Primeiras Vésperas da solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus e do “Te Deum”

Recuperar a gentileza como virtude pessoal e cívica

 Recuperar a gentileza  como virtude pessoal e cívica  POR-001
05 janeiro 2023

A homilia do Papa Francisco nas primeiras Vésperas da solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus, presidida às 17 horas de 31 de janeiro na basílica do Vaticano, centrada na gentileza da Virgem de Nazaré — com referência também à de Bento xvi, que faleceu na manhã do mesmo dia. Durante a celebração foi entoado o canto tradicional do hino “Te Deum” no final do ano civil. Publicamos a reflexão do Pontífice que desenvolveu o tema da «gentileza também como virtude cívica, pensando em particular na diocese de Roma» da qual é bispo.

«Nascido de mulher» (Gl 4, 4).

Q

uando, na plenitude dos tempos, Deus se fez homem, não veio ao mundo descendo do alto dos céus; nasceu de Maria. Nasceu não numa mulher, mas de uma mulher. É essencialmente diferente: significa que Deus quis receber a carne dela. Não a usou, mas pediu o seu “sim”, o seu consentimento. E com ela iniciou o lento caminho de gestação de uma humanidade livre do pecado e cheia de graça e de verdade, repleta de amor e de fidelidade. Uma humanidade bela, boa e verdadeira, à imagem e semelhança de Deus, e, no entanto, tecida com a nossa carne oferecida por Maria; nunca sem ela; sempre com o seu consentimento; na liberdade, na gratuidade, no respeito, no amor.

E este é o caminho que Deus escolheu para entrar no mundo, para entrar na história, este é o modo. E este modo é essencial, tão essencial quanto o próprio facto de ter vindo. A maternidade divina de Maria — maternidade virginal, virgindade fecunda — é o caminho que revela o extremo respeito de Deus pela nossa liberdade. Aquele que nos criou sem nós, não quer salvar-nos sem nós (cf. Santo Agostinho, Sermo clxix , 13).

Este seu modo de vir para nos salvar é o caminho pelo qual também nos convida a segui-lo, a continuar com Ele a tecer a nova humanidade, livre e reconciliada. Eis a expressão: humanidade reconciliada. É um estilo, um modo de se relacionar connosco, do qual derivam as inúmeras virtudes humanas de uma convivência boa e digna. Uma destas virtudes é a gentileza, como estilo de vida que favorece a fraternidade e a amizade social (cf. Enc. Fratelli tutti, 222-224).

E falando de gentileza, neste momento, o pensamento vai espontaneamente para o amado Papa emérito Bento xvi, que esta manhã nos deixou. Com emoção, recordamos a sua pessoa tão nobre, tão amável. E sentimos muita gratidão no coração: gratidão a Deus por o ter concedido à Igreja e ao mundo; gratidão a ele, por todo o bem que fez, e sobretudo pelo seu testemunho de fé e de oração, especialmente nestes últimos anos da sua vida retirada. Só Deus conhece o valor e a força da sua intercessão, dos seus sacrifícios oferecidos para o bem da Igreja.

Esta noite gostaria de repropor a gentileza também como virtude cívica, pensando em particular na nossa diocese de Roma.

A gentileza é um fator importante na cultura do diálogo, e o diálogo é indispensável para viver em paz, para viver como irmãos, que nem sempre se dão bem — é normal — mas que, no entanto, se falam, se escutam e procuram compreender-se e encontrar-se. Pensemos em «como seria o mundo sem o diálogo paciente de tantas pessoas generosas, que mantiveram unidas famílias e comunidades. O diálogo perseverante e corajoso não faz notícia como as desavenças e os conflitos; e contudo, de forma discreta mas muito mais do que possamos notar, ajuda o mundo a viver melhor» (ibid., 198). Pois bem, a gentileza faz parte do diálogo. Não é apenas questão de “formalidade”; não é questão de “etiqueta”, de formas galantes... Não, não é isto que queremos dizer aqui, falando de gentileza. Ao contrário, trata-se de uma virtude a recuperar e a exercer todos os dias, para ir contracorrente e humanizar as nossas sociedades.

