Discurso do Pontífice em Awali por ocasião do “Bahrain Forum for dialogue: East and West for human coexistence”

Pôr fim ao conflito na Ucrânia e iniciar negociações sérias de paz

 Pôr fim ao conflito na Ucrânia  e iniciar negociações sérias de paz   POR-045
10 novembro 2022

O momento central da manhã de sexta-feira, 4 de novembro, segundo dia da viagem do Papa Francisco no país do Golfo, foi o encerramento do “Bahrain Forum for dialogue: East and West for human coexistence”. O Pontífice participou na cerimónia, que teve lugar na praça Al-Fida, no complexo do Palácio real Sakhir, em Awali, proferindo o discurso que publicamos em seguida.

Majestade
Altezas Reais
Caro Irmão, Doutor
Al-Tayyeb, Grão-Imã
de Al-Azhar
Caro Irmão Bartolomeu
Patriarca Ecuménico
Distintas Autoridades
religiosas e civis
Senhoras e Senhores!

S

aúdo-vos cordialmente, grato pelo acolhimento recebido e pela realização deste Fórum de diálogo organizado sob o patrocínio de Sua Majestade o Rei do Bahrein. O nome deste país deriva das suas águas: de facto, a palavra “Bahrein” evoca “dois mares”. Pensemos nas águas do mar que põem em contacto as terras, e em comunicação as pessoas, ligando povos distantes. «O que a terra divide, o mar une»: afirma um dito antigo. E o nosso planeta Terra, visto do alto, apresenta-se como um vasto mar azul, que liga margens distintas. Do céu, parece recordar-nos que somos uma família: não ilhas, mas um único grande arquipélago. É assim que o Altíssimo nos quer, e bem pode simbolizar o seu anseio este país, um arquipélago de mais de trinta ilhas.

Contudo vivemos tempos em que uma humanidade, interligada como nunca, se apresenta bem mais dividida do que unida. E o nome do “Bahrein” pode ajudar-nos a ir mais longe na nossa reflexão: os «dois mares», que evoca, referem-se às águas doces das suas nascentes submarinas e às águas salobras do Golfo. De modo semelhante, encontramo-nos hoje perante dois mares de sabor oposto: por um lado, o mar calmo e doce da convivência comum, por outro, o mar amargo da indiferença, afligido por confrontos e agitado por ventos de guerra, com as suas devastadoras ondas sempre mais tumultuosas, com o risco de nos arrastar a todos. Infelizmente, Oriente e Ocidente assemelham-se cada vez mais a dois mares contrapostos. Entretanto nós estamos aqui juntos, porque pretendemos navegar no mesmo mar, escolhendo a rota do encontro em vez da do confronto, o caminho do diálogo indicado por este Fórum: «Oriente e Ocidente em prol da coexistência humana».

Após duas guerras mundiais tremendas, depois de uma guerra fria que manteve o mundo em suspense durante dezenas de anos, encontramo-nos ainda num equilíbrio frágil a balouçar sobre o precipício feito de tantos conflitos desastrosos por toda a parte do globo, entre rumores de acusação, ameaças e condenações, e não queremos afundar. Impressiona este paradoxo: enquanto a maior parte da população mundial se encontra unida pelas mesmas dificuldades, atormentada por graves crises alimentares, ecológicas e pandémicas, bem como por uma injustiça planetária cada vez mais escandalosa, uns poucos poderosos concentram-se decididamente numa luta por interesses de parte, desenterrando linguagens obsoletas, redesenhando áreas de influência e blocos contrapostos. Tem-se a impressão de assistir a uma cena dramaticamente infantil: no jardim da humanidade, em vez de cuidar do todo, brincamos com o fogo, com mísseis e bombas, com armas que provocam pranto e morte, cobrindo a casa comum de cinzas e de ódio.

