Na noite de Natal, os olhos de milhões de cristãos espalhados por todo o mundo dirigir-se-ão para um pequeno menino deitado indefeso numa manjedoura dentro de uma gruta. O Natal é a festa do nascimento, da vida, de um Deus que se fez carne, um Deus menino. É a festa da encarnação, a festa de todas as crianças. Os cristãos olham para o Menino mas sabem que o seu olhar não é primeiro mas segundo, não é uma iniciativa mas uma resposta, não uma ação mas uma retribuição, pois sabem que antes de ver, são vistos, a iniciativa é de Deus, que olhou para nós, ou seja, somos pensados, concebidos, criados, escolhidos, perdoados, numa palavra “amados”: «Nisto consiste o Seu amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou» (1 Jo 4, 10). É um olhar de fé que os cristãos realizam no Natal, adorando e orando ao Menino Jesus, e a fé é uma resposta, é um amém, um sim ao sim de Deus.
Olhos voltados para a gruta, mas também (e primeiro) olhos que se dirigem para nós, os olhos do Menino que olha para nós a partir daquela gruta.
Ainda hoje, nas muitas Beléns do mundo, as crianças olham para nós. Interrogam-nos. Belém hoje não está apenas na Palestina mas também na Ucrânia, onde as crianças, como observou o Papa Francisco, estão a perder o sorriso (que é a característica inconfundível da infância); no Mediterrâneo, onde todos os dias nascem e morrem crianças nas ondas de um mar que não é um berço mas um cemitério, mas também no Iémen, na Síria, no Irão, em Myanmar, na Nigéria, no Sudão do Sul... dezenas de lugares que são teatros de conflito, que no Ocidente tendemos a remover, onde há crianças que em vez de serem acolhidas, em vez de representarem o futuro e a esperança, mostram com a sua carne ferida ou morta todo o absurdo de um presente feito de violência, fechamento e rejeição.
Uma criança pede essencialmente para ser acolhida, e Deus também o faz no ventre de Maria. E a aceitação não é garantida. O Natal é um drama, antes de ser uma festa cheia de luzes e distrações. O Natal é a Noite Santa, mas continua a ser uma noite. Para ver a luz, a luz real e definitiva, temos de esperar pelo amanhecer do domingo de Páscoa. Agora ainda estamos na sombra da noite. Assim foi no primeiro Natal em que a luz divina atravessou as nossas trevas, e assim é hoje: um drama que nos abala e nos desafia a estar atentos com a cabeça, as mãos e o coração, a ser livres, gratos e laboriosos.
Rowan Williams, arcebispo de Canterbury de 2003 a março de 2013, apreende este poder dramático de forma sóbria e perspicaz, como só a poesia pode, nestes versos dedicados ao Advento e à sua meta final, aquela cena de Belém que todos os cristãos verão amanhã à noite, reavivando, com expectativa ansiosa e esperança confiante.
Advent Calendar
Virá como a queda da última folha.
Uma noite quando o vento de novembro
flagelou as árvores até ao osso, e a terra
acorda asfixiada pelo bolor,
do desenrolar da mortalha macia.
Virá como a geada.
Uma manhã, quando a terra entorpecida
Se abre sobre a neblina,
para se encontrar
presa na rede
de uma beleza desconhecida e afiada.
Virá como a escuridão.
Uma noite em que o sol ardente
e vermelho
de dezembro estende o lençol
e cobre o seu olhar
com uma moeda para colher
os campos de céu nevados de estrelas.
Virá, virá,
virá como pranto durante a noite
como sangue, como rutura
logo que a terra se debate para o libertar.
Ele virá como menino.
Andrea Monda