Às autoridades, à sociedade civil e ao corpo diplomático

Discurso às autoridades

 Discurso  às autoridades  POR-006
09 fevereiro 2023

Com a chegada, na tarde de 3 de fevereiro, ao aeroporto de Juba, teve início a segunda etapa da viagem do Papa Francisco à África. Do aeroporto internacional, o Pontífice transferiu-se de carro para o Palácio presidencial na capital do Sudão do Sul, para a visita de cortesia ao chefe de Estado, feita com o arcebispo de Canterbury, Justin Welby, e com o moderador da Assembleia geral da Igreja da Escócia, o pastor Iain Greenshields. Depois de se encontrar em particular com o presidente da República no seu gabinete, o bispo de Roma foi à “Board Room” para saudar os cinco vice-presidentes Riek Machar Teny Dhurgo, James Wani Igga, Taban Deng Gai, Rebecca Nyandeng Garang De Mabior e Hussein Abdelbagi. Em seguida, no jardim da residência, teve lugar o primeiro encontro público no país: com as autoridades, a sociedade civil e o corpo diplomático, cadenciado pelos discursos do chefe de Estado, do arcebispo Welby, do pastor Greenshields e do Papa Francisco, cujo texto publicamos a seguir.

Senhor Presidente da República
Senhores Vice-Presidentes
Ilustres Membros do Governo
e do Corpo Diplomático
Distintas Autoridades religiosas
Insignes Representantes
da sociedade civil
e do mundo da cultura
Senhoras e Senhores!

Obrigado, Senhor Presidente, pelas suas palavras! Sinto-me feliz por estar nesta terra que trago no coração. Agradeço-lhe, Senhor Presidente, o acolhimento que me reservou. Saúdo cordialmente cada um dos presentes e, em vós, a todas as mulheres e homens que povoam este jovem e querido país. Venho como peregrino de reconciliação, com o sonho de vos acompanhar no vosso caminho de paz: caminho tortuoso, mas inadiável. Não cheguei aqui sozinho, porque na paz, como na vida, caminha-se juntos; por isso eis-me aqui acompanhado por dois irmãos: o Arcebispo de Cantuária e o Moderador da Assembleia Geral da Igreja da Escócia, a quem agradeço tudo o que nos dirão. Juntos, apresentamo-nos em nome de Jesus Cristo, Príncipe da Paz, estendendo as mãos a cada um de vós e a este povo.

De facto, empreendemos esta peregrinação ecuménica de paz depois de ter escutado o clamor de um povo inteiro que, com grande dignidade, chora pela violência que padece, pela perene falta de segurança, pela pobreza que o aflige e pelos desastres naturais que assolam. Estes anos de guerras e conflitos parecem não ter fim, e ainda recentemente — até mesmo ontem — se verificaram duros confrontos, enquanto os processos de reconciliação parecem paralisados e as promessas de paz permanecem por cumprir. Que não seja em vão este sofrimento extenuante; que a paciência e os sacrifícios do povo sul-sudanês, desta gente jovem, humilde e corajosa, interpelem a todos e, como sementes que, enterradas, dão vida à planta, vejam desabrochar rebentos de paz que produzam fruto. Irmãos e irmãs, é a hora da paz!

Frutos e vegetação abundam aqui, graças ao grande rio que atravessa o país. Aquilo que o antigo historiador Heródoto dizia do Egito — é um «dom do Nilo» — vale também para o Sudão do Sul. Verdadeiramente esta, como aqui se diz, é a «terra da grande abundância». Quero, pois, deixar-me levar pela imagem do grande rio que atravessa este país, recente mas com uma história antiga. Ao longo dos séculos, os exploradores penetraram neste território onde nos encontramos, para subir o Nilo Branco à procura das nascentes do rio mais comprido do mundo. E é precisamente a partir da busca das fontes da convivência que pretendo começar o meu percurso convosco. Com efeito esta terra, que abunda de tantos bens quer no subsolo quer sobretudo nos corações e nas mentes dos seus habitantes, hoje precisa de ser novamente dessedentada por fontes frescas e vitais.

