Reflexões litúrgico-pastorais
Para o domingo V da Páscoa

Só há salvação em união
com Deus

 Reflexão litúrgico-pastoral para o domingo  v  da Páscoa  POR-018
04 maio 2023

Os nomes jesus e pai juntam-se para entretecer uma rede finíssima que atravessa e extravasa o corpo do inteiro iv Evangelho, onde se ouvem respetivamente por 237 vezes e 124 vezes. Só no Evangelho deste Domingo v da Páscoa (Jo 14, 1-12), pode contar-se o nome pai (ho patêr) por doze vezes, onze das quais na boca de jesus ! Entenda-se: a vida de jesus está completamente nas mãos do pai , dele provém e para ele se orienta totalmente, de modo a jesus poder dizer com verdade: « eu (egô) e (kaí) o pai (ho patêr) somos um (hén esmen)» (Jo 10, 30). A locução é audaz, mas clara e de extrema precisão. Não serve para indicar uma só pessoa: são claramente duas, uma indicada pelo pronome egô, e outra pelo nome masculino ho patêr. Duas pessoas distintas, não confusas, e que tão-pouco estão divididas e separadas. Indica esta não-divisão e não-separação a partícula copulativa «e» (kaì), a forma verbal plural «somos» (esmen) e o numeral neutro «um» (hén). O numeral neutro hén indica uma realidade, e não uma pessoa, o que pediria a forma masculina do numeral (heîs). Portanto, entre o pai e o filho Monogénito há uma subsistência comum, indivisa, inseparável e, todavia, distinta e não confusa, relação vital interpessoal contínua. É desta «unidade» e «unicidade» de essência e subsistência concreta entre o pai e o filho que decorre, no nosso texto, aquele límpido dizer de Jesus, dirigido a Filipe: «Quem me vê, vê o pai » (Jo 14, 9). Esta plena comunhão de vida entre jesus e o pai fica bem expressa nas repetidas fórmulas de «imanência recíproca» ou de «unidade» do pai e do filho , que soam: «Eu estou no pai e o pai está em mim » (Jo 14, 10.11).

2. Estabelecida esta perfeita unidade entre o pai e jesus , pode jesus reclamar dos seus discípulos que acreditem nele (Jo 14, 1b.11.12) como acreditam em Deus (ho theós) (Jo 14, 1a), isto é, no pai . Theós com artigo, no nt , é reservado ao pai . «Acreditar» conserva aqui a aceção fundamental que já vem do at , e que significa «apoiar-se firmemente em alguém» (Is 7, 9; 28, 16) que nos possa salvar. E é claro que a salvação de que aqui falamos consiste na nossa união com Deus, em apoiar-nos em Deus, único arrimo seguro de salvação. O problema consiste agora no nosso acesso a Deus em quem reside a salvação (cf. Is 12, 2). E jesus explica aos seus discípulos, nesta hora de despedida, que só há um acesso disponível: Ele próprio, dado que ele está no pai , e o pai está nele. E usando agora a fórmula de apresentação ou de revelação, afirma: «Eu sou (egô eimi) o caminho e a verdade e a vida», a que acrescenta: «Ninguém vem ao pai senão por mim » (Jo 14, 6). Claro que Jesus não é um caminho de terra batida ou uma estrada de asfalto. É um caminho pessoal, uma maneira de viver, com entranhas, pés, mãos e coração. Não é uma verdade de tipo filosófico, jurídico ou político, a usual adequação da mente à coisa (adequatio rei et intellectus). Não é uma coisa. A verdade bíblica [hebraico ʼemet] não responde à pergunta: «O que é a verdade?», à boa maneira de Pilatos (cf. Jo 18, 38), mas à pergunta inédita e surpreendente: « quem é a verdade ?» De facto, ʼemet deriva de ʼem [= mãe] e de ʼaman [= firmar, confiar], e remete para confiança e fidelidade . Não é uma verdade que se saiba. É uma atitude que se vive. É aquela verdade que uma criança vai aprendendo ao colo da sua mãe. Está ali alguém que a segura e que a ama, alguém em quem a criança pode confiar, que em caso algum a vai deixar cair ao chão, como bem refere a filósofa, de origem judaica, Edith Stein, depois Santa Teresa Benedita da Cruz. A verdade é alguém de fiar como uma mãe , realidade bem patente na etimologia, dado que ʼemet [= verdade] deriva de ʼem [= mãe]. Não engana, portanto. É assim que jesus , o filho , é também a vida (zôê) toda recebida (do pai ), vida divina, vida filial do filho de Deus, vida toda a nós dada.

