Aos membros do Muslim Council of Elders

O diálogo é o oxigénio

 O diálogo é o oxigénio  POR-045
10 novembro 2022

Os membros do Muslim Council of Elders deram as boas-vindas ao Papa Francisco na tarde de 4 de novembro, na mesquita situada no complexo do Palácio real do Bahrein, em Awali. Durante o encontro, o Pontífice proferiu o seguinte discurso.

Caro irmão
Doutor Ahmad Al-Tayyeb
Grão-Imã de Al-Azhar
Caros Membros do Conselho Muçulmano de Anciãos
Caros amigos
As-salamu alaikum!

Saúdo-vos cordialmente, almejando que a paz do Altíssimo desça sobre cada um de vós: sobre vós, que pretendeis promover a reconciliação para evitar divisões e conflitos nas comunidades muçulmanas; sobre vós, que vedes no extremismo um perigo que corrói a verdadeira religião; sobre vós, que vos empenhais por dissipar interpretações erróneas que, através da violência, desvirtuam, instrumentalizam e danificam um credo religioso. A paz desça e permaneça sobre vós, que a desejais difundir incutindo nos corações os valores do respeito, da tolerância e da moderação; sobre vós, que vos propondes encorajar relações amistosas, respeito mútuo e confiança recíproca com aqueles que, como eu, aderem a uma fé religiosa diferente; sobre vós, irmãos e irmãs, que quereis promover nos jovens uma educação moral e intelectual que contraste toda a forma de ódio e intolerância. As-salamu alaikum [a paz esteja convosco]!

Deus é Fonte de paz. Que Ele nos conceda ser, por todo o lado, canais da sua paz! Quero, diante de vós, reiterar que o Deus da paz nunca conduz à guerra, nunca incita ao ódio, nunca apoia a violência. E nós, que cremos n’Ele, somos chamados a promover a paz através de instrumentos de paz, como o encontro, pacientes negociações e o diálogo, que é o oxigénio da convivência comum. Entre os objetivos que vos propondes, conta-se o de difundir uma cultura da paz baseada na justiça. Quero dizer-vos que este é o caminho, aliás o único caminho, já que a paz é «“obra da justiça” ( Conc. Ecum. Vat. ii, Const. past. Gaudium et spes, 78). Brota da fraternidade, cresce através da luta contra a injustiça e as desigualdades, constrói-se estendendo a mão aos outros» ( Discurso por ocasião da Leitura da Declaração final e Encerramento do « vii Congresso de Líderes de Religiões Mundiais e Tradicionais», Nur-Sultan, 15 de setembro de 2022). A paz não pode ser apenas proclamada, deve ser enraizada. E isto é possível removendo as desigualdades e as discriminações, que geram instabilidade e hostilidade.

Agradeço o vosso empenho neste sentido, bem como o acolhimento que me reservastes e as palavras que proferistes. Venho ter convosco como crente em Deus, como irmão e peregrino de paz. Venho ter convosco para caminharmos juntos, no espírito de Francisco de Assis, que costumava dizer: «a paz que proclamais com a boca, haveis de a ter ainda mais abundante nos vossos corações» (Legenda dos três companheiros, xiv, 5: Fontes Franciscanas, 1469). Impressionou-me ver o costume de acolher um hóspede, nestas terras, não só com um aperto de mão, mas levando também a outra mão ao coração em sinal de afeto; como se dissesse: a tua pessoa não fica longe de mim; entra no meu coração, na minha vida. Com respeitoso afeto, também eu levo a mão ao coração, vendo cada um de vós e bendizendo ao Altíssimo pela possibilidade de nos encontrarmos.

Creio que precisamos cada vez mais de nos encontrar, conhecer e estimar, de antepor a realidade às ideias e as pessoas às opiniões, a abertura ao Céu aos distanciamentos na terra: antepor um futuro de fraternidade ao passado de hostilidade, superando os preconceitos e as incompreensões da história em nome d’Aquele que é Fonte de Paz. Aliás como poderão os fiéis de diferentes religiões e culturas conviver, acolher-se e estimar-se mutuamente, se nós permanecemos estranhos uns aos outros? Deixemo-nos guiar por este dito do Imã Ali — «as pessoas são de dois tipos: ou teus irmãos na fé ou teus semelhantes na humanidade» — e sintamo-nos chamados a cuidar de todos aqueles que o desígnio divino colocou ao nosso lado no mundo. Exortemos a todos para que, «esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e, juntos, defendam e promovam a justiça social, os bens morais, a paz e a liberdade para todos os homens» ( Conc. Ecum. Vat. ii, Decl. Nostra ætate, 3). São tarefas que cabem a nós, guias religiosos: à vista de uma humanidade sempre mais ferida e dilacerada que, sob o vestido da globalização, respira com dificuldade e a medo, os grandes credos devem ser o coração que une os membros do corpo, a alma que dá esperança e vida às aspirações mais altas.