Distintas Autoridades, vós sois estas fontes, as fontes que irrigam a convivência geral, os pais e as mães deste país-menino. Vós sois chamados a regenerar a vida social, como fontes transparentes de prosperidade e de paz, pois é disto que necessitam os filhos do Sudão do Sul: necessitam de pais, não patrões; de passos firmes de desenvolvimento, não quedas contínuas... Os anos que se seguiram ao nascimento do país, marcados por uma meninice ferida, deem lugar a um crescimento pacífico: é hora! Ilustres Autoridades, os vossos «filhos» e a própria história hão de recordar-vos pelo bem que tiverdes feito a esta população, que vos foi confiada para a servirdes. As gerações futuras honrarão ou apagarão a memória dos vossos nomes com base naquilo que agora fizerdes, pois, assim como o rio deixa as nascentes para começar o seu curso, assim também o curso da história deixará para trás os inimigos da paz e nobilitará quem trabalha pela paz. De facto, como ensina a Escritura, «o homem de paz terá descendência» (cf. Sl 37, 37).

Ao contrário, a violência faz retroceder o curso da história. O mesmo Heródoto destacava os transtornos geracionais, observando como, na guerra, já não são os filhos que sepultam os pais, mas os pais que enterram os filhos (cf. Storie, i , 87). Para que esta terra não se reduza a um cemitério, mas volte a ser um jardim florido, peço-vos, de todo o coração, que acolhais uma palavra simples: não minha, mas de Cristo. E pronunciou-a precisamente num jardim — no Getsémani — quando, à vista de um dos seus discípulos que desembainhara a espada, disse: «Basta!» (Lc 22, 51). Senhor Presidente, Senhores Vice-Presidentes, em nome de Deus, do Deus a Quem rezamos juntos em Roma, do Deus manso e humilde de coração (cf. Mt 11, 29) em Quem tanta gente deste querido país acredita, é a hora de dizer basta… sem «se» nem «mas»: basta de sangue derramado, basta de conflitos, basta de violências e recíprocas acusações sobre quem as comete, basta de deixar à mingua de paz este povo dela sedento. Basta de destruição; é a hora de construir! Deixe-se para trás o tempo da guerra e surja um tempo de paz! A propósito, Senhor Presidente, trago no coração aquele colóquio noturno que tivemos, há alguns anos, no Uganda: palpava-se a sua vontade de paz... Prossigamos com isso!

Voltemos às nascentes do rio, à água que simboliza a vida. Nas fontes deste país, há outra palavra que designa o rumo empreendido pelo povo sul-sudanês em 9 de julho de 2011: República. Mas que significa ser uma res publica? Significa reconhecer-se como realidade pública, isto é, afirmar que o Estado é de todos; e consequentemente quem, dentro dele, detém maiores responsabilidades, presidindo-o ou governando-o, não pode deixar de pôr-se ao serviço do bem comum. Esta é a finalidade do poder: servir a comunidade. A tentação que está sempre à espreita é, pelo contrário, servir-se dele para os próprios interesses. Por isso não basta chamar-se República; é preciso sê-lo, a começar pelos bens primários: os abundantes recursos com que Deus abençoou esta terra não sejam reservados a poucos, mas regalia de todos; e, aos planos de retoma económica, correspondam projetos para uma distribuição equitativa das riquezas.

Para a vida de uma República, é fundamental o desenvolvimento democrático. Este defende uma benéfica distinção dos poderes, de modo que, por exemplo, quem administra a justiça possa exercê-la sem condicionamentos por parte de quem legisla ou governa. Além disso, a democracia pressupõe o respeito dos direitos humanos, e em particular a liberdade de exprimir as próprias ideias, devendo aqueles ser salvaguardados pela lei e sua aplicação. De facto, é preciso lembrar-nos que, sem justiça, não há paz (cf . São João Paulo ii , Mensagem para a celebração do xxxv Dia Mundial da Paz, 1 de janeiro de 2002), mas, também sem liberdade, não há justiça. Por isso há de ser dada a cada cidadã e cidadão a possibilidade de dispor do dom único e irrepetível que é a existência, com os meios adequados para a realizar. Como escreveu o Papa João xxiii , «o ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida» (Carta Enc. Pacem in terris, 11).