3. Diz Jesus para os seus discípulos: «Para onde (ópou) eu vou, vós conheceis o caminho» (Jo 14, 4), mas muda logo o lugar pela pessoa: « eu vou para o pai » (Jo 14, 12). Pelo meio, cruza-se a incompreensão ou incompetência expressa de dois dos seus discípulos: Tomé e Filipe, que o mesmo é dizer, a nossa incompreensão e incompetência. Tomé, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»], não sabe para onde vai jesus ; logo, não sabe o caminho para lá (Jo 14, 5), e Filipe recebe de Jesus uma repreensão que também nos atinge, pois é proferida no plural, e soa assim: «Há tanto tempo que estou convosco, e não me conheces, Filipe?» (Jo 14, 9).

4. Tomé é bem Gémeo nosso, nosso irmão gémeo, muito parecido connosco, nesta passagem e em muitas outras. E Filipe, que significa «amigo dos cavalos», único nome verdadeiramente grego entre os Apóstolos de Jesus, também se manifesta muito semelhante a nós aqui e em outros lugares, como, por exemplo, Jo 6, 5-7, onde é literalmente posto à prova por Jesus, e chumba claramente no teste. Na verdade, Jesus pergunta-lhe, para o pôr à prova: «Filipe, onde compraremos pão para que eles comam?» (Jo 6, 5). E Filipe põe-se a contar o dinheiro, dizendo onde põe a sua confiança, e responde que não há nada a fazer, porque não há dinheiro que baste (Jo 6, 7). Filipe, talvez como nós, ainda não sabia que o onde (póthen) a que Jesus se refere não é o shopping, mas é o pai . Ainda não sabia a Escritura, e não conhecia Isaías 55, 1-2, em que Deus nos convida a comprar a Ele pão, sem gastar qualquer dinheiro: «Todos vós que tendes sede, vinde às águas!/ Vós, que não tendes dinheiro, vinde!/ Comprai (agorázô lxx ) cereal e comei!/ Comprai cereal sem dinheiro,/ e sem pagar, vinho e leite./ [...] Ouvi-me, ouvi-me, e comei o que é bom!» (Is 55, 1-2).

5. Filipe anda, de facto, bastante distraído, e tem dificuldade em sintonizar a onda de compreensão de Jesus, isto é, o pai . À pergunta formulada por Jesus em Jo 6, 5, Filipe responde literalmente: «Duzentos denários de pães não bastam (ouk arkoûsin) para que cada um receba uma migalhinha» (Jo 6, 7). E no nosso texto de hoje, logo depois de Jesus ter afirmado: «Se me tivésseis conhecido, também conheceríeis o meu pai , e desde agora já O conheceis e já O vistes» (Jo 14, 7), Filipe ainda ousa retorquir: «Senhor, mostra-nos o pai , e basta (kaì arkeî) para nós» ( Jo 14, 8). Não deixa de ser sintomático que este verbo bastar (arkéô) só apareça duas vezes no nt , e as duas vezes apareça nos lábios de Filipe (Jo 6, 7; 14, 8). E é ainda mais sintomático que, após ter vivido o grande sinal dos pães e dos peixes realizado por Jesus, ainda não lhe baste agora a revelação de Jesus, mas pareça requerer uma revelação espetacular à maneira das manifestações de Deus no at .

6. Passa hoje também, neste Domingo v da Páscoa, o Dia da Mãe, que nos ajuda, com certeza, a entender melhor o Deus de Jesus e o Jesus de Deus da liturgia de hoje. Sobre esta terra exangue, fustigada pelos mísseis e pela insensatez, uma Mãe verdadeira ainda é o ícone mais belo do amor imenso e sem pauta nem medida, que não é meu, nem é teu, nem é nosso, que é de Deus, que atravessa os textos da liturgia de hoje, e se vê a palpitar em tantas páginas indescritíveis destes tempos ácidos e nebulosos. Nós sabemos isso. Mas uma Mãe sabe isso melhor. É por isso que é fácil, neste Dia da Mãe, ver cair pelo rosto de cada Mãe uma lágrima de tristeza ou de alegria! Melhor assim, Mulher e Mãe: sentirás a mão carinhosa de Deus a afagar o teu rosto e a enxugar essa lágrima, de acordo com a lição do Livro do Apocalipse 21, 4.

D. António Couto
Bispo de Lamego