A justiça e a paz jorrem
Na manhã de 25 de maio, na sala de imprensa da Santa Sé, foi apresentada a mensagem do Papa Francisco para o próximo Dia mundial de oração pelo cuidado da criação, que será celebrado a 1 de setembro. A seguir, a mensagem pontifícia, sobre o tema «Que jorrem a justiça e a paz», inspirado no texto bíblico do profeta Amós.
Queridos irmãos e irmãs!
«Que jorrem a justiça e a paz» é, neste ano, o tema do Tempo ecuménico da Criação, inspirado pelas palavras do profeta Amós: «Jorre a equidade como uma fonte, e a justiça como torrente que não seca» (5, 24).
Esta expressiva imagem de Amós diz-nos aquilo que Deus deseja. Deus quer que reine a justiça, que é essencial para a nossa vida de filhos, criados à imagem de Deus, como é a água para a nossa sobrevivência física. Esta justiça não se deve esconder demasiado em profundidade, nem desaparecer como a água que evapora antes de poder sustentar-nos, mas deve surgir onde houver necessidade. Deus quer que cada um procure ser justo em todas as situações e sempre se esforce por viver segundo as suas leis, permitindo à vida florescer plenamente. Quando buscarmos antes de tudo o Reino dos Céus (cf. Mt 6, 33), mantendo uma justa relação para com Deus, a humanidade e a natureza, então a justiça e a paz poderão jorrar como torrente inexaurível de água pura, vivificando a humanidade e todas as criaturas.
Em julho de 2022, num lindo dia de verão, convidei a meditar sobre isto durante a minha peregrinação até às margens do Lago de Sant’Ana, província de Alberta, no Canadá. Aquele lago foi, e é, um local de peregrinação para muitas gerações de indígenas. Como disse então, acompanhado pelo rufar dos tambores, «quantos corações chegaram aqui ansiosos e trepidantes, sobrecarregados pelo peso da vida, e junto destas águas encontraram a consolação e a força para continuar! Mas aqui, imerso na criação, há outro batimento que podemos escutar: a palpitação materna da terra. E assim como o batimento dos bebés, ainda no seio materno, está em harmonia com o das mães, assim também para crescer como seres humanos precisamos de cadenciar os ritmos da existência com os da criação que nos dá vida».1
Neste Tempo da Criação, detenhamo-nos a sondar estes batimentos do coração: o nosso, o das nossas mães e das nossas avós, o pulsar do coração da criação e do coração de Deus. Hoje não estão harmonizados, não batem em uníssono pela justiça e a paz. A muitos, é impedido beber neste rio caudaloso. Ouçamos, pois, o apelo a permanecer ao lado das vítimas da injustiça ambiental e climática, pondo fim a esta guerra insensata contra a criação.
Vemos os efeitos desta guerra em muitos rios que estão a secar. «Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo, porque os desertos interiores se tornaram tão amplos», afirmou certa vez Bento xvi .2 O consumismo voraz, alimentado por corações egoístas, está a transtornar o ciclo da água do planeta. O uso desenfreado de combustíveis fósseis e a destruição das florestas estão a criar uma subida das temperaturas e a provocar secas graves. Terríveis carências hídricas estão a afligir cada vez mais as nossas casas, desde as pequenas comunidades rurais até às grandes cidades. Além disso, indústrias predatórias estão a esgotar e poluir as nossas fontes de água potável com atividades extremas, como o fraturamento hidráulico para a extração de petróleo e gás, os megaprojetos de extração descontrolada e a engorda acelerada de animais. Apropriam-se da “irmã água” — como lhe chama São Francisco — transformando-a em «mercadoria sujeita às leis do mercado» (Carta enc. Laudato si’, 30).
O Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas ( ipcc ) defende uma ação urgente em prol do clima a fim de nos impedir de malbaratar a ocasião para criar um mundo mais sustentável e justo. Podemos e devemos evitar que se verifiquem as piores consequências. E «é tanto o que se pode fazer» (Ibid., 180), se no final, como tantos riachos e torrentes, confluirmos num rio caudaloso para irrigar a vida deste nosso planeta maravilhoso e das gerações futuras da nossa família humana. Unamos as mãos e demos passos corajosos, para que a justiça e a paz jorrem em toda a Terra.
Como podemos contribuir para o rio caudaloso da justiça e da paz neste Tempo da Criação? Que podemos nós, sobretudo como Igrejas cristãs, fazer para sanar a nossa casa comum, para que volte a pulular de vida? Devemos decidir-nos a transformar os nossos corações, os nossos estilos de vida e as políticas públicas que regem a nossa sociedade.
Em primeiro lugar, contribuamos para este rio caudaloso transformando os nossos corações. Isto é essencial, se se quer começar qualquer outra transformação. É a “conversão ecológica” que São João Paulo ii nos exortava a realizar: a renovação do nosso relacionamento com a criação, de modo que já não a consideremos como objeto a explorar, mas, ao contrário, guardemo-la como um sacro dom do Criador. Depois, consciencializemo-nos de que uma abordagem global requer que se pratique o respeito ecológico nas quatro vertentes: para com Deus, para com os nossos semelhantes de hoje e de amanhã, para com toda a natureza e para com nós próprios.
