Reflexões litúrgico-pastorais Para o domingo xxxiii do tempo comum

Perseverar na fé

 Perseverar na fé  POR-045
10 novembro 2022

Auma semana de concluir os domingos do ano litúrgico, as leituras de hoje apresentam uma mensagem de sabor apocalítico. A linguagem apocalítica caracteriza-se pela sua simbologia muito própria, que aponta para o advento de uma nova era, onde Deus manifestará o Seu poder, procederá a uma ação de purificação do mundo, muitas vezes pela destruição, e revelará plenamente o sentido último da história. É esse momento que será chamado, conforme as palavras de Malaquias (e do livro do Apocalipse), o «dia do Senhor». Apesar de parecer um dia aterrador, pela dureza das imagens apresentadas, para o crente será um dia glorioso, o momento de uma salvação esperada e preparada. O momento presente é o lugar e o tempo por excelência que Deus nos dá não só para salvarmos as nossas almas, como diz Jesus, mas para acolher os dons salvíficos: Deus não é só futuro, é sobretudo «agora».

As primeiras comunidades cristãs julgavam que a segunda vinda de Cristo estava iminente. Os Atos dos Apóstolos definem essas comunidades numa matriz idealista, quase perfeita, que se preparava de uma forma conveniente para o juízo definitivo de Deus sobre a humanidade. As primeiras cartas de Paulo e alguns evangelhos, sobretudo os sinóticos, manifestam esta certeza da vinda do Senhor, muitas vezes para fortalecer na fé e alimentar na esperança os cristãos perseguidos. Será o atraso da Parusia que irá fazer deslocar algumas das prioridades da Igreja e da sua pregação, como se constata de maneira mais evidente na literatura joanina.

Lucas aplica ainda, neste evangelho, alguma dessa linguagem apocalítica, mas situando-a nas antípodas da morte de Jesus, reconhece na Páscoa do Senhor a plenitude da revelação, o «aqui e agora» da salvação. Jesus privilegia o presente e a opção radical pela Sua pessoa. Apela a que não nos deixemos enganar por falsas ilusões e doutrinas. E de facto, esta mensagem mantém hoje uma atualidade extraordinária: em tempos de crise, sempre surgem movimentos religiosos de cariz apocalítico a prometer uma “falsa” esperança e salvação, de forma fácil e imediata, a quem aderir a tal ideologia. A esses, Jesus é pragmático: «Não os sigais». O cristianismo não engana ninguém: não promete facilidade, mas felicidade; não apresenta soluções fáceis, mas caminhos de esperança; não resolve problemas, mas instrumentos para os superar; não se apoia numa ilusão, mas numa promessa. A Igreja não é uma espécie de farmácia onde se compram os remédios, sem prescrição médica, para aligeirar dores, combater sintomas e curar doenças. Poderá ser isso, mas não sem caminho árduo, perseverança e paciência. Jesus diz que essa felicidade está ao nosso alcance, mas há que passar pelo crivo da provação. Lucas animava assim as comunidades que se viam a braços com incompreensões e perseguições, tal como ainda hoje persistem em tantos pontos do globo: «pela vossa perseverança salvareis as vossas almas». Jesus refere que os momentos de tribulação e as adversidades da vida servem de ocasião para dar testemunho. E é verdade. Um cristianismo demasiado light, relaxado no seu status, sem o sabor do testemunho fiel e audaz não move multidões. Um cristianismo vivo é aquele que não desarma diante das dificuldades, que faz das fraquezas forças, que transforma o sangue de mártires em semente de cristãos, que faz da adversidade uma possibilidade de conversão e de vida. Se assim for, o cristão torna-se, ele próprio, um “apocalítico”, isto é, um revelador de Deus e do sentido último da vida, que vive na terra com os olhos postos na eternidade, que tem a perfeita consciência de que na transitoriedade da vida só Deus permanece. Por isso, combatemos o bom combate da fé, perseveramos na salvação, não vacilamos no testemunho, não tememos as possíveis incapacidades pessoais. Para que tal aconteça, importa, como diz S. Paulo, fugir da ociosidade, da passividade de quem não se esforça, e que se ocupa em futilidades. Deus quer-nos prontos; preparemo-nos.

*Docente de Sagrada Escritura
na Faculdade de Teologia
da Universidade católica portuguesa

David Palatino *