Homilia do cardeal Raniero Cantalamessa na celebração da Paixão presidida pelo Papa na basílica de são Pedro

A apoteose da vida no tempo do niilismo

 A apoteose da vida no tempo do niilismo  POR-015
13 abril 2023

Na tarde de Sexta-Feira Santa, 7 de abril, o Papa Francisco presidiu à celebração da Paixão do Senhor, na basílica do Vaticano. Precedido pela recitação do rosário, o rito foi cadenciado pela liturgia da Palavra, pela adoração do sagrado madeiro e pela comunhão. Depois da recitação da prece universal própria da Sexta-Feira Santa, feita por Francisco, o diácono propôs 11 intenções de oração em latim: no final de cada uma, o Pontífice leu a oração correspondente. Em seguida, teve início a segunda parte da celebração, dedicada à adoração da Cruz. O diácono levou-a em procissão através da nave central, fazendo três paragens, durante as quais um cantor da Capela Sistina entoou por três vezes: “Ecce lignum Crucis, in quo salus mundi pependit”. Em cada pausa, o diácono elevou a cruz, apresentando-a a Francisco que fez a adoração silenciosa, selada com um ósculo. Depois, o Papa ergueu-a, oferecendo-a para a adoração de todos os presentes. Em seguida foi colocado sobre o altar o Santíssimo Sacramento, trazido pelo diácono da capela da Reposição, passando novamente pela nave central. Em seguida, o cardeal arcipreste Mauro Gambetti conduziu a recitação do “Pater Noster”. Após a comunhão, a celebração terminou com a oração do Pontífice sobre o povo. Após a proclamação do Evangelho de João (18, 1 - 19, 42), o cardeal capuchinho Raniero Cantalamessa, pregador da Casa pontifícia, pronunciou a sua homilia sobre o tema «Anunciamos a tua morte, Senhor!». Seguiu-se um tempo de silêncio para a reflexão pessoal. Eis o texto da homilia.

Há dois mil anos, a Igreja anuncia e celebra, neste dia, a morte do Filho de Deus na cruz. A cada Missa, após a consagração, ela proclama: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!”.

Uma outra morte de Deus, porém, é proclamada há um século e meio, e hoje, em nosso mundo ocidental descristianizado. Quando, no âmbito da cultura, fala-se da “morte de Deus”, é esta outra morte de Deus — ideológica, não histórica — que se entende. Alguns teólogos, para não permanecer atrás em relação aos tempos, apressam-se em construir sobre ela uma teologia: “A teologia da morte de Deus”.

Não podemos fingir ignorar a existência desta narrativa diversa, sem deixar desconfiados tantos fiéis. Esta morte diversa de Deus encontrou a sua perfeita expressão no conhecido anúncio que Nietzsche põe na boca do “homem louco”, que chega sem fôlego à praça da cidade:

Para onde foi Deus? — exclamou — É o que vou dizer. Nós o matamos — vocês e eu!... nunca houve ação mais grandiosa e aqueles que nascerem depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma história mais elevada do que o foi alguma vez toda essa história1.

Na lógica destas palavras — e, creio eu, nas expectativas de seu autor —, estava o fato de que, depois dele, a história não seria mais dividida em antes de Cristo e depois de Cristo, mas antes de Nietzsche e depois de Nietzsche. Aparentemente, não é o nada que é colocado no lugar de Deus, mas o homem, e, mais precisamente, o “super-homem”, o “além-homem”. Deste novo homem, deve-se exclamar então — com um sentimento de satisfação e orgulho, não mais de compaixão: “Ecce homo!”: Eis o verdadeiro homem!2. Não demorará, contudo, a se dar conta de que, ao ficar só, o homem não é nada.

Que fizemos quando desprendemos esta terra da corrente que a ligava ao sol? Para onde vai agora? Para onde vamos nós? Longe de todos os sóis? Não estamos incessantemente caindo? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima e um abaixo? Não estaremos errando como num nada infinito?

A resposta tácita e reconfortante do “homem louco” a estas perguntas é: “Não, não erraremos em um nada infinito, porque o homem desempenhará, ele mesmo, a tarefa até agora designada a Deus!”. A nossa resposta de crentes, ao contrário, é: “Sim, e é exatamente o que aconteceu e o que está acontecendo! Estamos errando como num nada infinito”. É significativo que, justamente no rastro do autor daquele anúncio, chegou-se a definir a existência humana um “ser-para-a-morte” e a considerar todas as supostas possibilidades do homem como “nulidade em partida”3. “Além do bem e do mal”, foi um outro grito de guerra do filósofo!4; mas além do bem e do mal, há apenas “a vontade de potência”, e nós sabemos aonde ela conduz...