E veremos multiplicar-se estas amargas consequências, se continuarmos a acentuar as oposições sem redescobrir a compreensão, se persistirmos na decidida imposição dos próprios modelos e visões despóticas, imperialistas, nacionalistas e populistas, se não nos interessarmos com a cultura do outro, se não prestarmos ouvidos ao clamor da gente comum e à voz dos pobres, se não deixarmos de distinguir de forma maniqueísta quem é bom e quem é mau, se não nos esforçarmos por compreender e colaborar para o bem de todos. Estas opções estão diante de nós, porque, num mundo globalizado, só se avança remando juntos; ao passo que, navegando sozinho, vai-se à deriva.

No mar borrascoso dos conflitos, tenhamos diante dos olhos o Documento sobre a Fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum, onde se almeja um encontro fecundo entre Ocidente e Oriente, útil para sarar as respetivas doenças.1 Encontramo-nos aqui, crentes em Deus e nos irmãos, para rejeitar «o pensamento isolante», aquele modo de ver a realidade que ignora o mar único da humanidade para se concentrar apenas nas suas próprias correntes. Desejamos que os litígios entre Oriente e Ocidente se resolvam para bem de todos, sem desviar a atenção de um outro desnível, em constante e dramático crescimento, que é o desnível entre Norte e Sul do mundo. Que os conflitos emergentes não façam perder de vista as tragédias latentes da humanidade, como a catástrofe das desigualdades na qual a maioria das pessoas que povoam a Terra experimenta uma injustiça sem precedentes, a vergonhosa chaga da fome e a calamidade das alterações climáticas, sinal da falta de cuidado para com a casa comum.

Sobre tais temas debatidos nestes dias, não podem deixar de se comprometer e dar bom exemplo os líderes religiosos. Temos um papel específico e este Fórum proporciona-nos mais uma oportunidade nesse sentido. É nossa tarefa encorajar e ajudar a humanidade, tão interdependente como desconexa, a navegar em conjunto. Assim queria delinear três desafios, que sobressaem do Documento sobre a Fraternidade humana e da Declaração do Reino do Bahrein, e sobre os quais se refletiu nestes dias. Dizem respeito à oração, à educação e à ação.

Em primeiro lugar, a oração, que toca o coração do homem. Na realidade, os dramas que sofremos e as perigosas dilacerações que experimentamos, «os desequilíbrios de que sofre o mundo atual estão ligados com aquele desequilíbrio fundamental que se radica no coração do homem» ( Conc. Ecum. Vat. ii , Const. past. Gaudium et spes, 10). Aqui está a raiz. Consequentemente, o perigo maior não reside nas coisas, nas realidades materiais, nas organizações, mas na inclinação do ser humano para se fechar na imanência do próprio eu, do seu grupo, dos seus interesses mesquinhos. Não é um defeito do nosso tempo; existe desde que o homem é homem mas, com a ajuda de Deus, é possível pôr-lhe remédio (cf. Carta enc. Fratelli tutti, 166).

Por isso mesmo a oração, a abertura do coração ao Altíssimo, é fundamental para nos purificar do egoísmo, do isolamento, da autorreferencialidade, das falsidades e da injustiça. Quem reza, recebe no coração a paz, não podendo deixar de se fazer sua testemunha e mensageiro, convidando os seus semelhantes — primariamente através do exemplo — para não se tornarem reféns de um paganismo que reduz o ser humano àquilo que vende, compra ou com que se diverte, mas redescobrirem a dignidade infinita que cada um traz impressa. O homem religioso, o homem de paz é aquele que, ao caminhar na terra com os outros, os convida, com doçura e respeito, a levantarem o olhar para o Céu. E recorda na sua oração, como incenso que sobe ao Altíssimo (cf. Sl 141, 2), as canseiras e dificuldades de todos.