O rio Nilo deixa as nascentes e, depois de passar por algumas encostas íngremes que criam cascatas e rápidos, entra na planície sul-sudanesa, bem perto de Juba, tornando-se navegável para adiante se embrenhar em zonas mais pantanosas. De maneira análoga almejo que o trajeto de paz da República não proceda com altos e baixos, mas, a partir desta capital, possa avançar sem cair empantanado na inércia. Amigos, é tempo de passar das palavras aos atos. É tempo de virar página; é o tempo do empenho em prol de uma transformação urgente e necessária. O processo de paz e reconciliação exige um novo salto. Deem-se as mãos para levar a bom termo o Acordo de paz, bem como o seu Roteiro. Num mundo marcado por divisões e conflitos, este país acolhe uma peregrinação ecuménica de paz, que constitui uma raridade; que isto represente uma mudança de ritmo, a ocasião para o Sudão do Sul recomeçar a navegar em águas tranquilas, retomando o diálogo sem fingimentos nem oportunismos. Seja para todos uma ocasião para relançar a esperança: não só para o Governo, mas para todos. Possa cada cidadão compreender que já não é tempo de se deixar levar pelas águas insalubres do ódio, do tribalismo, do regionalismo e das diferenças étnicas. Irmãos e irmãs, é tempo de navegar juntos rumo ao futuro! Sim, «juntos»... Não se deve esquecer esta palavra: «juntos»!

O percurso do grande rio pode ainda ajudar-nos, sugerindo a modalidade. Avançando ele, ao chegar ao lago No une-se a outro rio, dando vida ao chamado Nilo Branco. A claridade límpida das águas brota do encontro. Este é o caminho, irmãos e irmãs: respeitar-se, conhecer-se, dialogar. Com efeito, se por trás de cada violência há ira e rancor, e por trás de cada ira e rancor há a memória não curada de feridas, humilhações e injustiças, a única direção a tomar para se sair disso só pode ser o encontro, a cultura do encontro: acolher os outros como irmãos e dar-lhes espaço, inclusive sabendo recuar alguns passos. Esta atitude, essencial para os processos de paz, é indispensável também para o desenvolvimento coeso da sociedade. E passar da incivilidade do conflito à civilidade do encontro decisivo é o papel que podem e querem desempenhar os jovens. Por conseguinte, sejam-lhes assegurados espaços livres de encontro para se juntarem e discutirem; e possam tomar nas suas mãos, sem medo, o futuro que lhes pertence. Sejam mais envolvidas mesmo nos processos políticos e decisórios também as mulheres, as mães que sabem como se gera e guarda a vida. Haja respeito por elas, porque quem comete violência contra uma mulher, comete-a contra Deus, que encarnou de uma mulher.

Cristo, o Verbo encarnado, ensinou-nos que, quanto mais pequenos nos fazemos dando espaço aos outros e acolhendo todo o próximo como irmão, tanto maiores nos tornamos aos olhos do Senhor. A jovem história deste país, dilacerado por conflitos étnicos, tem necessidade de voltar a encontrar a mística do encontro, a graça do conjunto. Precisa de olhar mais além dos grupos e das diferenças, para caminhar como um único povo, para o qual, à semelhança do Nilo, os vários «afluentes» trazem riqueza. Foi precisamente através do rio que os primeiros missionários, há mais de um século, desembarcaram nestas praias; à sua presença, veio juntar-se ao longo dos anos a de muitos agentes humanitários: a todos, quero agradecer pela preciosa obra que realizam. Mas penso também nos missionários que, infelizmente, encontram a morte enquanto semeiam a vida. Não os esqueçamos! E não esqueçamos também de garantir a eles e aos agentes humanitários a devida segurança e, às suas benfazejas atividades, a ajuda necessária, para que continue a singrar o rio do bem.

