Homilia de Francisco durante a missa presidida na basílica de São Pedro

Dar “carne” à Palavra
que desperta, converte, une

 Dar “carne” à Palavra que desperta, converte, une  POR-004
26 janeiro 2023

«Sintamo-nos chamados por Jesus a proclamar a sua Palavra, a dar testemunho dela em situações diárias, a vivê-la em justiça e caridade, chamados a “dar-lhe carne”, acariciando a carne daqueles que sofrem. Esta é a nossa missão: procurar quem se perdeu, os oprimidos e desanimados, para lhes levar não nós mesmos, mas... o anúncio inquietador de Deus que transforma a vida, para levar a alegria de saber que Ele é Pai e se dirige a cada um»: foi a recomendação que o Papa Francisco confiou àqueles que participaram na missa que celebrou na basílica de São Pedro na manhã de 22 de janeiro, por ocasião do domingo da Palavra de Deus.

Jesus deixa a vida tranquila e incógnita de Nazaré, mudando para Cafarnaum, cidade situada junto do mar da Galileia, lugar de passagem, encruzilhada de povos e culturas diferentes. A instância que o impele é o anúncio da Palavra de Deus, que deve ser levada a todos. Vemos realmente no Evangelho que o Senhor a todos convida à conversão, e chama também os primeiros discípulos para transmitirem aos outros a luz da Palavra (cf. Mt 4, 12-23). Assumamos este dinamismo, que nos ajuda a viver o Domingo da Palavra de Deus: a Palavra é para todos, a Palavra chama à conversão, a Palavra torna-nos anunciadores.

A Palavra de Deus é para todos. O Evangelho apresenta-nos Jesus sempre em movimento, saindo ao encontro dos outros. Em nenhuma ocasião da sua vida pública, nos dá a ideia de ser um mestre estático, um professor sentado na sua cátedra; pelo contrário, vemo-lo itinerante, vemo-lo peregrino, a percorrer cidades e aldeias ao encontro de rostos e casos. Os seus pés são os do mensageiro que anuncia a boa nova do amor de Deus (cf. Is 52, 7-8). Como observa o texto, lá onde Jesus prega, na Galileia dos gentios, ao longo da via do mar, na região de além do Jordão, jazia um povo mergulhado nas trevas: estrangeiros, pagãos, mulheres e homens de variadas regiões e culturas (cf. Mt 4, 15-16). E agora também eles podem ver a luz. Assim Jesus “amplia as fronteiras”: a Palavra de Deus, que sara e levanta, não se destina apenas aos justos de Israel, mas a todos; quer alcançar os que estão longe, curar os doentes, salvar os pecadores, reunir as ovelhas perdidas e encorajar a quantos têm o coração cansado e oprimido. Em suma, Jesus ultrapassa os confins para nos dizer que a misericórdia de Deus é para todos. Não esqueçamos isto: a misericórdia de Deus é para todos e para cada um de nós. Cada um pode dizer: “A misericórdia de Deus é para mim”.

Este aspeto é fundamental também para nós. Recorda-nos que a Palavra é um dom dirigido a cada um e, por isso, não podemos jamais limitar o seu campo de ação, porque aquela, ultrapassando todos os nossos cálculos, germina de forma espontânea, imprevista e imprevisível (cf. Mc 4, 26-28), segundo modalidades e tempos que o Espírito Santo conhece. E se a salvação é destinada a todos, incluindo os mais distantes e os extraviados, então o anúncio da Palavra deve tornar-se a principal urgência da comunidade eclesial, tal como o foi para Jesus. Não nos aconteça professar um Deus de coração largo e ser uma Igreja de coração estreito (seria — ouso dizer — uma maldição); não nos aconteça pregar a salvação para todos e tornar intransitável o caminho para a acolher; não nos aconteça saber que somos chamados a levar o anúncio do Reino e transcurar a Palavra, dispersando-nos em tantas atividades secundárias ou tantos debates secundários. Aprendamos com Jesus a colocar a Palavra no centro, a alargar as fronteiras, abrir-nos às pessoas, gerar experiências de encontro com o Senhor, sabendo que a Palavra de Deus «não está cristalizada em fórmulas abstratas e estáticas, mas tem uma história dinâmica, feita de pessoas e acontecimentos, de palavras e ações, de evoluções e tensões» ( xii Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos , Instrumentum laboris «A palavra de Deus na vida e na missão da Igreja», 2008, 10).