Mas, para que isso possa acontecer, há uma premissa indispensável: a liberdade religiosa. A Declaração do Reino do Bahrein explica que «Deus nos orientou para o dom divino da liberdade de opção» e, por conseguinte, «qualquer forma de coerção religiosa não pode levar a pessoa a uma relação significativa com Deus». Ou seja, toda a coerção é indigna do Omnipotente, pois Ele não entregou o mundo a escravos, mas a criaturas livres, a quem respeita profundamente. Então empenhemo-nos por que a liberdade das criaturas espelhe a liberdade soberana do Criador, para que os lugares de culto sejam protegidos e respeitados, sempre e em toda a parte, e a oração nunca seja obstaculizada, mas favorecida. Entretanto não basta conceder autorizações e reconhecer a liberdade de culto; é preciso alcançar a verdadeira liberdade de religião. E não só cada sociedade, mas também cada credo é chamado a examinar-se sobre isto. São chamados a interrogar-se se constringem as criaturas de Deus de fora ou as libertam dentro; se ajudam o homem a rejeitar a rigidez, o isolamento e a violência; se aumentam nos crentes a verdadeira liberdade, que não é fazer o que me apetece e vem à cabeça, mas predispor-se ao bem para o qual fomos criados.

Se o desafio da oração tem a ver com o coração, o segundo desafio — a educação — diz respeito essencialmente à mente do homem. A Declaração do Reino do Bahrein afirma que «a ignorância é inimiga da paz». É verdade que, onde faltam oportunidades de instrução, aumentam os extremismos e radicam-se os fundamentalismos. E, se a ignorância é inimiga da paz, a educação é amiga do progresso, desde que seja uma educação verdadeiramente digna do homem, ser dinâmico e relacional: por conseguinte não é rígida nem monolítica, mas aberta aos desafios e sensível às mudanças culturais; não é autorreferencial nem isoladora, mas atenta à história e à cultura alheia; não é estática, mas indagadora, para abraçar aspetos diversos e essenciais da única humanidade a que pertencemos. Isto permite, de modo particular, entrar no cerne dos problemas sem se presumir ter a solução e resolver de forma simplicista problemas complexos, mas com a predisposição a viver a crise sem ceder à lógica do conflito. Enquanto a lógica do conflito sempre nos leva à destruição, a crise ajuda-nos a pensar e amadurecer. De facto, é indigno da mente humana crer que as razões da força prevalecem sobre a força da razão, usar métodos do passado para as questões presentes, aplicar os esquemas da técnica e da conveniência à história e à cultura do homem. Isto requer questionar-se, entrar em crise e saber dialogar com paciência, respeito e espírito de escuta; aprender a história e a cultura alheia. Assim se educa a mente do homem, alimentando a compreensão recíproca. Porque não basta dizer que somos tolerantes, é preciso abrir verdadeiramente espaço ao outro, dar-lhe direitos e oportunidades. É uma mentalidade que começa com a educação e que as religiões são chamadas a apoiar.

Concretamente, quero destacar três urgências educativas. Em primeiro lugar, o reconhecimento da mulher na esfera pública: reconhecer o seu direito «à instrução, ao trabalho, ao exercício dos seus direitos políticos» (Documento sobre a Fraternidade humana). Nisto, como noutras áreas, a educação é o caminho para se emancipar de resquícios históricos e sociais contrários àquele espírito de solidariedade fraterna que deve caraterizar quem adora a Deus e ama o próximo.

Em segundo lugar, «a tutela dos direitos fundamentais das crianças» (Ibidem), para que cresçam instruídas, assistidas, acompanhadas, não condenadas a viver nos mordimentos da fome e nos remordimentos da violência. Eduquemos — e eduquemo-nos — para olhar as crises, os problemas, as guerras com os olhos das crianças: não é ingénua bonacheirice, mas sabedoria clarividente, porque só pensando nelas é que o progresso se espelhará, não no lucro, mas na inocência e contribuirá para construir um futuro à medida do homem.

A educação, que tem início no seio da família, continua no contexto da comunidade, da aldeia ou da cidade. Por isso tenho a peito sublinhar, em terceiro lugar, a educação para a cidadania, para viver juntos, no respeito e na legalidade. E, em particular, a importância do «conceito de cidadania», que «se baseia na igualdade dos direitos e dos deveres». É preciso empenhar-se nisto, para que se possa «estabelecer nas nossas sociedades o conceito da cidadania plena e renunciar ao uso discriminatório do termo minorias, que traz consigo as sementes do isolamento e da inferioridade, prepara o terreno para as hostilidades e a discórdia e retira as conquistas e os direitos religiosos e civis de alguns cidadãos, discriminando-os» (Ibidem).

