Arte do encontro e arquitetura da reconciliação

06 abril 2023

Falando sobre injustiças históricas e crimes de guerra na sua encíclica Fratelli tutti, o Papa Francisco afirma que «hoje é fácil cair na tentação de virar a página, dizendo que já passou muito tempo e é preciso olhar para diante. Isso não, por amor de Deus! Sem memória, nunca se avança; não se evolui sem uma memória íntegra e luminosa» (Fratelli tutti, 249).

Na Nota sobre a “Doutrina da descoberta” (publicada a 31 de março pelo Dicastério para a cultura e a educação e pelo Dicastério para o serviço do desenvolvimento humano integral), a Santa Sé examina cuidadosamente a história da Igreja e a sua deplorável associação com a doutrina da descoberta, que foi invocada por várias potências coloniais contra as populações indígenas em diferentes partes do mundo para justificar a expropriação da sua história e a subestimação e eliminação das suas culturas.

A nota reconhece que as Bulas papais sobre as quais as potências coloniais apoiaram as suas reivindicações não refletiam adequadamente a igual dignidade e direitos dos povos indígenas e que os documentos foram manipulados por essas potências para justificar atos imorais contra eles perpetrados, por vezes sem a oposição das autoridades eclesiásticas. A doutrina da descoberta não fazia parte do ensinamento da Igreja católica, e é repudiada nesta Nota; mas este trágico acontecimento lembra-nos a necessidade de nos mantermos cada vez mais vigilantes na nossa defesa da dignidade de todos os homens e a necessidade de crescer no conhecimento e apreciação das suas culturas. Especificamente, como o Papa Francisco nos recordou na Encíclica Laudato si’: «É indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais... Com efeito, para elas, a terra não é um bem económico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus valores» (Laudato si’, 146).

Esta Nota faz parte daquilo a que poderíamos chamar a arquitetura da reconciliação, e é também o produto da arte da reconciliação, o processo no qual as pessoas se envolvem na escuta umas das outras, conversando umas com as outras e crescendo na compreensão recíproca. Neste sentido, as intuições que informam esta Nota são, elas mesmos, fruto de um diálogo renovado entre a Igreja e as populações indígenas. É ouvindo os povos indígenas que a Igreja aprende a compreender o seu sofrimento, passado e presente, e as nossas faltas. É no diálogo cultural que estamos empenhados a acompanhá-los na busca da reconciliação e da cura. Devemos viver a arte do encontro.

José Tolentino de Mendonça
Cardeal prefeito do Dicastério para a cultura e a educação