Todavia, às vezes um grande rio pode transbordar e provocar desastres. Nesta terra, infelizmente, experimentaram-no as numerosas vítimas de inundações, às quais expresso a minha solidariedade, fazendo apelo para que não lhes deixem faltar a devida ajuda. As calamidades naturais falam de uma criação ferida e arruinada que, de fonte de vida, pode converter-se em ameaça de morte. Precisamos de cuidar dela, com um olhar clarividente a pensar nas gerações futuras. Penso, em particular, na necessidade de combater a desflorestação causada pela ganância do lucro.

Para se prevenir os transbordamentos de um rio, é necessário manter limpo o seu leito. Metáfora aparte, a limpeza de que precisa o curso da vida social é o combate à corrupção. Iníquos circuitos de dinheiro, enredos ocultos para se enriquecer, negócios clientelares, falta de transparência: este é o fundal poluído da sociedade humana, que faz faltar os recursos necessários àquilo para que mais servem, a começar pelo combate à pobreza, que constitui o terreno fértil onde se enraízam ódios, divisões e violência. A urgência de um país civilizado é cuidar dos seus cidadãos, particularmente dos mais frágeis e desfavorecidos. Penso sobretudo nos milhões de deslocados que aqui vivem: quantos tiveram de abandonar a sua casa encontrando-se relegados à margem da vida na sequência de confrontos e deslocações forçadas!

Para que as águas de vida não se transformem em perigo de morte, é fundamental dotar um rio de diques apropriados. O mesmo vale para a convivência humana. Em primeiro lugar há que impedir a chegada de armas que, não obstante todas as proibições, continuam a surgir em muitos países da área, incluindo o Sudão do Sul: aqui há necessidade certamente de muitas coisas, mas não de mais instrumentos de morte. Outros diques são imprescindíveis para garantir o curso da vida social: refiro-me ao desenvolvimento de políticas de saúde adequadas, à necessidade de infraestruturas vitais e, de modo especial, ao papel primário do alfabetismo e da instrução, única via para que os filhos desta terra tomem nas próprias mãos o seu futuro. Eles, como todas as crianças deste continente e do mundo, têm o direito de crescer tendo na mão cadernos e brinquedos, não ferramentas de trabalho e armas.

Por fim, o Nilo Branco deixa o Sudão do Sul, atravessa outros Estados, encontra-se com o Nilo Azul e chega ao mar: o rio não conhece fronteiras, mas une territórios. De modo semelhante, para se alcançar um desenvolvimento adequado, é essencial, hoje mais do que nunca, cultivar relações positivas com outros países, a começar pelos vizinhos. Penso também no precioso contributo prestado pela Comunidade Internacional a este país: exprimo-lhe reconhecimento pelo empenho tendente a favorecer a sua reconciliação e desenvolvimento. Estou convencido de que, para se trazer contribuições proveitosas, é indispensável uma efetiva compreensão das dinâmicas e dos problemas sociais. Não basta observá-los e denunciá-los de fora; é preciso envolver-se com paciência e determinação, e em geral resistir à tentação de impor modelos pré-estabelecidos, mas estranhos à realidade local. Como disse São João Paulo ii há trinta anos, no Sudão, «devem-se encontrar soluções africanas para os problemas africanos» (Discurso na cerimónia de boas-vindas, Cartum, 10 de fevereiro de 1993).

Senhor Presidente, distintas Autoridades, seguindo o percurso do Nilo, quis adentrar-me no caminho deste país tão jovem e tão querido. Sei que algumas minhas expressões podem ter sido ousadas e diretas, mas peço-vos para acreditardes que isto nasce da estima e preocupação com que acompanho as vossas vicissitudes, juntamente com os irmãos que me acompanharam até aqui, peregrino de paz. Desejamos sinceramente oferecer a nossa oração e o nosso apoio para que o Sudão do Sul se reconcilie e mude de rumo, a fim de que o seu curso vital deixe de ser impedido pelas cheias da violência, obstaculizado pelos pântanos da corrupção e malogrado pelo transbordamento da pobreza. O Senhor do Céu, que ama esta terra, conceda-lhe um tempo novo de paz e prosperidade. Deus abençoe a República do Sudão do Sul.

Obrigado!