Missa presidida pelo Santo Padre na praça de São Pedro no domingo de Ramos e da Paixão do Senhor

Cuidar de Jesus hoje
nos numerosos cristos abandonados

 Cuidar de Jesus hoje   POR-014
06 abril 2023

«Hoje há tantos “cristos abandonados”» dos quais é necessário cuidar; «peçamos para saber amar Jesus» em cada um deles; «não permitamos que a voz deles se perca no silêncio ensurdecedor da indiferença», ressaltou o Papa Francisco na homilia da missa no domingo de Ramos, presidida no adro da basílica do Vaticano na manhã de 2 de abril, na presença de sessenta mil fiéis reunidos na praça de São Pedro. Publicamos a seguir o texto da homilia pronunciada pelo Pontífice após a proclamação da Paixão do Senhor segundo Mateus.

«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Mt 27, 46): é a invocação que a Liturgia nos fez repetir hoje no Salmo Responsorial (cf. Sl 22/21, 2), sendo também – no Evangelho que ouvimos – a única pronunciada na cruz por Jesus. Representam, pois, as palavras que nos conduzem ao coração da paixão de Cristo, ao ponto culminante dos sofrimentos que padeceu para nos salvar. «Porque me abandonaste?».

Muitos foram os sofrimentos de Jesus e, sempre que ouvimos a narração da paixão, penetram-nos na alma. Foram sofrimentos do corpo: pensemos nas bofetadas, nas pancadas, na flagelação, na coroa de espinhos, na tortura da cruz. Foram sofrimentos da alma: a traição de Judas, as negações de Pedro, as condenações religiosa e civil, a zombaria dos guardas, os insultos ao pé da cruz, a rejeição de tantos, a falência de tudo, o abandono dos discípulos. E contudo, no meio de todo este sofrimento, restava a Jesus uma certeza: a proximidade do Pai. Mas agora acontece o impensável; antes de morrer, clama: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?». O abandono de Jesus.

Estamos perante o sofrimento mais dilacerante, que é o sofrimento do espírito: na hora mais trágica, Jesus experimenta o abandono por parte de Deus. Antes disto, nunca chamara o Pai pelo nome genérico de Deus. Para nos fazer sentir a intensidade daquele momento, o Evangelho apresenta a frase também em aramaico; dentre as palavras pronunciadas por Jesus na cruz, esta é a única que nos chega na língua original. O acontecimento real é o abaixamento extremo, ou seja, o abandono de seu Pai, o abandono de Deus. Aquilo que o Senhor chega a sofrer por nosso amor, até temos dificuldade de o entender. Vê o céu fechado, experimenta o viver no seu amargo limite, o naufrágio da existência, o colapso de toda a certeza: grita “o porquê dos porquês”. “Tu, ó Deus, porquê?”.

«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?». Na Bíblia, o verbo “abandonar” é forte; aparece em momentos de dor extrema: em amores fracassados, rejeitados e traídos; em filhos enjeitados e abortados; em situações de repúdio, viuvez e orfandade; em casamentos gorados, em exclusões que privam dos laços sociais, na opressão da injustiça e na solidão da doença. Em suma, nas mais drásticas dilacerações dos vínculos, aplica-se esta palavra: “Abandono”. Cristo levou tudo isto para a cruz, ao carregar sobre si o pecado do mundo. E, no auge, Ele — Filho unigénito e predileto — experimentou a situação mais estranha no seu caso: o abandono, a distância de Deus.

E porque foi tão longe? Por nós; não há outra resposta. Por nós. Irmãos e irmãs, isto hoje não é um espetáculo. Cada um de nós, ouvindo referir o abandono sofrido por Jesus, diga para si mesmo: por mim. Este abandono é o preço que pagou por mim. Fez-se solidário com cada um de nós até ao ponto extremo, para estar connosco até ao fim. Experimentou o abandono para não nos deixar reféns da desolação e permanecer ao nosso lado para sempre. Fê-lo por mim, por ti, para que, quando eu, tu ou qualquer outro se vir encurralado à parede, perdido num beco sem saída, precipitado no abismo do abandono, sorvido no redemoinho de tantos “porquês” sem resposta, saibamos que há uma esperança: Ele, uma esperança para ti, para mim. Não é o fim, porque Jesus esteve ali e agora está contigo: Ele que sofreu a distância causada pelo abandono para acolher no seu amor todas as nossas distâncias. A fim de que possa cada um de nós dizer: nas minhas quedas (cada um de nós caiu tantas vezes!), na minha desolação, quando me sinto traído ou traí os outros, quando me sinto descartado ou descarto os outros, quando me sinto abandonado ou abandonei os outros, pensemos que Ele foi abandonado, traído, descartado. Nisto encontramo-lo a Ele. Quando me sinto transviado e perdido, quando não aguento mais, Ele está comigo; nos meus tantos porquês sem resposta, Ele está neles.

