Paz como fruto
«Depois consagrei todas as Vésperas, cerca de três horas, à leitura da encíclica de Páscoa em preparação, que me foi feita por mons. Pavan: “A paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade”. Manuscrito de 111 páginas datilografadas. Li tudo, sozinho, com calma e minuciosamente: e considero um trabalho muito bem pensado e bem feito. A última parte: “Diretrizes pastorais” em pleníssima ressonância com o meu espírito. Começo a rezar pela eficácia deste documento, que espero seja publicado na Páscoa e que seja motivo de grande edificação». Assim João xxiii — já gravemente doente — escreveu a 7 de janeiro de 1963, confiando ao diário um desejo que foi realizado só parcialmente. Sim, porque se a encíclica depois intitulada “Pacem in terris” e dirigida pela primeira vez também “a todos os homens de boa vontade”, foi promulgada nos tempos desejados, a 11 de abril seguinte, Quinta-feira Santa — e até assinada dois dias antes diante das câmaras de televisão — sessenta anos mais tarde deve ser ainda aceite nas suas firmes indicações. Aquelas que esboçam o desenho de uma nova ordem mundial fundada nos «valores da verdade, justiça, solidariedade e liberdade», e de uma paz «anseio profundo de todos os homens de todos os tempos», imaginada não só como ausência de guerra, mas como objetivo de um processo educativo, espiritual, político e económico. De facto, não só se continua a «fazer» guerras, e não cessam as violações de direitos elementares e da dignidade humana, expressão que se repete mais de trinta vezes na encíclica. Não só são ignorados os apelos à difusão de uma cultura de não-violência que — recorda o Papa Francisco — «praticada com decisão e coerência produziu resultados impressionantes», mas revelam-se um desperdício de papel até acordos e pactos formalmente subscritos por muitos governos. Em suma: uma encíclica viva e inacabada. Ficando de facto desatendido aquele compromisso permanente pela paz e por aquele bem comum que «a mesma razão de ser dos poderes públicos», recomendado naquele que é o último dom de um grande semeador de paz, com muitas experiências vividas entre o Oriente e o Ocidente, inclusive como testemunha dos dois conflitos mundiais do século xx .
«Pacem in terris» tinha germinado já durante a crise dos mísseis de Cuba, quando em outubro de 1962 viu o Papa Roncalli — nos dias da abertura do Concílio — como protagonista de um apelo a favor da paz aceite por Kennedy e Kruscev num mundo à beira da guerra nuclear. Quem imaginou um texto para dar forma àquele compromisso, a partir de novembro de 1962, foi Pietro Pavan, um sacerdote especialista de doutrina social da Igreja, que teve uma grande parte na redação que circulou a partir de janeiro sucessivo entre os peritos, e que permaneceu quase invariada na sua força profética nalguns pontos então removidos (por exemplo a objeção de consciência), mas que foram restaurados pouco depois pela força de alguns profetas e pelo empenho de pequenas comunidades. De qualquer maneira, o ponto principal da encíclica, aquele que se considera irracional (“alienum a ratione”) — após o advento da energia nuclear — a própria ideia de resolver as controvérsias com recurso às armas. Não sem indicar perspetivas relativas à construção da paz, e de um «desarmamento integral» que investe «também os espíritos». E se durante muito tempo a Igreja tinha ensinado que a guerra era admissível como legítima defesa, eis que a «Pacem in terris» afirma que o desequilíbrio entre os meios à disposição (armas atómicas) e a finalidade (restauração dos direitos violados) torna impossível a continuação nesta linha. Em síntese, sem o mencionar: basta com a «guerra justa». E — isto — dito com palavras que aderem ao Evangelho, confiantes nos atentos percursos para a promoção dos direitos humanos, protegidos contra os choques das ideologias responsáveis da cultura do descarte com as formas mais diversas de exploração e marginalização.
Mas não é tudo. Porque «Pacem in terris» também permanece a encíclica que convida a «nunca confundir o erro com o errante»; a reconhecer «os encontros e os entendimentos, nos vários setores da ordem temporal, entre crentes e quantos não creem» como oportunidade para «descobrir a verdade e prestar-lhe homenagem». E que declara: «Cumpre não identificar falsas ideias filosóficas sobre a natureza, a origem e o fim do universo e do homem com movimentos históricos de finalidade económica, social, cultural ou política». Mesmo que originados ou inspirados por elas e destinadas a permanecer sempre as mesmas, os movimentos — continua a encíclica que reconcilia Igreja e democracia, doutrina social e direitos humanos — «não podem deixar de lhes sofrer o influxo e, portanto, são suscetível de alterações profundas». O leitmotiv que atravessa todo o texto em filigrana permanece, numa inspeção mais atenta, o convite a reconhecer os «sinais dos tempos», os modos nos quais a História move páginas do Evangelho. Perscrutá-los, questionar-se sobre o seu significado, não é apenas responsabilidade do Papa, mas de cada mulher ou homem de boa vontade chamado a dar a sua contribuição para pôr fim às carnificinas em curso e, a partir disto, também para manter abertos os canais onde — entre realismo e utopia — a esperança encontra espaço. E onde querer a paz não pode ser apenas não querer a guerra.
Marco Roncalli