Quanto à primeira destas dimensões, Bento xvi identificou como urgente a necessidade de compreender que Criação e Redenção são inseparáveis: «O Redentor é o Criador e, se nós não anunciarmos Deus nesta sua grandeza total — de Criador e de Redentor — tiraremos valor à Redenção».3 A criação refere-se à ação misteriosa e magnífica de Deus criar do nada este majestoso e belo planeta e o universo inteiro, e também ao resultado de tal ação, ainda em curso, que experimentamos como um dom inexaurível. Durante a liturgia e a oração pessoal na «grande catedral da criação»,4 recordemos o grande Artista que cria tanta beleza e reflitamos sobre o mistério da sua amorosa opção de criar o mundo.
Em segundo lugar, contribuamos para o fluxo deste rio caudaloso, transformando os nossos estilos de vida. Partindo de uma grata admiração do Criador e da criação, arrependamo-nos dos nossos “pecados ecológicos”, como adverte o meu irmão Patriarca Ecuménico Bartolomeu. Estes pecados prejudicam o mundo natural e também os nossos irmãos e irmãs. Com a ajuda da graça de Deus, adotemos estilos de vida com menor desperdício e menos consumos inúteis, sobretudo onde os processos de produção são tóxicos e insustentáveis. Procuremos estar o mais possível atentos aos nossos hábitos e opções económicas, para que todos possam estar melhor: os nossos semelhantes, onde quer que se encontrem, e também os filhos dos nossos filhos. Colaboremos para esta criação contínua de Deus através de opções positivas: fazendo o uso mais moderado possível dos recursos, praticando uma jubilosa sobriedade, separando e reciclando o lixo e recorrendo a produtos e serviços — e há tantos à nossa disposição — que sejam ecológica e socialmente responsáveis.
Por fim, para que o rio caudaloso continue a jorrar, devemos transformar as políticas públicas que regem as nossas sociedades e moldam a vida dos jovens de hoje e de amanhã. Políticas económicas, que favorecem riquezas escandalosas para poucos e condições degradantes para tantos, decretam o fim da paz e da justiça. É evidente que as nações mais ricas acumularam — e cito a encíclica Laudato si’ — uma «dívida ecológica».5 Os líderes mundiais presentes na cimeira cop 28, programada de 30 de novembro a 12 de dezembro deste ano em Dubai, devem ouvir a ciência e começar uma transição rápida e equitativa para acabar com a era dos combustíveis fósseis. À luz dos compromissos do Acordo de Paris tendentes a suspender o risco do aquecimento global, é insensato permitir a exploração e expansão contínua das infraestruturas para os combustíveis fósseis. Levantemos a voz para deter esta injustiça para com os pobres e os nossos filhos, que sofrerão os impactos piores da mudança climática. Apelo a todas as pessoas de boa vontade para agirem de acordo com estas orientações acerca da sociedade e da natureza.
Numa perspetiva paralela, mais específica do serviço da Igreja católica, temos a sinodalidade. Este ano, o encerramento do Tempo da Criação, na festa de São Francisco a 4 de outubro, coincidirá com a abertura do Sínodo sobre a Sinodalidade. Como os rios que são alimentados por mil ribeirinhos e torrentes maiores, o processo sinodal, iniciado em outubro de 2021, convida todos os componentes, a nível pessoal e comunitário, a convergirem num majestoso rio de reflexão e renovação. Todo o Povo de Deus está envolvido num abrangente caminho de diálogo sinodal e conversão.
À semelhança de uma bacia hidrográfica com os seus numerosos afluentes grandes e pequenos, a Igreja é uma comunhão de inumeráveis Igrejas locais, comunidades religiosas e associações que se alimentam da mesma água. Cada fonte acrescenta a sua contribuição única e insubstituível, até confluírem todas no vasto oceano do amor misericordioso de Deus. Como um rio é fonte de vida para o ambiente que o rodeia, assim a nossa Igreja sinodal deve ser fonte de vida para a casa comum e quantos nela habitam. E como um rio dá vida a todo o tipo de espécies animal e vegetal, assim uma Igreja sinodal deve dar vida semeando justiça e paz em cada lugar que atinge.
Em julho de 2022, no Canadá, recordei o Mar da Galileia onde Jesus curou e consolou tanta gente e proclamou “uma revolução de amor”. Soube que também o Lago de Sant’Ana é um lugar de cura, consolação e amor, um lugar que «nos recorda que a fraternidade é verdadeira se une os distantes, que a mensagem de unidade que o Céu envia à terra não teme as diferenças e convida-nos à comunhão, à comunhão das diferenças, a recomeçar juntos, porque todos — todos! — somos peregrinos a caminho».6
Neste Tempo da Criação, como seguidores de Cristo no nosso caminho sinodal comum, vivamos, trabalhemos e rezemos para que a nossa casa comum seja novamente repleta de vida. Que o Espírito Santo continue a pairar sobre as águas e nos guie para renovar a face da terra (cf. Sl 104, 30).
Roma, São João de Latrão 13 de maio de 2023.
Francisco
1 Homilia junto do Lago de Sant’Ana (Canadá, 26 de julho de 2022).
2 Homilia por ocasião do início solene do seu ministério petrino (24 de abril de 2005).
3 Diálogo com o clero na Catedral de Bressanone (6 de agosto de 2008).
4 Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação (21 de julho de 2022).
5 «Com efeito, há uma verdadeira “dívida ecológica”, particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns países» (Carta enc. Laudato si’, 51).
6 Homilia junto do Lago de Sant’Ana (Canadá, 26 de julho de 2022).