Reflexões litúrgico-pastorais
Solenidade da Epifania do Senhor

A Estrela que orienta
a humanidade

 A Estrela que orienta a humanidade  POR-001
05 janeiro 2023

«Eu o vejo, mas não agora,/ eu o contemplo, mas não de perto:/ uma estrela desponta (anateleî) de Jacob,/ um cetro se levanta de Israel» (Números 24, 17). Assim fala, com uns olhos muito claros postos no futuro, um profeta de nome Balaão, que o Livro dos Números diz ser oriundo das margens do rio Eufrates (Números 22, 5), uma vasta região conhecida pelo nome de «montes do Oriente» (Números 23, 7).

2. Do Oriente são também os Magos (mágoi), que enchem o Evangelho deste Dia (Mateus 2, 1-12), e que representam a humanidade de coração puro e de olhar puro que, agora e de perto, sabe ler os sinais de Deus, sejam eles a estrela que desponta (anateleî) (2, 2 e 9) ou o sonho revelador (2, 12), a estrela e o sonho indicadores de caminhos novos, belos, insuspeitados. Surpresa das surpresas: até para casa precisamos de aprender o caminho, pois é, na verdade, um caminho novo! (2, 12). Excelente, inteligente, o grande texto bíblico: Balaão vem do Oriente, e os Magos também. O texto grego do Livro dos Números e de Mateus diz bem, no plural, «dos Orientes» (ap’anatolôn) (Números 23, 7; Mateus 2,1). Só a estrela que desponta (anatolê / anatoleî), no singular (2, 2 e 9), pode orientar a nossa humanidade perdida no meio da confusão do plural.

3. De resto, já sabemos que, na Escritura Santa, a Luz nova que no céu desponta (Lucas 1, 78; 2, 2 e 9; cf. Números 24,17; Isaías 60, 1-2; Malaquias 3, 20) e o Rebento tenro que entre nós germina (Jeremias 23, 5; 33, 15; Zacarias 3, 8; 6,12) apontam e são figura do messias e dizem-se com o mesmo nome grego anatolê (tsemah tm ) ou forma verbal anatéllô. Esta estrela (anatolê) que arde nos olhos e no coração dos Magos está, portanto, longe de ser uma história infantil. Orienta os passos dos Magos e, neles, os de toda humanidade para a verdadeira estrela que desponta e ilumina e para o rebento que germina, que é o menino . E os Magos e, com eles, a inteira humanidade orientam para aquele menino toda a sua vida, que é o que significa o verbo « adorar » (proskynéô) (Mateus 2, 2.11). Esta «adoração» pessoal é o verdadeiro presente a oferecer ao menino .

4. Note-se a expressão recorrente «o Menino e sua Mãe» (Mateus 2,11.13.14.20.21) e o contraponto bem vincado com «o rei Herodes perturbado e toda a Jerusalém com ele» (Mateus 2, 3), que abre já para a rejeição final de Jesus. Veja-se também a alegria que invade os magos à vista da sua estrela, ainda antes de verem o Menino (Mateus 2,10), que evoca já a alegria das mulheres, ainda antes de verem o Senhor Ressuscitado (Mateus 28, 8). Veja-se ainda o inútil e cansado controlo das Escrituras por parte de «todos os sacerdotes e escribas do povo», que sabem tudo acerca do Messias, mas não se comprometem com ele, não dão um passo de saudação e acolhimento a direção a ele (Mateus 2, 4-6). Dá-lo-ão mais tarde. Mas aí é tarde, e é contra ele (Mateus 26,57.59).

5. Mas, para juntar aqui outra vez os fios de ouro da Escritura Santa, nomeadamente 1 Reis 10, 1-10 (Rainha de Sabá), Isaías 60 e o Salmo 72, diz o belo texto de Mateus que os Magos ofereceram ao menino ouro, incenso e mirra. Já sabemos que, desde Ireneu de Lião (130-203), mas entenda-se bem que isto é secundário, o ouro simboliza a realeza, o incenso a divindade, e a mirra a morte e o sepultamento de Jesus. Já sabemos que se trata de dons preciosos, e, porque são enumerados três, antigas representações da adoração dos Magos mostram também três figuras: um jovem, um homem de meia-idade e um velho, representando um asiático, um europeu e um africano. Claro que estas indicações não estão na letra do texto, mas estão no espírito do Evangelho, que pretende dizer a todos nós que a adoração deste Menino, reconhecido como Rei e Senhor, deve mobilizar gente de todas as idades e de todos os continentes. Afinal, a Epifania é a manifestação de Deus a todas as nações e a todos os corações.

6. Pode acrescentar-se ainda, mas também isto é claramente secundário, que muitos astrónomos, historiadores e curiosos se têm esforçado por identificar aquela estrela que despontou e guiou os Magos, apresentando como hipóteses mais viáveis: a) o cometa Halley, que se fez ver em 12-11 a. c .; b) a tríplice conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes, ocorrida em 7 a. c .; c) uma nova ou supernova, visível em 5-4 a. c . Esta última está registada nos observatórios astronómicos chineses. A conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes está registada nos observatórios da Babilónia e do Egito. Também se pode fazer destes dados uma leitura simbólica e popular que indica um nascimento real, porventura do Messias, Rei dos Judeus, dado que Júpiter é um planeta real e Saturno é a estrela do sábado, portanto, dos Judeus, e a constelação de Peixes representa o fim dos tempos. Johannes Kepler (1571-1630), que estudou este assunto em pormenor, dedica particular atenção aos fenómenos registados em b) e c). Note-se, porém, que a estrela que faz levantar os Magos e os põe em movimento é só vista por eles, estrangeiros como Balaão, que também vê de modo diferente dos outros. Rir-se-iam os Magos, certamente, se soubessem que nós indagamos a abóbada celeste com instrumentos científicos à procura da estrela que alumiava o seu coração. Talvez seja por isso que, enquanto nós nos ocupamos e distraímos com tantas luzes mais ou menos inúteis e estéreis, «muitos virão do oriente e do ocidente, isto é, de fora, e sentar-se-ão à mesa no Reino dos céus» (Mateus 8, 11). E nós, que gastámos tanto tempo e dinheiro e esfregámos os olhos a indagar as Escrituras sem lhes descortinarmos o verdadeiro fio de ouro (Mateus 2, 4-6), e sem as transpormos para a nossa vida, sem as pormos em prática, corremos o risco de ficar tragicamente fora da porta e do sentido (Mateus 8, 12). Que os de fora passem à frente dos de dentro é a surpresa de Deus, e, portanto, uma constante no Evangelho (Mateus 21, 33-43; 22, 1-13; Lucas 13, 22-29). Os de fora são os estrangeiros como Balaão, como os Magos, que vêm e veem de longe, com o olhar puro, sem esquadrias ou sistemas ou ideologias. Estrangeiros que nada possuem: nem terras nem verdades nem pessoas.

7. Está também a transbordar de sentido aquela última anotação: «Por outra estrada regressaram à sua terra» (Mateus 2, 12). Não é só para despistar Herodes. Sim, quem viu o que os Magos viram, quem viu como os Magos viram, quem encontrou o que eles encontraram, quem experimentou o que eles experimentaram, não pode mais limitar-se simplesmente a continuar seja o que for. Tudo tem mesmo de ser novo. Também os olhos e o coração. Até para casa precisamos de aprender o caminho!

D. António Couto
Bispo de Lamego