Nestes dias, falei da força da vida que resiste nos mais áridos desertos, abeberando-se na água do encontro e da convivência pacífica. Fi-lo ontem, tirando partido da surpreendente «árvore da vida» que se encontra aqui no Bahrein. A narração bíblica, que ouvimos, coloca a árvore da vida no centro do jardim das origens, no coração do projeto maravilhoso de Deus para o homem, um desígnio harmonioso capaz de abraçar toda a criação. Mas o ser humano distanciou-se do Criador e da ordem por Ele estabelecida. Daí tiveram origem problemas e desequilíbrios, que se sucedem uns aos outros na narração bíblica: litígios e homicídios entre irmãos (cf. Gn 4), desordens e devastações ambientais (cf. Gn 6-9), soberba e contrastes na sociedade humana (cf. Gn 11)... Em suma, uma aluvião de malvadez e morte que brotou do coração do homem, da centelha maléfica feita saltar por aquele mal que se agacha à porta do seu coração (cf. Gn 4, 7), para incendiar o jardim harmonioso do mundo. Mas todo este mal está radicado na rejeição de Deus e do irmão, na perda de vista do Autor da vida e na recusa a reconhecer-se guardião do irmão. Por isso as duas perguntas, que ouvimos, permanecem sempre válidas e não cessam, independentemente do credo professado, de interpelar cada existência e cada época: «onde estás?» (Gn 3, 9); «onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9).

Caros amigos, irmãos em Abraão, crentes no Deus único, os males sociais e internacionais, os males económicos e pessoais, bem como a dramática crise ambiental, que carateriza estes tempos e sobre a qual se refletiu hoje aqui, derivam em última análise do afastamento de Deus e do próximo. Por conseguinte, cabe-nos uma tarefa única, imprescindível: ajudar a reencontrar estas fontes de vida esquecidas, trazer novamente a humanidade a beber nesta antiga sabedoria, aproximar os fiéis à adoração do Deus do céu e aos homens para os quais Ele fez a terra.

E de que maneira? Os nossos meios são essencialmente dois: a oração e a fraternidade. Estas são as nossas armas, humildes e eficazes. Não devemos deixar-nos tentar por outros instrumentos, por atalhos indignos do Altíssimo, cujo nome de Paz é insultado por quantos creem nas razões da força, alimentam a violência, a guerra e o mercado das armas, «o comércio da morte» que, através de somas astronómicas de dinheiro, está a transformar a nossa casa comum num grande arsenal. Por trás de tudo isto, quantas tramas obscuras e quantas dolorosas contradições! Pensemos, por exemplo, nas inumeráveis pessoas que são obrigadas a migrar da sua terra por causa de conflitos alimentados pela compra a preços acessíveis de armamentos já sem validade, para acabar depois identificadas e rejeitadas noutras fronteiras através de equipamentos militares cada vez mais sofisticados. E, assim, a esperança é morta duas vezes! Pois bem, perante estes trágicos cenários, enquanto o mundo segue as quimeras da força, do poder e do dinheiro, somos chamados a lembrar, com a sabedoria dos anciãos e dos antigos, que Deus e o próximo vêm antes de tudo, que só a transcendência e a fraternidade nos salvam. Cabe a nós desenterrar estas fontes de vida; caso contrário, o deserto da humanidade será cada vez mais árido e mortífero. Sobretudo cabe a nós testemunhar – mais com os factos, do que com as palavras – que acreditamos nisto, nestas duas verdades. Temos uma grande responsabilidade diante de Deus e dos homens, e devemos ser modelos exemplares daquilo que pregamos, não só nas nossas comunidades e em nossa casa — isto já não basta —, mas também no mundo unificado e globalizado. Nós, que descendemos de Abraão, pai na fé dos povos, não podemos ter a peito somente «os nossos», mas devemos dirigir-nos, cada vez mais unidos, a toda a comunidade humana que habita na terra.

Com efeito, a todos, pelo menos no segredo do coração, se colocam os mesmos grandes interrogativos: Quem é o homem? Porquê o sofrimento, o mal, a morte, a injustiça? Que existe depois desta vida? Em muitos, anestesiados por um materialismo prático e por um consumismo paralisador, tais questões jazem adormecidas, enquanto noutros são silenciadas pelas chagas desumanas da fome e da pobreza. Pensemos na fome e pobreza de hoje. Oxalá que, entre os motivos do esquecimento daquilo que conta, não se inclua a nossa incúria, o escândalo de nos empenharmos noutra coisa que não a de anunciar o Deus que dá paz à vida e a paz que dá vida aos homens. Irmãos e irmãs, apoiemo-nos nisto, demos continuidade ao nosso encontro de hoje, caminhemos juntos! Seremos abençoados pelo Altíssimo e pelas criaturas mais pequeninas e frágeis que são as preferidas d’Ele: os pobres, as crianças e os jovens, que, depois de tantas noites tenebrosas, aguardam o surgir de uma alvorada de luz e de paz. Obrigado!