Os danos do individualismo consumista saltam aos olhos de todos. E o dano mais grave é que outros, as pessoas à nossa volta, são consideradas como obstáculos à nossa tranquilidade, ao nosso conforto. Outros “incomodam-nos”, perturbam-nos, tiram-nos tempo e recursos para fazermos o que queremos. As sociedades individualistas e consumistas tendem a ser agressivas, porque os outros são concorrentes com os quais competir (cf. ibid., 222). No entanto, nestas nossas sociedades e até nas situações mais difíceis, há pessoas que demonstram que «ainda é possível escolher a gentileza» e assim, com o seu estilo de vida, «tornam-se estrelas no meio das trevas» (ibid.).

São Paulo, na mesma Carta aos Gálatas da qual foi tirada a leitura desta liturgia, fala dos frutos do Espírito Santo, e entre eles menciona um com o vocábulo grego chrestotes (cf. 5, 22). Eis o que podemos entender por “gentileza”: uma atitude benevolente, que apoia e conforta os outros, evitando toda a aspereza e dureza. Um modo de tratar o próximo, tendo o cuidado de não ferir com palavras ou gestos; procurando aliviar o fardo dos outros, encorajar, confortar, consolar; sem nunca humilhar, mortificar ou desprezar (cf. Fratelli tutti, 223).

A gentileza é um antídoto contra algumas patologias das nossas sociedades: um antídoto contra a crueldade, que infelizmente pode insinuar-se como veneno no coração e intoxicar as relações; um antídoto contra a ansiedade e o frenesim distraído que nos levar a concentrar-nos em nós próprios e a fechar-nos aos outros (cf. ibid., 224). Estas “enfermidades” da nossa vida quotidiana tornam-nos agressivos, incapazes de pedir “licença”, ou “desculpa”, ou simplesmente de dizer “obrigado”. As três palavras tão humanas da convivência: com licença, desculpa, obrigado. Com estas três palavras vai-se em frente na paz, na amizade humana. São as palavras da gentileza: com licença, desculpa, obrigado. Far-nos-á bem pensar se as utilizamos frequentemente na nossa vida: com licença, desculpa, obrigado. E assim, quando na rua, ou numa loja, ou num escritório encontramos uma pessoa gentil, ficamos impressionados, parece-nos um pequeno milagre, pois infelizmente a gentileza já não é muito comum. Mas, graças a Deus, ainda há pessoas amáveis, que sabem pôr de lado as próprias preocupações para prestar atenção aos outros, para oferecer um sorriso, uma palavra de encorajamento, para ouvir alguém que tem necessidade de se confidenciar, de desabafar (cf. ibid.).

Caros irmãos e irmãs, acho que a recuperação da gentileza como virtude pessoal e cívica pode ajudar em grande medida a melhorar a vida nas famílias, comunidades e cidades. Por isso, olhando para o novo ano na cidade de Roma, gostaria de desejar a todos nós que aqui vivemos, que cresçamos nesta virtude: a gentileza. A experiência ensina que se ela se tornar um estilo de vida, pode criar uma convivência saudável, pode humanizar as relações sociais, dissolvendo a agressão e a indiferença (cf. ibid.).

Olhemos para o ícone da Virgem Maria. Hoje e amanhã, aqui na Basílica de São Pedro, podemos venerá-la também na efígie de Nossa Senhora do Carmo em Avigliano, perto de Potenza. Não demos por certo o mistério da maternidade divina! Deixemo-nos deslumbrar pela escolha de Deus, que poderia ter aparecido no mundo de mil maneiras, mostrando o seu poder, e que ao contrário quis ser concebido em plena liberdade no seio de Maria, quis formar-se durante nove meses como qualquer criança, e no final nascer dela, nascer de mulher. Não vamos além rapidamente, paremos para contemplar e meditar, pois aqui reside uma parte essencial do mistério da salvação. E procuremos aprender o “método” de Deus, o seu infinito respeito, a sua “gentileza”, por assim dizer, pois na maternidade divina da Virgem está o caminho para um mundo mais humano!