E chegamos, assim, ao último dos três desafios: aquele que diz respeito à ação, poder-se-ia dizer às forças do homem. A Declaração do Reino do Bahrein ensina que, «quando se prega ódio, violência e discórdia, profana-se o nome de Deus». Quem é religioso recusa-se a fazê-lo, sem precisar de qualquer justificação. Com vigor, diz «não» à blasfémia da guerra e ao uso da violência. E estes «nãos», tradu-los coerentemente na prática. Com efeito não basta dizer que uma religião é pacífica, é preciso condenar e isolar os violentos que abusam do seu nome. E não basta sequer distanciar-se da intolerância e do extremismo, é preciso agir em sentido contrário. «Por isso, é necessário interromper o apoio aos movimentos terroristas através do fornecimento de dinheiro, de armas, de planos ou justificações e também da cobertura mediática, e considerar tudo isto como crimes internacionais que ameaçam a segurança e a paz mundial. É preciso condenar tal terrorismo em todas as suas formas e manifestações» (Documento sobre a Fraternidade humana), incluindo o terrorismo ideológico.

O homem religioso, o homem de paz, opõe-se também à corrida ao rearmamento, aos negócios da guerra, ao mercado da morte. Não sustenta «alianças contra ninguém», mas caminhos de encontro com todos: sem ceder a relativismos ou sincretismos de qualquer espécie, segue apenas uma estrada, a da fraternidade, do diálogo, da paz. Estes são os seus «sins». Percorramos, queridos amigos, este caminho: alarguemos o coração ao irmão, avancemos no percurso de conhecimento recíproco. Estreitemos entre nós laços mais fortes, sem duplicidade nem medo, em nome do Criador que nos colocou juntos no mundo como guardiões dos irmãos e das irmãs. E, se vários poderosos negoceiam entre si por interesses, dinheiro e estratégias de poder, demonstremos que é possível outro caminho de encontro; possível e necessário, porque a força, as armas e o dinheiro nunca colorirão de paz o futuro. Portanto encontremo-nos para o bem do homem e em nome d’Aquele que ama o homem, cujo Nome é Paz. Promovamos iniciativas concretas, para que o caminho das grandes religiões seja cada vez mais concreto e constante, seja consciência de paz para o mundo! E aqui dirijo a todos o meu veemente apelo a fim de que se ponha fim à guerra na Ucrânia e se dê início a sérias negociações de paz.

O Criador convida-nos a agir, especialmente a favor de tantas criaturas d’Ele que ainda não encontram espaço suficiente nas agendas dos poderosos: pobres, nascituros, idosos, doentes, migrantes... Se nós, que acreditamos no Deus da misericórdia, não prestamos ouvidos aos miseráveis e não damos voz àqueles que a não tèm, quem o fará? Estejamos do seu lado, esforcemo-nos por socorrer o homem ferido e provado! Assim fazendo, atrairemos sobre o mundo a bênção do Altíssimo. Que Ele ilumine os nossos passos e una os nossos corações, as nossas mentes e as nossas forças (cf. Mc 12, 30), para que, à adoração de Deus, corresponda o amor concreto e fraterno do próximo; para sermos, juntos, profetas da convivência, artesãos de unidade, construtores de paz. Obrigado!

1«O Ocidente poderia encontrar na civilização do Oriente remédios para algumas das suas doenças espirituais e religiosas causadas pelo domínio do materialismo. E o Oriente poderia encontrar na civilização do Ocidente tantos elementos que o podem ajudar a salvar-se da fragilidade, da divisão, do conflito e do declínio científico, técnico e cultural. É importante prestar atenção às diferenças religiosas, culturais e históricas que são uma componente essencial na formação da personalidade, da cultura e da civilização oriental; e é importante consolidar os direitos humanos gerais e comuns, para ajudar a garantir uma vida digna para todos os homens no Oriente e no Ocidente» ( Sua Santidade Papa Francisco e o Grão-imã de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a Fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum, 4 de fevereiro de 2019).