Não nos é lícito julgar o coração de um homem que somente Deus conhece. Também o autor daquele anúncio teve a sua parte de sofrimento na vida, e o sofrimento une a Cristo talvez mais do que as invetivas separem dele. A oração de Jesus na cruz: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!” (Lc 23,34), não foi pronunciada apenas por aqueles que estavam presentes naquele dia no Calvário!

Volta-me à mente uma imagem que, às vezes, tenho observado ao vivo (e que espero que tenha se tornado uma realidade, no meio-tempo, para o autor daquele anúncio!): uma criança, furiosa, tenta golpear o próprio pai com socos e arranhões no rosto, até que, esgotadas as forças, cai chorando nos braços daquele que o acalma e o aperta ao peito.

Não julgamos, repito, a pessoa, que só Deus conhece. A consequência, porém, que aquele seu anúncio teve, aquela sim, podemos e devemos julgar. Ela foi declinada nos modos e com os mais diversos nomes, até se tornar uma moda, uma atmosfera que se respira nos ambientes intelectuais do Ocidente “pós-moderno”. O denominador comum a todas estas diversas declinações é o total relativismo em todo campo: ética, linguagem, filosofia, arte e, naturalmente, religião. Nada mais é sólido; tudo é líquido, ou mesmo vaporoso. Na época do romantismo, deleitava-se na melancolia, hoje, no niilismo.

Como crentes, é nosso dever mostrar o que está por trás ou sob aquele anúncio, isto é, a trepidação de uma antiga chama, a erupção repentina de um vulcão jamais extinto desde o início do mundo. O drama humano teve, também ele, o seu “prólogo no céu”, naquele “espírito da negação” que não aceitou existir na graça de um outro. Desde então, ele não faz outra coisa senão recrutar apoiadores da sua causa, primeiros dos quais, os ingénuos Adão e Eva: “Sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal!” (Gn 3,5).

Para o homem moderno, tudo isso não parece mais do que um mito etiológico para explicar o mal do mundo. E — no sentido positivo que hoje se dá ao mito — assim ele é na realidade! Mas a história, a literatura e a nossa própria experiência pessoal nos dizem que, por trás deste “mito”, há uma verdade transcendente que nenhuma narrativa histórica ou raciocínio filosófico poderia nos transmitir.

Deus conhece nosso orgulho e veio ao nosso encontro, aniquilando-se, ele primeiro, diante de nossos olhos.

Cristo Jesus,
existindo em forma divina,
não considerou um privilégio
um privilégio ser igual a Deus,
mas esvaziou-se,
assumindo a forma de servo
e tornando-se semelhante
ao ser humano.
E encontrado em aspeto humano,
humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte —
e morte de cruz!

“Deus? Nós o matamos — vocês e eu!”: Esta coisa tremenda se realizou, de fato, uma vez na história humana, mas em sentido bem diferente daquele bradado pelo “homem louco”. Porque é verdade, irmãos e irmãs: fomos nós — vocês e eu — que matamos Jesus de Nazaré! Ele morreu pelos nossos pecados e também pelos de todo o mundo (1 Jo 2,2). Mas a sua ressurreição assegura-nos que este caminho não conduz à derrota, mas, graças ao nosso arrependimento, conduz àquela "apoteose da vida", em vão buscada em outros lugares.

Por que falar disto em uma liturgia da Sexta-feira Santa? Não para convencer os ateus de que Deus não está morto! Os mais celebres dentre eles descobriram-no por conta própria, no momento em que fecharam os olhos à luz — antes, às trevas — deste mundo. Quanto àqueles dentre eles que ainda estão em vida, para convencê-los são necessários outros meios, mais do que as palavras de um velho pregador. Meios que o Senhor não deixará faltar a quem tem o coração aberto à verdade, como pediremos a Deus na Oração Universal a seguir.

Não, o verdadeiro objetivo é preservar os crentes — quem sabe, talvez apenas alguns estudantes universitários — de serem atraídos para dentro deste vórtice do niilismo, que é o verdadeiro “buraco negro” do universo espiritual; fazer ressoar entre nós a admoestação sempre atual do nosso Dante Alighieri:

A razões, pesai bem,
que vos inspiram, Cristãos!
Não sede pluma a qualquer vento!

As nódoas com toda a água se não tiram5.

Continuemos, Veneráveis Padres, irmãos e irmãs, a repetir, mais convictos do que nunca, as palavras que proclamamos a cada Missa:

Anunciamos, Senhor, a vossa morte

e proclamamos a vossa ressurreição.

Vinde, Senhor Jesus!

(Tradução de Fr. Ricardo Farias, ofmcap )


1 Cf. Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, n. 125.

2 Cf. Friedrich Nietzsche, Ecce homo, 1888.

3 Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, seção ii , cap. 2-3.

4 Cf. F. Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, Lípsia 1886.

5 Cf. Paraíso, v , 73-75.