Passemos agora ao segundo aspeto: a Palavra de Deus, que se dirige a todos, chama à conversão. De facto, na sua pregação, Jesus repete: «Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu» (Mt 4, 17). Isto significa que a proximidade de Deus não é neutral, a sua presença não deixa as coisas como estão, não defende o “não te rales”. Pelo contrário, a sua Palavra mexe connosco, desinquieta-nos, incentiva-nos à mudança, à conversão: põe-nos em crise, porque «é viva, eficaz e mais afiada que uma espada de dois gumes (...) e discerne os sentimentos e intenções do coração» (Hb 4, 12). É verdade! À semelhança de uma espada, a Palavra penetra na vida, fazendo-nos discernir sentimentos e intenções do coração, ou seja, fazendo-nos ver qual é a luz do bem a que havemos de dar espaço e onde, ao contrário, se adensam as trevas dos vícios e pecados que temos de combater. A Palavra, quando penetra em nós, transforma o coração e a mente; muda-nos, levando a orientar a vida para o Senhor.

Este é o convite de Jesus: Deus aproximou-se de ti, por isso dá-te conta da sua presença, dá espaço à sua Palavra e mudarás a perspetiva da tua vida. Por outras palavras: coloca a tua vida sob a Palavra de Deus. Este é o caminho que nos indica a Igreja: todos, mesmo os Pastores da Igreja, estamos sob a autoridade da Palavra de Deus; não sob os nossos gostos, as nossas tendências ou preferências, mas unicamente sob a Palavra de Deus que nos molda, converte, pede para permanecermos unidos na única Igreja de Cristo. Então, irmãos e irmãs, podemos perguntar-nos: a minha vida, que direção toma; donde tira a orientação? Das numerosas palavras que escuto, das ideologias ou da Palavra de Deus que me guia e purifica? E em mim, quais são os aspetos que exigem mudança e conversão?

Finalmente — terceiro aspeto — a Palavra de Deus, que se dirige a todos e chama à conversão, torna-nos anunciadores. Com efeito, Jesus passa pelas margens do lago da Galileia e chama Simão e André, dois irmãos que eram pescadores. Convida-os, com a sua Palavra, a segui-lo, dizendo que fará deles «pescadores de homens» (Mt 4, 19): já não peritos só em barcos, redes e peixes, mas peritos na busca dos outros. E como, na navegação e na pesca, aprenderam a deixar a margem para lançar as redes ao largo, de igual modo tornar-se-ão apóstolos capazes de navegar no mar aberto do mundo, indo ao encontro dos irmãos e anunciando-lhes a alegria do Evangelho. Este é o dinamismo da Palavra: atrai-nos para a “rede” do amor do Pai e torna-nos apóstolos que sentem o desejo irreprimível de fazer subir para a barca do Reino todos os que encontram. E isto não é proselitismo, porque é a Palavra de Deus que chama, não a nossa palavra.

Assim, sintamos dirigido também a nós o convite para ser pescadores de homens: sintamo-nos chamados por Jesus pessoalmente para anunciar a sua Palavra, testemunhá-la nas situações de cada dia, vivê-la na justiça e na caridade, chamados a “encarná-la” acarinhando a carne de quem sofre. Esta é a nossa missão: sair à procura de quem está perdido, de quem está oprimido e desanimado, para lhes levar, não nós mesmos, mas a consolação da Palavra, o anúncio desinquietador de Deus que transforma a vida, para lhes levar a alegria de saber que Ele é Pai e fala a cada um, levar a beleza de dizer: “Irmão, irmã, Deus aproximou-se de ti, escuta-o e, na sua Palavra, encontrarás um dom estupendo!”.

Irmãos e irmãs, quero concluir convidando simplesmente a agradecer a quem se esforça por que a Palavra de Deus volte a ser colocada no centro, partilhada e anunciada. Obrigado a quem a estuda e aprofunda a sua riqueza; obrigado aos agentes pastorais e a todos os cristãos empenhados na escuta e difusão da Palavra, especialmente os leitores e catequistas: hoje vou conferir o ministério a alguns deles. Obrigado a quantos acolheram os inúmeros convites que fiz para trazer sempre connosco o Evangelho e lê-lo todos os dias. E, por fim, um agradecimento particular aos diáconos e aos sacerdotes: Obrigado, queridos irmãos, porque não deixais faltar ao Povo santo o alimento da Palavra; obrigado por vos empenhardes a meditá-la, vivê-la e anunciá-la; obrigado pelo vosso serviço e os vossos sacrifícios. A todos nós, sirva de consolação e recompensa a doce alegria de anunciar a Palavra da salvação!


