Homilia do Pontífice na celebração de finados

Entre a espera e a surpresa

 Entre a espera  e a surpresa  POR-044
03 novembro 2022

«Exercitemos o nosso desejo do paraíso. Far-nos-á bem, hoje, perguntar-nos se os nossos desejos têm algo a ver com o Céu. Pois corremos o risco de aspirar continuamente a coisas que passam, de confundir desejos com necessidades, de antepor as expetativas do mundo à espera de Deus», disse o Papa Francisco na homilia da Missa celebrada na basílica do Vaticano na manhã de 2 de novembro, em sufrágio pelos cardeais e bispos falecidos durante o último ano. Eis as palavras do Pontífice.

As Leituras que ouvimos suscitam em nós, em mim, duas palavras: espera e surpresa.

A espera manifesta o sentido da vida, pois vivemos na expetativa do encontro: o encontro com Deus, que hoje é o motivo da nossa oração de intercessão, especialmente pelos Cardeais e Bispos falecidos durante o último ano, pelos quais oferecemos em sufrágio este Sacrifício eucarístico.

Todos vivemos na expetativa, na esperança de um dia ouvir aquelas palavras de Jesus: «Vinde, benditos do meu Pai» (Mt 25, 34). Estamos na sala de espera do mundo para entrar no paraíso, para participar naquele “banquete para todos os povos” de que nos falou o profeta Isaías (cf. 25, 6). Ele diz algo que aquece o nosso coração porque levará a cumprimento precisamente as nossas maiores expetativas: o Senhor «eliminará para sempre a morte» e «enxugará as lágrimas em cada rosto» (v. 8). É bom quando o Senhor vem enxugar as lágrimas! Mas é muito mau, quando esperamos que seja outra pessoa, e não o Senhor, que as enxugará. E pior ainda, não ter lágrimas. Então poderemos dizer: «Este é o Senhor em quem esperamos — aquele que enxuga as lágrimas — alegremo-nos, exultemos pela sua salvação» (v. 9). Sim, vivemos na expetativa de receber bens tão grandes e bons que nem sequer os conseguimos imaginar, pois como nos recordou o apóstolo Paulo, «somos herdeiros de Deus, co-herdeiros de Cristo» (Rm 8, 17) e “esperamos viver para sempre, esperamos a redenção do nosso corpo” (cf. v. 23).

Irmãos e irmãs, alimentemos a expetativa do Céu, exercitemos o desejo do paraíso. Far-nos-á bem, hoje, perguntar-nos se os nossos desejos têm a ver com o Céu. Pois corremos o risco de aspirar constantemente a coisas que passam, de confundir os desejos com as necessidades, de antepor as expetativas do mundo à espera de Deus. Mas perder de vista o que importa para perseguir o vento seria o maior erro da vida. Olhemos para cima, porque estamos a caminho do Alto, pois as coisas daqui não irão para lá: as melhores carreiras, os maiores sucessos, os títulos e reconhecimentos mais prestigiosos, a riqueza acumulada e os ganhos terrenos, tudo esvaecerá num instante, tudo. E todas as expetativas neles depositadas ficarão desapontadas para sempre. No entanto, quanto tempo, quanto esforço e energia gastamos, preocupando-nos e amargurando-nos por estas coisas, deixando desvanecer-se a tensão pela casa, perdendo de vista o sentido do caminho, a meta da viagem, o infinito para o qual tendemos, a alegria pela qual respiramos! Perguntemo-nos: vivo o que digo no Credo, “Aguardo — isto é — a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir”? E como está a minha espera? Sou capaz de ir ao essencial ou distraio-me com muitas coisas supérfluas? Cultivo a esperança ou vou em frente queixando-me, porque dou demasiado valor a muitas coisas que não contam e que depois passarão?

À espera de amanhã, ajuda-nos o Evangelho de hoje. E aqui surge a segunda palavra que gostaria de partilhar convosco: surpresa. Porque é grande a surpresa cada vez que ouvimos o capítulo 25 de Mateus. É semelhante à dos protagonistas, que dizem: «Senhor, quando te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos estrangeiro e te acolhemos, ou nu e te vestimos? Quando te vimos doente ou prisioneiro e te fomos visitar?» (vv. 37-39). Quando? Assim se manifesta a surpresa de todos, o enlevo dos justos e a consternação dos injustos.

