À assembleia geral da Pontifícia Academia para a vida

Não à tentação de fazer prevalecer o virtual sobre
o real

 Não à tentação de fazer prevalecer  o virtual sobre o real  POR-008
23 fevereiro 2023

«A tecnologia não pode suplantar o contacto humano, o virtual não pode substituir o real, nem as redes sociais o âmbito social», foi a advertência do Papa no discurso dirigido aos membros da Pontifícia Academia para a vida, recebidos em audiência a 20 de fevereiro, na Sala do Consistório, por ocasião da 28ª assembleia geral que se realizou no Vaticano de 20 a 22 do corrente mês sobre o tema «Convergir para a pessoa. Tecnologias emergentes para o bem comum».

Ilustres Senhoras e Senhores
Estimados irmãos e irmãs
Senhor Cardeal, prezados Bispos!

Dou-vos as cordiais boas-vindas! Agradeço ao Arcebispo Paglia pelas palavras que me dirigiu e a todos vós pelo compromisso que dedicais à promoção da vida humana. Obrigado! Durante estes dias refletireis sobre a relação entre pessoa, tecnologias emergentes e bem comum: é uma fronteira delicada na qual se encontram progresso, ética e sociedade, e onde a fé, na sua perene atualidade, pode oferecer um valioso contributo. Neste sentido, a Igreja nunca deixa de encorajar o progresso da ciência e da tecnologia ao serviço da dignidade da pessoa e para um desenvolvimento humano «integral e integrante».1 Na carta que vos dirigi por ocasião do vigésimo quinto ano da fundação da Academia, convidei-vos a aprofundar precisamente este tema;2 agora gostaria de refletir convosco acerca de três desafios que considero importantes a este propósito: a mudança das condições de vida do homem no mundo tecnológico; o impacto das novas tecnologias na própria definição de “homem” e de “relação”, com particular referência à condição dos sujeitos mais vulneráveis; o conceito de “conhecimento” e as consequências que dele derivam.

Primeiro desafio: a mudança das condições de vida do homem no mundo da técnica. Sabemos que é próprio do homem agir no mundo de forma tecnológica, transformando o ambiente e melhorando as condições de vida. Bento xvi recordou-o quando disse que a tecnologia «dá resposta à própria vocação do trabalho humano» e que «na técnica, considerada como obra do génio pessoal, o homem reconhece-se a si mesmo e realiza a própria humanidade».3 Por conseguinte, ela ajuda-nos a compreender cada vez melhor o valor e as potencialidades da inteligência humana, e ao mesmo tempo, fala-nos da grande responsabilidade que temos em relação à criação.

No passado, a ligação entre culturas, atividades sociais e meio ambiente, graças a interações menos densas e com efeitos mais lentos, era menos impactante. Hoje, contudo, o rápido desenvolvimento dos meios técnicos torna a interdependência entre o homem e a “casa comum” mais intensa e evidente, como São Paulo vi já reconheceu na Populorum progressio.4 Aliás, a força e a aceleração das intervenções é tal que produz mutações significativas — porque existe uma aceleração geométrica, não matemática — tanto no meio ambiente como nas condições de vida do homem, com efeitos e desenvolvimentos nem sempre claros e previsíveis. Isto é demonstrado por várias crises, da pandemia à energética, da crise climática à migratória, cujas consequências se repercutem umas sobre as outras, amplificando-se reciprocamente. Um saudável desenvolvimento tecnológico não pode deixar de ter em conta estes complexos entrelaçamentos.

Segundo desafio: o impacto das novas tecnologias na definição de “homem” e de “relação”, especialmente no que diz respeito à condição dos sujeitos vulneráveis. É evidente que a forma tecnológica da experiência humana se tornar cada vez mais pervasiva: nas distinções entre “natural” e “artificial”, “biológico” e “tecnológico”, os critérios com os quais discernir o que é próprio do humano e da técnica tornam-se cada vez mais difíceis. Por conseguinte, é importante uma reflexão séria sobre o valor do homem. Em particular, é preciso reiterar a importância do conceito de consciência pessoal como experiência relacional, que não pode prescindir nem da corporeidade nem da cultura. Por outras palavras, na rede das relações, tanto subjetivas como comunitárias, a tecnologia não pode suplantar o contacto humano, o virtual não pode substituir o real, nem as redes sociais o âmbito social. E somos tentados a fazer prevalecer o virtual sobre o real: esta é uma péssima tentação.