Sagrada Escritura e sacramentos
 fundamentos inseparáveis da vida cristã


«Anunciamos-vos o que vimos» (1 Jo 1, 3). A expressão do apóstolo dirigida aos primeiros cristãos das suas comunidades brota sem limites da experiência viva de Cristo. Ainda hoje, o anúncio de salvação deveria tocar o coração dos homens e mulheres do mundo, graças ao testemunho dos cristãos crentes que, embora não tenham visto, acreditaram através da escuta da Palavra de Deus. Este versículo de João é o lema do quarto Domingo da Palavra de Deus, celebrado com a missa presidida pelo Papa Francisco na manhã de 22 de janeiro, na basílica de São Pedro.

A familiaridade com a Escritura e o diálogo com Deus através da riqueza da sua Palavra constituem o fruto de uma relação constante, que faz amadurecer o caminho de fé de cada crente e permanece o primeiro motor da evangelização. Para ajudar o povo de Deus a «compreender a riqueza inesgotável» do confronto com a Escritura, em 2019 o Santo Padre estabeleceu com o motu proprio Aperuit illis, que o terceiro Domingo do tempo comum fosse dedicado à «celebração, reflexão e difusão da Palavra de Deus». Uma iniciativa que o Papa Francisco confiou a todas as comunidades católicas do mundo, com o desejo de que o dia fosse considerado um «Domingo solene». Além disso, o Domingo da Palavra insere-se precisamente no centro da Semana anual de oração pela unidade dos cristãos, e não é por acaso, realça o Papa na carta apostólica. Celebrar este dia «exprime um valor ecuménico, pois a Sagrada Escritura indica a quantos se põem à escuta o caminho a seguir para alcançar uma unidade autêntica e sólida».

Esta liturgia foi enriquecida também por momentos e símbolos muito significativos. A sete leigos foi conferido pelo Papa Francisco o ministério de catequista e a três o de leitor. Entre eles, escolhidos pelos próprios bispos, homens e mulheres em representação da Igreja universal, provenientes da Itália, Congo, Filipinas, México e País de Gales. Para cada um dos dois ministérios previu-se um rito especial; o dos catequistas apresentou-se pela primeira vez na edição do Domingo da Palavra do ano passado. Antes da homilia, os candidatos leigos são chamados pelo nome e apresentados à Igreja. Em seguida, após as palavras do Papa, a quantos recebem o ministério do leitorado é oferecida uma Bíblia, a Palavra de Deus que são chamados a anunciar, na grande responsabilidade de se fazer voz do Verbo. Aos catequistas e às catequistas, por sua vez, é confiada uma cruz, reprodução da cruz pastoral utilizada primeiro por São Paulo vi e depois por São João Paulo ii, para lhes recordar a vocação de ser missionários no mundo com o olhar sempre fixo em Cristo. 

«Sagrada Escritura e Sacramentos são inseparáveis entre eles», escreve novamente o Papa no Aperuit illis, portanto com o olhar voltado também para os catequistas. Assim, mais uma vez Francisco, em maio de 2021, com o motu proprio Antiquum ministerium oficializou e reconheceu também o ministério do catequista, chamado a apaixonar as crianças, os jovens e os adultos, pelos caminhos de Deus. As Conferências episcopais do mundo inteiro questionaram-se nos últimos anos sobre as peculiaridades da figura do catequista e começaram a estabelecer os critérios e o caminho de formação para conferir o ministério. Em síntese, colocou-se em movimento uma dinâmica para fazer descobrir a grande vocação à evangelização vivida mediante ministérios peculiares. 

A responsabilidade da evangelização exige, em primeiro lugar, o conhecimento das Sagradas Escrituras porque, como recordava São Jerónimo, «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo». Contudo, esta tarefa não é apenas para aqueles a quem a Igreja confia um ministério, mas compete a todo o povo de crentes. Precisamente por isso, a fim de reavivar o impulso à oração e de se pôr com constância perante a Palavra da salvação, no final da missa cada um dos fiéis presentes recebeu uma cópia do Evangelho de Mateus. O mesmo Evangelho que é proclamado durante este ano na celebração dominical da Eucaristia; realiza-se, assim, o que o Concílio ensinava na Constituição sobre a Palavra de Deus, Dei Verbum, pelo que os crentes se aproximam da mesa da Palavra de Deus e da mesa eucarística. 

E portanto, esta celebração pretende ser um sinal, uma ocasião para que cada crente possa redescobrir-se a caminho, como os discípulos de Emaús: sempre na presença do Senhor, vivo na Eucaristia e na Escritura.

Rino fisichella
Arcebispo pró-prefeito do Dicastério para a evangelização