Entrevistas do Pontífice
Revelou no diálogo com o diário espanhol abc

«Assinei a minha renúncia em caso
de impedimento médico»

 «Assinei a minha renúncia  em caso de impedimento médico»  POR-051
22 dezembro 2022

Há quase dez anos, no início do seu pontificado em 2013 (era então secretário de Estado o cardeal Tarcisio Bertone), o Papa Francisco entregou uma carta de renúncia “em caso de impedimento por razões médicas”. A revelar esta decisão, que Paulo vi já havia tomado, é o próprio Papa Francisco na ampla entrevista concedida ao jornal espanhol abc , que no dia 17 de dezembro divulgou uma breve antecipação. O Papa, em conversa com o editor Julián Quirós e o correspondente no Vaticano, Javier Martínez-Brocal, aborda numerosas temáticas sobre os acontecimentos atuais na Igreja e no mundo. Estes incluem a guerra na Ucrânia, da qual o Pontífice diz não ver “um fim a curto prazo porque é uma guerra mundial”, depois os casos de abusos, o papel das mulheres na Cúria Romana, Lula e Catalunha, a renúncia de Bento xvi em 2013 e a sua eventual renúncia.

Sobre este assunto, o Papa revela a existência desta carta. “Eu já assinei a minha renúncia. Foi quando Tarcisio Bertone era secretário de Estado. Assinei a renúncia e disse-lhe: “em caso de impedimento médico ou o que quer que seja, aqui está a minha renúncia. Não sei a quem Bertone a entregou, isto aconteceu quando ele era o secretário de Estado”. “O senhor quer que isto seja conhecido?” perguntam os dois entrevistadores. “É por isso que vos estou a dizer”, responde Francisco, lembrando que Paulo vi também deixou a sua renúncia por escrito no caso de um impedimento e que provavelmente Pio xii também o tenha feito. “Esta é a primeira vez que digo isto”, acrescenta o Pontífice. “Agora talvez alguém pergunte a Bertone: ‘Dê-me essa carta’... (Risos). Certamente ele deve tê-la entregado ao novo secretário de Estado”.

Naturalmente, na entrevista não falta uma reflexão sobre o conflito em curso na Ucrânia, contra o qual o Papa já se pronunciou mais de cem vezes. Também na entrevista ao jornal abc ele afirma sem meios termos: “o que está a acontecer na Ucrânia é terrificante. Há uma enorme crueldade. É muito sério...”. Para Francisco não se vê “um fim a curto prazo”. “Trata-se”, diz ele, “de uma guerra mundial. Não nos esqueçamos disto. Já há várias mãos envolvidas na guerra. É global. Penso que uma guerra é travada quando um império começa a enfraquecer, e quando há armas para usar, vender e testar. Parece-me que há muitos interesses envolvidos”. “Eu faço o que posso. Eles não ouvem”, responde. O Papa confirma que recebe e escuta a todos: “agora Volodymyr Zelensky enviou-me um de seus conselheiros religiosos pela terceira vez. Eu estou em contacto, eu recebo, eu ajudo...”.

O trabalho do Papa move-se em sintonia com o trabalho diplomático da Santa Sé. A este respeito, os entrevistadores perguntam por que o Vaticano é tão cauteloso ao falar contra regimes totalitários como o de Ortega na Nicarágua ou o de Maduro na Venezuela. “A Santa Sé procura sempre salvar os povos. A sua arma é o diálogo, a diplomacia”, responde o Papa Francisco. “A Santa Sé nunca sai por conta própria. É expulsa. Ela procura salvar sempre as relações diplomáticas e salvar o que pode ser salvo com paciência e diálogo”.

Nenhuma diplomacia, porém, por parte do Papa para estigmatizar casos de abusos do clero: “é muito doloroso, muito doloroso”, diz ele em referência aos encontros com as vítimas que pontilharam o seu pontificado. “Estas são pessoas que foram destruídas por aqueles que deveriam tê-las ajudado a amadurecer e crescer. Isto é muito difícil. Mesmo que fosse apenas um caso, é monstruoso que a pessoa que deveria guiá-la para Deus a destrua ao longo do caminho. E nenhuma negociação é possível sobre isso”.

O foco da entrevista com o jornal abc muda para temas de natureza mais “eclesial”, começando com um possível papel de ápice para uma mulher na Cúria Romana. “Haverá”, assegura Francisco. “Tenho em mente uma para um Dicastério que ficará vago dentro de dois anos. Não há obstáculo para uma mulher liderar um Dicastério onde um leigo possa ser prefeito”. “Se for um Dicastério de natureza sacramental, deve ser presidido por um sacerdote ou um bispo”, esclarece o Papa.