Também no âmbito dos processos de investigação científica, a relação entre pessoa e comunidade assinala implicações éticas cada vez mais complexas. Por exemplo, no setor da saúde, onde a qualidade da informação e da assistência ao indivíduo depende em grande medida da recolha e do estudo dos dados disponíveis. Aqui deve ser abordado o problema de combinar a confidencialidade dos dados da pessoa com a partilha das informações que lhe dizem respeito no interesse de todos. De facto, seria egoísta pedir para ser tratado com os melhores recursos e competências dos quais a sociedade dispõe sem contribuir para os aumentar. Mais em geral, penso na urgência que a distribuição dos recursos e o acesso aos tratamentos beneficiem todos, para que sejam reduzidas as desigualdades e seja garantido o apoio necessário especialmente para os sujeitos mais frágeis, como as pessoas deficientes, doentes e pobres.

Por isso é necessário vigiar sobre a velocidade das transformações, sobre a interação entre as mudanças e sobre a possibilidade de garantir o seu equilíbrio total. Não é certo que tal equilíbrio seja igual nas diversas culturas, como ao contrário parece presumir a perspetiva tecnológica quando se impõe como linguagem e cultura universal e homogénea — este é um erro; aliás, o compromisso deve «procurar que cada um cresça com o seu estilo peculiar, desenvolvendo as suas capacidades de inovar a partir dos valores da sua própria cultura».5

Terceiro desafio: a definição do conceito de conhecimento e as consequências que dele derivam. Todos os elementos considerados até agora levam-nos a questionar-nos sobre os nossos modos de conhecer, cientes do facto de que o tipo de conhecimento que implementarmos já tem implicações morais. É, por exemplo, redutivo procurar a explicação dos fenómenos apenas nas caraterísticas de cada um dos elementos que os compõem. São necessários modelos mais articulados, que considerem o entrelaçamento das relações com as quais os acontecimentos individuais são permeados. É paradoxal, por exemplo, referindo-se a tecnologias de potenciação das funções biológicas de um sujeito, falar de homem «aumentado» se se esquecer que o corpo humano se refere ao bem integral da pessoa e, portanto, que não pode ser identificado apenas com o organismo biológico. Uma abordagem errada neste campo acaba, na realidade, não por “aumentar”, mas por “comprimir” o homem.

Na Evangelii gaudium e especialmente na Laudato si’, realcei a importância de um conhecimento à medida do homem, orgânico, por exemplo, sublinhando que «o todo é superior às partes» e que «no mundo tudo está estreitamente interligado».6 Considero que tais temáticas possam fomentar uma renovada forma de pensar inclusive no âmbito teológico;7 com efeito, é bom que a teologia prossiga na superação de abordagens eminentemente apologéticas, a fim de contribuir para a definição de um novo humanismo e favorecer a recíproca escuta e a mútua compreensão entre ciência, tecnologia e sociedade. De facto, a falta de um diálogo construtivo entre estas realidades empobrece a confiança mútua que está na base de qualquer convivência humana e de todas as formas de «amizade social».8 Gostaria de mencionar também a importância da contribuição que oferece para tal finalidade o diálogo entre as grandes tradições religiosas. Elas possuem uma sabedoria secular, que pode ajudar nestes processos. Demonstrastes que sabeis captar o seu valor, por exemplo, promovendo, inclusive em tempos recentes, encontros inter-religiosos sobre os temas do «fim da vida»9 e da inteligência artificial.10

Caros irmãos e irmãs, diante de desafios atuais tão articulados, a tarefa que tendes perante vós é enorme. Trata-se de partir das experiências que todos partilhamos como seres humanos e estudá-las, assumindo as perspetivas da complexidade, do diálogo transdisciplinar e da colaboração entre diferentes sujeitos. Mas nunca devemos desanimar: sabemos que o Senhor não nos abandona e que o que realizamos está enraizado na confiança que depositamos n’Ele, «amante da vida» (Sb 11, 26). Trabalhastes arduamente nos últimos anos para assegurar que o crescimento científico e tecnológico se reconcilie cada vez mais com um paralelo «desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência»:11 convido-vos a prosseguir este caminho, enquanto vos abençoo e vos peço, por favor, que rezeis por mim. Obrigado!


1 Carta encíclica Laudato si’, n. 141.

2 Cf. Humana communitas, 6 de janeiro de 2019, nn. 12-13.

3 Bento xvi , Carta encíclica Caritas in veritate, n. 69.

4 Cf. n. 65.

5 Carta encíclica Fratelli tutti, n. 51.

6 Exortação apostólica Evangelii gaudium, nn. 234-237; Carta encíclica Laudato si’, n. 16.

7 Cf. Constituição apostólica Veritatis gaudium, nn. 4-5.

8 Cf. Carta encíclica Fratelli tutti, n. 168.

9 Cf. Declaração conjunta das religiões monoteístas abramíticas sobre as problemáticas do fim da vida, 28 de outubro de 2019.

10 Cf. Assinatura da Rome Call for ai Ethics, 10 de janeiro de 2023.

11 Carta encíclica Laudato si’, n. 105.