É assim que o Senhor nos salva: a partir de dentro dos nossos “porquês”. De lá, descerra a esperança que não desilude. De facto, na cruz, enquanto experimenta o abandono extremo, não se deixa cair no desespero -— este é o limite — mas reza e entrega-se: grita o seu “porquê” com as palavras de um Salmo (22/21, 2) e entrega-se nas mãos do Pai, embora o sinta distante (cf. Lc 23, 46) ou nem o sinta sequer, porque se encontra abandonado. No abandono, entrega-se. No abandono, continua a amar os seus que o deixaram sozinho. No abandono, perdoa aos que o crucificaram (cf. Lc 23, 34). E assim o abismo dos nossos inúmeros males é imerso num amor maior, de tal modo que cada uma das nossas separações se transforma em comunhão.

Irmãos e irmãs, um amor assim como o de Jesus, que dá tudo por nós, até ao fim, é capaz de transformar os nossos corações de pedra em corações de carne. É um amor de piedade, ternura e compaixão. Este é o estilo de Deus: proximidade, compaixão e ternura. Deus é assim. Cristo, abandonado, impele-nos a procurá-lo e a amá-lo nos abandonados. Porque neles, não temos apenas necessitados, mas temo-lo a Ele, Jesus abandonado, Aquele que nos salvou descendo até ao fundo da nossa condição humana. Ele está com cada um deles, abandonados até à morte... Penso naquele homem dito “vadio por estrada”, alemão, que morreu sob a colunata, sozinho, abandonado. É Jesus para cada um de nós. Muitos precisam da nossa proximidade, tantos abandonados. Também eu preciso que Jesus me acaricie e se aproxime de mim, e, para isso, vou encontrá-lo nos abandonados, nas pessoas sozinhas. Ele deseja que cuidemos dos irmãos e irmãs que mais se parecem com Ele, com Ele no ato extremo do sofrimento e da solidão. Hoje, queridos irmãos e irmãs, há tantos “cristos abandonados”. Há povos inteiros explorados e deixados à própria sorte; há pobres que vivem nas encruzilhadas das nossas estradas e cujo olhar não temos a coragem de fixar; há migrantes, que já não são rostos, mas números; há reclusos rejeitados, pessoas catalogadas como problema. Mas há também muitos cristos abandonados invisíveis, escondidos, que são descartados de forma “elegante”: crianças não nascidas, idosos deixados sozinhos — podem porventura ser o teu pai, a tua mãe, o avô, a avó, abandonados nos lares de terceira idade — doentes não visitados, pessoas portadoras de deficiência ignoradas, jovens que sentem dentro um grande vazio sem que ninguém escute verdadeiramente o seu grito de dor. E não encontram outra estrada senão o suicídio. Os abandonados de hoje. Os cristos de hoje.

Jesus abandonado pede-nos para termos olhos e coração para os abandonados. Para nós, discípulos do Abandonado, ninguém pode ser marginalizado, ninguém pode ser deixado a si mesmo; porque — recordemo-lo — as pessoas rejeitadas e excluídas são ícones vivos de Cristo, recordam-nos o seu amor louco, o seu abandono que nos salva de toda a solidão e desolação. Irmãos e irmãs, peçamos hoje esta graça: saber amar Jesus abandonado e saber amar Jesus em cada abandonado, em cada abandonada. Peçamos a graça de saber ver, saber reconhecer o Senhor que continua a clamar neles. Não permitamos que a sua voz se perca no silêncio ensurdecedor da indiferença. Não fomos deixados sozinhos por Deus; cuidemos de quem é deixado só. Então, só então, faremos nossos os desejos e os sentimentos d’Aquele que por nós «se esvaziou a si mesmo» (Fl 2, 7).

Esvaziou-se totalmente por nós!