Mensagem do Papa para o próximo Dia mundial de oração pelo cuidado da criação

A justiça e a paz jorrem
como torrente
inexaurível de água pura

A drone view of the Manicore river, deep inside the Amazonia rainforest, Amazonas state, Brazil, on ...
25 maio 2023

Na manhã de 25 de maio, na sala de imprensa da Santa Sé, foi apresentada a mensagem do Papa Francisco para o próximo Dia mundial de oração pelo cuidado da criação, que será celebrado a 1 de setembro. A seguir, a mensagem pontifícia, sobre o tema «Que jorrem a justiça e a paz», inspirado no texto bíblico do profeta Amós.

Queridos irmãos e irmãs!

«Que jorrem a justiça e a paz» é, neste ano, o tema do Tempo ecuménico da Criação, inspirado pelas palavras do profeta Amós: «Jorre a equidade como uma fonte, e a justiça como torrente que não seca» (5, 24).

Esta expressiva imagem de Amós diz-nos aquilo que Deus deseja. Deus quer que reine a justiça, que é essencial para a nossa vida de filhos, criados à imagem de Deus, como é a água para a nossa sobrevivência física. Esta justiça não se deve esconder demasiado em profundidade, nem desaparecer como a água que evapora antes de poder sustentar-nos, mas deve surgir onde houver necessidade. Deus quer que cada um procure ser justo em todas as situações e sempre se esforce por viver segundo as suas leis, permitindo à vida florescer plenamente. Quando buscarmos antes de tudo o Reino dos Céus (cf. Mt 6, 33), mantendo uma justa relação para com Deus, a humanidade e a natureza, então a justiça e a paz poderão jorrar como torrente inexaurível de água pura, vivificando a humanidade e todas as criaturas.

Em julho de 2022, num lindo dia de verão, convidei a meditar sobre isto durante a minha peregrinação até às margens do Lago de Sant’Ana, província de Alberta, no Canadá. Aquele lago foi, e é, um local de peregrinação para muitas gerações de indígenas. Como disse então, acompanhado pelo rufar dos tambores, «quantos corações chegaram aqui ansiosos e trepidantes, sobrecarregados pelo peso da vida, e junto destas águas encontraram a consolação e a força para continuar! Mas aqui, imerso na criação, há outro batimento que podemos escutar: a palpitação materna da terra. E assim como o batimento dos bebés, ainda no seio materno, está em harmonia com o das mães, assim também para crescer como seres humanos precisamos de cadenciar os ritmos da existência com os da criação que nos dá vida».1

Neste Tempo da Criação, detenhamo-nos a sondar estes batimentos do coração: o nosso, o das nossas mães e das nossas avós, o pulsar do coração da criação e do coração de Deus. Hoje não estão harmonizados, não batem em uníssono pela justiça e a paz. A muitos, é impedido beber neste rio caudaloso. Ouçamos, pois, o apelo a permanecer ao lado das vítimas da injustiça ambiental e climática, pondo fim a esta guerra insensata contra a criação.

Vemos os efeitos desta guerra em muitos rios que estão a secar. «Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo, porque os desertos interiores se tornaram tão amplos», afirmou certa vez Bento xvi .2 O consumismo voraz, alimentado por corações egoístas, está a transtornar o ciclo da água do planeta. O uso desenfreado de combustíveis fósseis e a destruição das florestas estão a criar uma subida das temperaturas e a provocar secas graves. Terríveis carências hídricas estão a afligir cada vez mais as nossas casas, desde as pequenas comunidades rurais até às grandes cidades. Além disso, indústrias predatórias estão a esgotar e poluir as nossas fontes de água potável com atividades extremas, como o fraturamento hidráulico para a extração de petróleo e gás, os megaprojetos de extração descontrolada e a engorda acelerada de animais. Apropriam-se da “irmã água” — como lhe chama São Francisco — transformando-a em «mercadoria sujeita às leis do mercado» (Carta enc. Laudato si’, 30).

O Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas ( ipcc ) defende uma ação urgente em prol do clima a fim de nos impedir de malbaratar a ocasião para criar um mundo mais sustentável e justo. Podemos e devemos evitar que se verifiquem as piores consequências. E «é tanto o que se pode fazer» (Ibid., 180), se no final, como tantos riachos e torrentes, confluirmos num rio caudaloso para irrigar a vida deste nosso planeta maravilhoso e das gerações futuras da nossa família humana. Unamos as mãos e demos passos corajosos, para que a justiça e a paz jorrem em toda a Terra.

Como podemos contribuir para o rio caudaloso da justiça e da paz neste Tempo da Criação? Que podemos nós, sobretudo como Igrejas cristãs, fazer para sanar a nossa casa comum, para que volte a pulular de vida? Devemos decidir-nos a transformar os nossos corações, os nossos estilos de vida e as políticas públicas que regem a nossa sociedade.

Em primeiro lugar, contribuamos para este rio caudaloso transformando os nossos corações. Isto é essencial, se se quer começar qualquer outra transformação. É a “conversão ecológica” que São João Paulo ii nos exortava a realizar: a renovação do nosso relacionamento com a criação, de modo que já não a consideremos como objeto a explorar, mas, ao contrário, guardemo-la como um sacro dom do Criador. Depois, consciencializemo-nos de que uma abordagem global requer que se pratique o respeito ecológico nas quatro vertentes: para com Deus, para com os nossos semelhantes de hoje e de amanhã, para com toda a natureza e para com nós próprios.

