“Deus é amor”, a chave do pontificado

05 janeiro 2023

Era desde 1417 que a morte de um (ex) Papa não significava o fim de um pontificado. A morte de Bento xvi , no século Joseph Ratzinger, teve lugar a 31 de dezembro no Vaticano, quase dez anos após a sua renúncia de surpresa a 11 de fevereiro de 2013, com a leitura de uma breve declaração em latim perante os cardeais estupefatos. Nunca em dois milénios da história da Igreja um Papa tinha deixado a Cátedra por se sentir fisicamente inadequado para suportar o peso do pontificado. Além disso, numa resposta dada ao jornalista Peter Seewald no livro-entrevista «Luz do mundo» publicado três anos antes, tinha de certa forma antecipado: «Quando um Papa chega à conclusão clara de que já não é capaz física, mental e espiritualmente de realizar a tarefa que lhe foi confiada, então tem o direito e nalgumas circunstâncias até o dever de renunciar». Apesar de o epílogo do seu reino ter sido antecipado em relação ao fim da sua vida, constituindo um precedente histórico de enorme significado, seria pouco generoso recordar Bento xvi apenas por isso.

«Teen ager» teológico
no Concílio

Nascido em 1927, filho de um polícia, família simples e muito católica da Baviera, Joseph Ratzinger foi um protagonista da Igreja do último século. Ordenado sacerdote juntamente com o seu irmão Georg em 1951, tornou-se doutor em teologia dois anos mais tarde e, em 1957, obteve a licença para ensinar como professor de teologia dogmática. Ensinou em Freising, Bonn, Münster, Tübingen e por fim em Regensburg. Com ele desaparece o último dos Pontífices pessoalmente envolvidos nos trabalhos do Concílio Vaticano ii . Como teólogo muito jovem e já estimado, Ratzinger acompanhou de perto a assembleia como perito do cardeal de Köln, Frings, que estava próximo da ala reformista. Esteve entre aqueles que criticaram fortemente os esquemas preparatórios feitos pela Cúria romana, que mais tarde foram eliminados por decisão dos bispos. Para o jovem teólogo Ratzinger, os textos «deveriam dar respostas às perguntas mais urgentes e deveriam fazê-lo, na medida do possível, sem julgar nem condenar, mas usando uma linguagem materna». Ratzinger elogia a próxima reforma litúrgica e as razões da sua inevitabilidade providencial. Diz que para redescobrir a verdadeira natureza da liturgia, era necessário «forçar o muro do latim».

Guardião da fé com Wojtyla

Mas o futuro Bento xvi foi testemunha direta também da crise pós-conciliar, da contestação nas universidades e nas faculdades de teologia. Assistiu ao debate das verdades essenciais da fé e da experimentação selvagem na esfera litúrgica. Já em 1966, um ano depois da conclusão do Concílio, disse que viu o avanço de um «cristianismo a preço reduzido».

Em 1977 Paulo vi nomeou-o arcebispo de München aos 50 anos de idade e, algumas semanas mais tarde, criou-o cardeal. João Paulo ii confiou-lhe em novembro 1981 a guia da Congregação para a doutrina da fé. Foi o início de um forte sodalício entre o Papa polaco e o teólogo bávaro, destinada a dissolver-se apenas com a morte de Wojtyla, que até ao fim recusou a renúncia de Ratzinger, não se querendo privar dele. Foram os anos em que o ex-Santo Ofício pontilhou os seus “is” em muitas matérias: travou a Teologia da Libertação, que utiliza a análise marxista, e tomou posição contra a emergência de grandes problemas éticos. A obra mais importante foi certamente o novo Catecismo da Igreja Católica, um trabalho que durou seis anos e que viu a luz em 1992.

«Humilde trabalhador
na vinha»

Depois da morte de Wojtyla, o conclave de 2005 chamou a suceder-lhe em menos de 24 horas um homem já idoso — tinha 78 anos — universalmente estimado e respeitado inclusive pelos adversários. Da varanda da basílica de São Pedro, Bento xvi apresenta-se como «um humilde trabalhador na vinha do Senhor». Alheio a qualquer protagonismo, diz que não tem «programas», mas quer «ouvir, com toda a Igreja, a palavra e a vontade do Senhor».

Auschwitz e Regensburg

Inicialmente tímido, não renuncia às viagens: também o seu será um pontificado itinerante como o do seu predecessor. Um dos momentos mais comovedores, a visita a Auschwitz em maio de 2006, e como Papa alemão disse: «Num lugar como este, faltam as palavras, tudo o que resta é um silêncio consternado — um silêncio que é um grito interior a Deus: Por que pudeste tolerar tudo isto?». 2006 foi também o ano do caso Regensburg, quando uma frase antiga sobre Maomé, que o Pontífice cita sem a tornar sua na universidade onde era professor, é instrumentalizada e desencadeia protestos no mundo islâmico. Desde então, o Papa multiplicará os sinais de atenção para com os muçulmanos. Bento xvi enfrenta viagens difíceis, confronta-se com a secularização galopante das sociedades descristianizadas e o dissenso no seio da Igreja. Celebra o seu aniversário na Casa Branca juntamente com George Bush Jr. e alguns dias depois, a 20 de abril de 2008, reza no Ground Zero abraçando os familiares das vítimas de 11 de setembro.

A encíclica
sobre o amor de Deus

Embora como prefeito do ex-Santo Ofício tenha sido frequentemente rotulado como «panzerkardinal», como Papa fala constantemente da «alegria de ser cristão», e dedica a sua primeira encíclica ao amor de Deus, Deus caritas est. «No início do ser cristão — escreve — não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa». Também encontra tempo para escrever um livro sobre Jesus de Nazaré, uma obra única que será publicada em três tomos. Entre as decisões a recordar estão o Motu proprio que liberaliza o missal romano pré-conciliar e a instituição de um Ordinariado para permitir às comunidades anglicanas o regresso à comunhão com Roma. Em janeiro de 2009, o Papa decidiu revogar a excomunhão aos quatro bispos ordenados ilicitamente por D. Marcel Lefebvre, entre eles também Richard Williamson, negacionista das câmaras de gás. Explodem as polémicas no mundo judeu, o Papa pega caneta e papel e escreve aos bispos do mundo inteiro assumindo toda a responsabilidade.

A resposta aos escândalos

Os últimos anos foram marcados pela reexplosão do escândalo da pedofilia e de Vatileaks, a fuga de documentos subtraídos da escrivaninha papal e publicados num livro. Bento xvi foi determinado e austero ao enfrentar o problema da «sujidade» dentro da Igreja. Introduziu regras muito severas contra o abuso de menores, pediu à Cúria e aos bispos para mudarem de mentalidade. Chegou ao ponto de dizer que a mais grave perseguição para a Igreja não vem dos seus inimigos externos, mas do pecado dentro dela. Outra reforma importante foi a financeira: o Papa Ratzinger introduziu regulamentos contra a reciclagem de dinheiro no Vaticano.

«Igreja livre de dinheiro
e poder»

Perante escândalos e carreirismos eclesiásticos, o idoso Papa alemão continuou a fazer apelos à conversão, à penitência e à humildade. Durante a sua última viagem à Alemanha em setembro de 2011, exortou a Igreja a ser menos mundana: «Os exemplos históricos mostram que o testemunho missionário de uma Igreja “desmundanizada” emerge mais claramente. Livre de fardos e privilégios materiais e políticos, a Igreja pode dedicar-se melhor e de modo verdadeiramente cristão ao mundo inteiro, pode estar verdadeiramente aberta ao mundo...».

Andrea Tornielli