Fazer resplandecer a luz de Cristo, não a própria

05 janeiro 2023

Bento xvi faleceu emérito e foi sepultado como pontífice. Um oceano de orações acompanhou o rito fúnebre presidido pelo Papa Francisco no adro da Basílica de São Pedro. Orações de gratidão elevaram-se de todo o mundo, na certeza de que Joseph Ratzinger pode finalmente gozar do rosto do Senhor que amou e seguiu durante toda a vida, e ao qual dirigiu as suas últimas palavras antes de entrar em agonia: “Senhor, amo-te!”.

Há uma caraterística distintiva que une Bento xvi ao seu sucessor, e podemos encontrá-la nas palavras que o Papa Ratzinger proferiu na sua primeira mensagem Urbi et orbi, na manhã do dia seguinte à sua eleição: «Ao empreender o seu ministério o novo Papa sabe que a sua tarefa é fazer resplandecer aos olhos dos homens e das mulheres de hoje a luz de Cristo: não a sua, mas a verdadeira luz do próprio Cristo». Não a própria luz, o próprio protagonismo, as próprias ideias, os próprios gostos, mas a luz de Cristo. Pois, como disse Bento xvi , «a Igreja não é a nossa Igreja, mas a Sua Igreja, a Igreja de Deus. O servo deve prestar contas de como administrou o bem que lhe foi confiado. Não ligamos os homens a nós, não procuramos poder, prestígio, estima para nós mesmos». É interessante notar que já como cardeal, durante anos, Ratzinger advertiu a Igreja contra uma patologia que a afligia e ainda a aflige: a de confiar nas estruturas, na organização. Querer “contar” na cena mundial para ser “relevante”.

Em maio de 2010 em Fátima, Bento xvi disse aos bispos portugueses: «quando no sentir de muitos a fé católica deixa de ser património comum da sociedade e, frequentemente, se vê como uma semente insidiada e ofuscada por “divindades” e senhores deste mundo, muito dificilmente aquela poderá tocar os corações graças a simples discursos ou apelos morais e menos ainda a genéricos apelos aos valores cristãos». Pois «o simples enunciado da mensagem não chega ao mais fundo do coração da pessoa, não toca a sua liberdade, não muda a vida. Aquilo que fascina é sobretudo o encontro com pessoas crentes que, pela sua fé, atraem para a graça de Cristo dando testemunho d’Ele». Não são os discursos, os grandes raciocínios ou os vibrantes apelos aos valores morais que comovem os corações das mulheres e dos homens de hoje. As estratégias de marketing religioso e de proselitismo não são necessárias para a missão. Nem pode a Igreja de hoje pensar em viver na nostalgia da relevância e do poder que teve no passado. Muito pelo contrário: Bento xvi — assim como o seu sucessor Francisco — pregou e testemunhou a importância de regressar ao essencial, a uma Igreja rica apenas na luz que recebe gratuitamente do seu Senhor.

E precisamente este regresso ao essencial é a chave para a missão. Joseph Ratzinger dissera isto quando ainda era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, durante uma catequese em dezembro de 2000, que foi citada nestes dias pelo diretor de Fides, Gianni Valente. Ratzinger partiu da parábola evangélica do Reino de Deus, comparada por Jesus com a semente de mostarda, que «é a mais pequenina de todas as sementes mas, quando germina, torna-se maior do que as outras plantas do jardim e até ser uma árvore». Explicou que ao falar da nova evangelização nas sociedades secularizadas, era necessário evitar «a tentação da impaciência, a tentação de procurar imediatamente grande sucesso, de procurar grandes números». Porque este «não é o método de Deus». A nova evangelização, acrescentou, «não pode significar: atrair imediatamente com métodos novos e mais requintados as grandes massas que se afastaram da Igreja». A própria história da Igreja, observou ainda o cardeal Ratzinger, ensina que «as grandes coisas começam sempre com os pequenos grãos e os movimentos de massa são sempre efémeros». Pois Deus «não conta com grandes números; o poder exterior não é o sinal da sua presença. A maioria das parábolas de Jesus apontam para esta estrutura de ação divina e assim respondem às preocupações dos discípulos, que esperavam sucessos e sinais bastante diferentes do Messias — sucessos do tipo oferecido por Satanás ao Senhor». Os cristãos, recordou ainda o futuro Bento xvi , «eram pequenas comunidades espalhadas pelo mundo, insignificantes segundo critérios mundanos. Na realidade elas foram o germe que penetra do interior a massa e carrega dentro de si o futuro do mundo». Portanto, não se trata de «alargar os espaços» da Igreja no mundo: «Não procuramos escuta para nós, não queremos aumentar o poder e a extensão das nossas instituições, mas queremos servir o bem das pessoas e da humanidade, dando espaço àquele que é a Vida. Esta expropriação do próprio eu, oferecendo-o a Cristo pela salvação da humanidade, é a condição fundamental do verdadeiro compromisso com o Evangelho».

Foi esta consciência que acompanhou o cristão, o teólogo, o bispo e o Papa Bento xvi durante toda a sua longa existência. Uma consciência que ressoa numa citação que o seu sucessor — a quem sempre garantiu «reverência e obediência» — quis incluir na homilia das exéquias. Foi tirada da Regra pastoral de São Gregório Magno: «No meio das tempestades da minha vida, sinto-me confortado pela confiança de que me manterás à tona sobre a tábua das tuas orações, e que, se o peso dos meus defeitos me fizer afundar e me humilhar, me emprestarás a ajuda dos teus méritos para me elevares». «É a consciência do Pastor — comentou o Papa Francisco — que não pode carregar sozinho aquilo que, na realidade, nunca poderia carregar sozinho e, portanto, sabe abandonar-se à oração e ao cuidado do povo que lhe foi confiado». Pois sem Ele, sem o Senhor, nada podemos fazer.

Andrea Tornielli