Quanto à primeira destas dimensões, Bento xvi identificou como urgente a necessidade de compreender que Criação e Redenção são inseparáveis: «O Redentor é o Criador e, se nós não anunciarmos Deus nesta sua grandeza total — de Criador e de Redentor — tiraremos valor à Redenção».3 A criação refere-se à ação misteriosa e magnífica de Deus criar do nada este majestoso e belo planeta e o universo inteiro, e também ao resultado de tal ação, ainda em curso, que experimentamos como um dom inexaurível. Durante a liturgia e a oração pessoal na «grande catedral da criação»,4 recordemos o grande Artista que cria tanta beleza e reflitamos sobre o mistério da sua amorosa opção de criar o mundo.

Em segundo lugar, contribuamos para o fluxo deste rio caudaloso, transformando os nossos estilos de vida. Partindo de uma grata admiração do Criador e da criação, arrependamo-nos dos nossos “pecados ecológicos”, como adverte o meu irmão Patriarca Ecuménico Bartolomeu. Estes pecados prejudicam o mundo natural e também os nossos irmãos e irmãs. Com a ajuda da graça de Deus, adotemos estilos de vida com menor desperdício e menos consumos inúteis, sobretudo onde os processos de produção são tóxicos e insustentáveis. Procuremos estar o mais possível atentos aos nossos hábitos e opções económicas, para que todos possam estar melhor: os nossos semelhantes, onde quer que se encontrem, e também os filhos dos nossos filhos. Colaboremos para esta criação contínua de Deus através de opções positivas: fazendo o uso mais moderado possível dos recursos, praticando uma jubilosa sobriedade, separando e reciclando o lixo e recorrendo a produtos e serviços — e há tantos à nossa disposição — que sejam ecológica e socialmente responsáveis.

Por fim, para que o rio caudaloso continue a jorrar, devemos transformar as políticas públicas que regem as nossas sociedades e moldam a vida dos jovens de hoje e de amanhã. Políticas económicas, que favorecem riquezas escandalosas para poucos e condições degradantes para tantos, decretam o fim da paz e da justiça. É evidente que as nações mais ricas acumularam — e cito a encíclica Laudato si’ — uma «dívida ecológica».5 Os líderes mundiais presentes na cimeira cop 28, programada de 30 de novembro a 12 de dezembro deste ano em Dubai, devem ouvir a ciência e começar uma transição rápida e equitativa para acabar com a era dos combustíveis fósseis. À luz dos compromissos do Acordo de Paris tendentes a suspender o risco do aquecimento global, é insensato permitir a exploração e expansão contínua das infraestruturas para os combustíveis fósseis. Levantemos a voz para deter esta injustiça para com os pobres e os nossos filhos, que sofrerão os impactos piores da mudança climática. Apelo a todas as pessoas de boa vontade para agirem de acordo com estas orientações acerca da sociedade e da natureza.

Numa perspetiva paralela, mais específica do serviço da Igreja católica, temos a sinodalidade. Este ano, o encerramento do Tempo da Criação, na festa de São Francisco a 4 de outubro, coincidirá com a abertura do Sínodo sobre a Sinodalidade. Como os rios que são alimentados por mil ribeirinhos e torrentes maiores, o processo sinodal, iniciado em outubro de 2021, convida todos os componentes, a nível pessoal e comunitário, a convergirem num majestoso rio de reflexão e renovação. Todo o Povo de Deus está envolvido num abrangente caminho de diálogo sinodal e conversão.

À semelhança de uma bacia hidrográfica com os seus numerosos afluentes grandes e pequenos, a Igreja é uma comunhão de inumeráveis Igrejas locais, comunidades religiosas e associações que se alimentam da mesma água. Cada fonte acrescenta a sua contribuição única e insubstituível, até confluírem todas no vasto oceano do amor misericordioso de Deus. Como um rio é fonte de vida para o ambiente que o rodeia, assim a nossa Igreja sinodal deve ser fonte de vida para a casa comum e quantos nela habitam. E como um rio dá vida a todo o tipo de espécies animal e vegetal, assim uma Igreja sinodal deve dar vida semeando justiça e paz em cada lugar que atinge.

Em julho de 2022, no Canadá, recordei o Mar da Galileia onde Jesus curou e consolou tanta gente e proclamou “uma revolução de amor”. Soube que também o Lago de Sant’Ana é um lugar de cura, consolação e amor, um lugar que «nos recorda que a fraternidade é verdadeira se une os distantes, que a mensagem de unidade que o Céu envia à terra não teme as diferenças e convida-nos à comunhão, à comunhão das diferenças, a recomeçar juntos, porque todos — todos! — somos peregrinos a caminho».6

Neste Tempo da Criação, como seguidores de Cristo no nosso caminho sinodal comum, vivamos, trabalhemos e rezemos para que a nossa casa comum seja novamente repleta de vida. Que o Espírito Santo continue a pairar sobre as águas e nos guie para renovar a face da terra (cf. Sl 104, 30).

Roma, São João de Latrão 13 de maio de 2023.

Francisco


Homilia junto do Lago de Sant’Ana (Canadá, 26 de julho de 2022).

Homilia por ocasião do início solene do seu ministério petrino (24 de abril de 2005).

Diálogo com o clero na Catedral de Bressanone (6 de agosto de 2008).

Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação (21 de julho de 2022).

5 «Com efeito, há uma verdadeira “dívida ecológica”, particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns países» (Carta enc. Laudato si’, 51).

Homilia junto do Lago de Sant’Ana (Canadá, 26 de julho de 2022).