Ele então amortece as polémicas de que os trabalhos dos futuros Conclaves poderiam ser dificultados pela falta de conhecimento entre os cardeais que ele criou, que vêm todos de lugares diferentes e distantes. É verdade, poderia haver problemas “do ponto de vista humano”, mas “é o Espírito Santo que trabalha no Conclave”, explica o Papa. E recorda a proposta de um cardeal alemão nos encontros de agosto sobre a Praedicate Evangelium “que na eleição do novo Papa só participem os cardeais que vivem em Roma”. “É esta a universalidade da Igreja?”, pergunta o bispo de Roma.

E retoma o tema da sua relação com o seu predecessor Bento xvi , “um santo” e “um homem de elevada vida espiritual”, como o Papa reinante o descreve, revelando que o visita com frequência e que se sente sempre “edificado” pelo seu olhar transparente. “Ele tem um bom sentido de humor, está lúcido, muito vivo, fala suavemente, mas segue a conversa. Admiro a sua lucidez. Ele é um grande homem”. O Papa Francisco, por outro lado, diz não ter intenção de definir o status jurídico do Papa emérito: “tenho a sensação de que o Espírito Santo não tem interesse em que eu me ocupe dessas coisas”.

Sobre a Igreja na Alemanha, lidando com o processo sinodal que tinha despertado e ainda desperta várias reações, inclusive negativas, Francisco recorda a carta “muito clara” que escreveu em junho de 2019: “Escrevi-a sozinho. Levei um mês. Era uma carta como que para dizer: “Irmãos, reflitam sobre isto”.

En passant o Papa Bergoglio explica na entrevista que uma viagem a Marselha para o Encontro Mediterrâneo está nos planos, especificando que não é, no entanto, uma viagem à França e que a prioridade das suas viagens apostólicas é visitar os países menores da Europa. À pergunra sobre a questão da Catalunha, o Papa respondeu que “cada país deve encontrar o próprio caminho histórico para resolver estes problemas. Não há uma solução única”. E então cita o caso da Macedónia do Norte ou do Alto Adige, na Itália, com o próprio status. Quanto ao papel que a Igreja deve manter neste assunto, enfatiza: “o que a Igreja não deve é fazer propaganda para um ou outro lado, mas sim acompanhar o povo para que ele possa encontrar uma solução definitiva”. Na mesma linha, o Papa reitera: “quando um sacerdote se intromete na política, não é bom... O sacerdote é um pastor. Ele deve ajudar as pessoas a fazerem boas escolhas. Acompanhá-las. Mas não ser um político. Se quiser fazer política, tem que deixar o sacerdócio e tornar-se um político”.

A uma pergunta sobre a releitura negativa do descobrimento da América, Francisco convida a interpretar um acontecimento histórico com a hermenêutica do tempo e não do momento atual. “É óbvio que pessoas foram mortas”, diz ele, “é óbvio que houve exploração, mas os índios também se mataram uns aos outros”. “A atmosfera de guerra não foi exportada pelos espanhóis. E a conquista pertencia a todos. Faço a distinção entre colonização e conquista. Eu não gosto de dizer que a Espanha simplesmente ‘conquistou’. É discutível, quanto quiserem, mas colonizou”. 

Outro caso “paradigmático” que chamou a atenção do Papa é o do recém-eleito presidente do Brasil, Inácio Lula. Paradigmático porque o julgamento do líder político — condenado por corrupção passiva, durante 580 dias na prisão, impedido de concorrer nas eleições presidenciais de 2018, até 2021, quando o Supremo Tribunal Federal anulou todas as sentenças — começou com “fake news”. Estas, diz o Papa, “criaram uma atmosfera que favoreceram o seu julgamento... O problema das notícias falsas sobre líderes políticos e sociais é muito sério. Elas podem destruir uma pessoa”. No caso específico de Lula, segundo o Papa Francisco, não foi “um julgamento à altura”. “Cuidado”, adverte, “com aqueles que criam a atmosfera para um julgamento, seja ele qual for. Eles fazem isso através da mídia de forma a influenciar aqueles que devem julgar e decidir. Um julgamento deve ser o mais limpo possível, com tribunais de primeira classe que não tenham outro interesse a não ser manter limpa a justiça”.

Por fim, uma menção ao Motu Proprio Ad Charisma tuendum do mês de julho passado sobre o Opus Dei. “Alguns”, comenta o Papa Francisco, “disseram: ‘Finalmente o Papa bateu no Opus Dei’...! Eu não bati em ninguém. E outros, em vez disso, disseram: Ah, o Papa está a invadir-nos! Nada disso. A medida é uma recolocação que teve que ser resolvida. Não é correto exagerar, nem fazer deles vítimas, nem culpá-los por terem recebido uma punição. Por favor. Sou um grande amigo do Opus Dei, amo muito o povo do Opus Dei e eles trabalham bem na Igreja. O bem que eles fazem é muito grande”.

Salvatore Cernuzio