Quando? Também nós o poderíamos dizer: esperaríamos que o juízo sobre a vida e sobre o mundo tivesse lugar sob o sinal da justiça, perante um tribunal resolutivo que, filtrando todos os elementos, lance luz para sempre sobre as situações e as intenções. Ao contrário, no tribunal divino, o único mérito e acusação é a misericórdia para com os pobres e os descartados: «Tudo o que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes», sentencia Jesus (v. 40). O Altíssimo parece estar nos mais pequeninos. Quem habita nos céus vive entre os mais insignificantes do mundo. Que surpresa! Mas o juízo terá lugar desta forma porque será feito por Jesus, o Deus do amor humilde, Aquele que, nascido e morto pobre, viveu como servo. A sua medida é um amor que vai além das nossas medidas, e a sua medida de juízo é a gratuidade. Assim, para nos prepararmos, sabemos o que fazer: amar gratuitamente e a fundo perdido, sem esperar uma retribuição, quem entra na sua lista de preferências, quem não nos pode dar nada em troca, quem não nos atrai, quem serve os mais pequeninos.

Esta manhã recebi uma carta de um capelão de um lar de crianças, um capelão protestante, luterano, numa casa de crianças na Ucrânia. Crianças órfãs de guerra, crianças sozinhas, abandonadas. Ele disse: “Este é o meu serviço, acompanhar estes descartados, porque perderam os pais, a guerra cruel deixou-os sozinhos!”. Este homem faz o que Jesus lhe pede: cuidar dos mais pequeninos na tragédia. E quando li esta carta, escrita com tanta dor, fiquei comovido e disse: “Senhor, vê-se que Tu continuas a inspirar os verdadeiros valores do Reino”.

Quando? dirá este pastor quando se encontrar com o Senhor. Aquele “quando” surpreendido, que aparece quatro vezes nas perguntas que a humanidade dirige ao Senhor (cf. vv. 37.38.39.44), chega tarde, apenas «quando o Filho do Homem vier na sua glória» (v. 31). Irmãos, irmãs, não nos deixemos surpreender também nós. Tenhamos muito cuidado para não adoçar o sabor do Evangelho. Pois muitas vezes, por conveniência ou conforto, tendemos a atenuar a mensagem de Jesus, a diluir as suas palavras. Admitamos, tornamo-nos muito hábeis a ceder a compromissos em relação ao Evangelho. Sempre até aqui, até ali — compromissos. Dar de comer aos famintos, sim, mas a questão da fome é complexa, e certamente não consigo resolvê-la! Ajudar os pobres, sim, mas depois as injustiças devem ser tratadas de certa forma e por isso é melhor esperar, também porque se eu me comprometer, corro o risco de ser sempre incomodado e talvez me aperceba que poderia ter feito melhor; é melhor esperar um pouco. Estar perto dos doentes e dos presos, sim, mas nas manchetes dos jornais e nas redes sociais há outros problemas mais urgentes, então por que precisamente eu deveria interessar-me por eles? Acolher migrantes, sim, claro, mas é uma questão geral complicada, diz respeito à política... Não me envolvo nestes assuntos... Sempre compromissos: “sim, sim...”, mas “não, não”. Estes são os compromissos que fazemos em relação ao Evangelho. Tudo “sim” mas, no final, tudo “não”. E assim, à força de “mas” e de “contudo” — tantas vezes somos homens e mulheres de “mas” e “contudo” — fazemos da vida um compromisso em relação ao Evangelho. De simples discípulos do Mestre tornamo-nos mestres da complexidade, que discutem muito e fazem pouco, que procuram respostas mais diante do computador do que perante o Crucifixo, na internet e não no olhar dos irmãos e irmãs; cristãos que comentam, debatem e expõem teorias, mas não conhecem pelo nome nem sequer uma pessoa pobre, não visitam um doente há meses, nunca deram de comer nem vestiram alguém, nunca fizeram amizade com um necessitado, esquecendo que «o programa do cristão é um coração que vê» ( Bento xvi , Deus caritas est, 31).

Quando? A grande surpresa: surpresa da parte justa e da parte injusta, quando? Tanto os justos como os injustos se perguntam surpreendidos. A resposta é uma só: o quando é agora, hoje, à saída desta Eucaristia. Agora, hoje! Está nas nossas mãos, nas nossas obras de misericórdia: não nas especificações e nas análises requintadas, não nas justificações individuais ou sociais. Nas nossas mãos, e nós somos responsáveis. Hoje o Senhor lembra-nos que a morte consegue lançar a verdade sobre a vida, removendo todos os atenuantes à misericórdia. Irmãos, irmãs, não podemos dizer que não sabíamos. Não podemos confundir a realidade da beleza com a maquilhagem feita artificialmente. O Evangelho explica como viver a espera: vai-se ao encontro de Deus amando, porque Ele é amor. E, no dia da nossa despedida, a surpresa será feliz se agora nos deixarmos surpreender pela presença de Deus, que nos espera entre os pobres e feridos do mundo. Não tenhamos medo desta surpresa: progridamos naquilo que o Evangelho nos diz, para ser julgados justos no final. Deus espera ser acariciado não com palavras, mas com gestos.