Nove meses desde o início do conflito na Ucrânia

Uma ferida que nos diz respeito como cristãos

17 novembro 2022

Aproximamo-nos do nono mês desde o início da horrível guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia. Nove meses é o tempo no qual uma vida humana ganha forma no ventre materno para depois vir à luz, mas aquela na Ucrânia não foi uma gestação de vida, mas apenas de morte, de ódio, de devastação. Há um aspeto desta guerra que nem sempre recordamos: trata-se de um conflito que envolve dois povos pertencentes à mesma fé em Cristo e ao mesmo batismo. O cristianismo naquela área geográfica está associado ao batismo da Rus’, completado em 988 quando Vladimir, o Grande, quis que a sua família e a população de Kyiv recebessem o sacramento nas águas do Dniepre.

Os cristãos russos e ucranianos partilham a mesma divina liturgia e espiritualidade própria das Igrejas orientais. Hoje, há uma tendência a esconder esta pertença comum de fé e tradição litúrgica por razões relacionadas com a propaganda bélica: quando se combate, quando se mata, é preciso esquecer o rosto e a humanidade do outro, como recordou o profeta da paz padre Tonino Bello. E deves esquecer até que o outro tem o teu mesmo batismo. O facto de que aquela que se desencadeou no coração da Europa seja uma guerra entre cristãos torna a ferida ainda mais dolorosa para os seguidores de Jesus.

Isto não é um conflito a ser classificado no esquema conveniente do “choque de civilizações”, teoria que se tornou famosa após os ataques islamistas de 11 de setembro de 2001 para marcar as diferenças entre “nós” e “eles”. Não, aqui os agressores leram o mesmo evangelho dos agredidos. A consternação provocada por esta observação poderia levar-nos a refletir sobre até onde a mensagem do Evangelho ainda tem de ir para entrar no coração dos cristãos e permear a sua cultura, de modo a encarnar o exemplo de Jesus que no Getsémani ordenou a Pedro que voltasse a colocar a espada na bainha. Pode induzir-nos a subir ao púlpito julgador e tranquilizador daqueles que desejam marcar a diferença entre o “nosso” cristianismo e o dos belicistas que misturam ícones sagrados com bandeiras de soldados, justificando agressão e violência com discursos religiosos, como fizemos até anteontem e como alguns desejariam fazer hoje.

Mas esta atitude seria apenas uma via de fuga conveniente para nós, uma forma de autoabsolvição para não manter aberta a ferida gerada por esta guerra.

Pelo contrário, o conflito em curso na Ucrânia ensina-nos que pertencer a uma tradição comum, recordando uma identidade e uma cultura originárias da mesma proclamação evangélica, não é suficiente para nos preservar da barbárie da violência, do ódio e da guerra assassina.

Por conseguinte, manter a ferida aberta significa lembrar todos os dias que a nossa fé e as nossas tradições religiosas nunca podem ser consideradas como garantidas e certas. Significa lembrar que só podemos agir como cristãos pela graça, não pela tradição ou cultura. Significa recordar as palavras de Jesus: «Sem mim nada podeis fazer», para voltar a ser humildes mendigos d’Ele, vivo e presente hoje, e da sua paz.

Andrea Tornielli