do Conselho da Europa, signatários do Apelo de Viena, que «exorta os países-membros do Conselho a comprometer-se com o Estado de direito e a independência da justiça». O Papa anunciou também que «está a escrever uma segunda parte da Laudato si’». O diretor da Sala de imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni, especificou que se trata de uma Carta que aborda em particular as recentes crises climáticas.
Senhora, Senhores!
Sinto-me feliz por vos receber, Advogados de diversos países membros do Conselho da Europa. A 11 de junho de 2022 assinastes o Apelo de Viena, que convida os Estados-membros do Conselho a comprometer-se com o Estado de direito e a independência da justiça. Este apelo insere-se no atual contexto europeu, que é difícil sob muitos aspetos devido, entre outras coisas, à guerra insensata na Ucrânia. Agradeço-vos o importante contributo que ofereceis para a promoção da democracia e do respeito pela liberdade e pela dignidade humana. Tempos de crises sociais, económicas, de identidade e de segurança desafiam as democracias ocidentais a reagir eficazmente, mantendo-se fiel aos seus princípios; princípios que devem ser continuamente recuperados e cuja defesa exige uma grande vigilância. O medo de desordens e violências, a perspetiva de perturbações nos equilíbrios estabelecidos, a necessidade de agir eficazmente perante as emergências podem induzir à tentação de abrir exceções, de limitar — pelo menos temporariamente — o Estado de direito na busca de soluções fáceis e imediatas. Por isso, parece-me importante que exijais, numa das vossas proposições, que «o Estado de direito nunca seja objeto da menor exceção, inclusive em tempos de crise». A razão é que o Estado de direito está ao serviço da pessoa humana e visa proteger a sua dignidade, o que não admite exceção alguma. Trata-se de um princípio.
No entanto, não são apenas as crises que dão origem a ameaças contra as liberdades e o Estado de direito nas democracias. Com efeito, difunde-se cada vez mais uma conceção errónea da natureza humana e da pessoa humana, conceção essa que enfraquece a própria proteção e que, a pouco e pouco, abre a porta a graves abusos sob a aparência de bem.
É preciso recordar que o fundamento da dignidade da pessoa humana reside na sua origem transcendente, que proíbe, por conseguinte, qualquer violação da mesma; e esta transcendência exige que, em toda a atividade humana, a pessoa seja colocada no centro e não se encontre à mercê das modas e dos poderes do momento (cf. Discurso ao Parlamento europeu, 25 de novembro de 2014). De facto, «uma Europa que já não seja capaz de se abrir à dimensão transcendente da vida é uma Europa que lentamente corre o risco de perder a sua própria alma e também aquele “espírito humanista” que naturalmente ama e defende» (ibid.).
O respeito pelos direitos humanos só pode ser garantido e um Estado de direito só pode encontrar solidez na medida em que os povos permanecerem fiéis às suas raízes que se alimentam da verdade, que constitui a força vital de qualquer sociedade que aspire a ser verdadeiramente livre, humana e solidária (cf. Discurso ao Conselho da Europa, 25 de novembro de 2014). Sem esta busca da verdade sobre o homem, segundo o desígnio de Deus, cada um torna-se a medida de si mesmo e das suas ações. De facto, hoje existe uma tendência a reivindicar cada vez mais direitos individuais, sem ter em conta que cada ser humano está vinculado a um contexto social no qual os seus direitos e deveres estão ligados aos dos outros e ao bem comum da própria sociedade (cf. Discurso ao Parlamento europeu). A incompreensão do conceito de direitos humanos e o seu paradoxal mau uso poderiam remeter os povos para «purismos angélicos, totalitarismos do relativo [...] fundamentalismos anti-históricos, eticismos sem bondade, intelectualismos sem sabedoria» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 231), onde o Estado de direito já não estaria ao serviço de uma pessoa humana falsificada e manipulada segundo interesses económicos e ideológicos.
Caros Advogados, apreciei no vosso Apelo, entre os aspetos sobre os quais deveis vigiar na vossa profissão, a chamada de atenção para o princípio fundamental do segredo profissional, cuja violação deplorais nalguns Estados-Membros. Compreendo e partilho a vossa preocupação e encorajo-vos na vossa ação. É essencial que os espaços de confidencialidade sejam preservados nas nossas sociedades, onde as pessoas podem exprimir-se e expor os seus fardos. Isto é muito importante. Na Igreja, temos o segredo da Confissão; vós tendes também este espaço, onde uma pessoa pode dizer a verdade ao seu advogado para que este a ajude...
Por último, sou sensível ao cuidado que dedicais à casa comum e ao vosso empenho em participar no desenvolvimento de um quadro regulamentar a favor da proteção do meio ambiente. Nunca devemos esquecer que as novas gerações têm o direito de receber de nós um mundo bom e habitável, e que isso nos impõe sérios deveres para com a criação que recebemos das mãos generosas de Deus. Obrigado por esta contribuição. Estou a escrever uma segunda parte da Laudato si’ para atualizar os problemas de hoje.
Renovo o meu encorajamento para que persevereis no exercício da vossa profissão, orientada para o serviço da verdade e da justiça, necessárias para construir a paz no mundo e a harmonia nas nossas sociedades. Que a Virgem Maria e Santo Ivo vos protejam e preservem. De coração abençoo-vos e peço-vos que rezeis por mim.
Obrigado!