Admoestação durante a missa para a canonização

Dois exemplos de inclusão face a tantas desigualdades

 Dois exemplos de inclusão face a tantas desigualdades  POR-041
13 outubro 2022

«A exclusão dos migrantes é escandalosa, aliás... é criminosa, fá-los morrer diante de nós», disse o Papa Francisco celebrando a 9 de outubro, na praça de São Pedro, a missa de canonização dos beatos João Batista Scalabrini e Artémides Zatti, dois exemplos de inclusão face às «muitas desigualdades e marginalizações» presentes no mundo.

Ia Jesus a caminho, quando dez leprosos saíram ao seu encontro clamando: «Jesus, Mestre, tem misericórdia de nós» (Lc 17, 13). E os dez ficam curados, mas só um deles regressa para agradecer a Jesus: é um samaritano, uma espécie de herege. No princípio, caminham juntos, mas em seguida destaca-se aquele samaritano, que regressa «glorificando a Deus em voz alta» (17, 15). Detenhamo-nos nestes dois aspetos que podemos deduzir do Evangelho de hoje: caminhar juntos e agradecer.

Antes de mais nada, caminhar juntos. No início da narração, não há qualquer distinção entre o samaritano e os outros nove. Fala-se simplesmente de dez leprosos, que fazem grupo entre si e, sem divisão, vão ao encontro de Jesus. Como sabemos, a lepra não era apenas uma úlcera física (ainda hoje devemos trabalhar por a debelar), mas também uma “doença social”, porque naquele tempo, por medo do contágio, os leprosos deviam estar fora da comunidade (cf. Lv 13, 46). Por conseguinte, não podiam entrar nos centros habitados, mas eram mantidos à distância, relegados para as margens da vida social e até religiosa. Caminhando juntos, estes leprosos clamam contra uma sociedade que os exclui. E note-se que o samaritano, apesar de ser considerado herético, «estrangeiro», faz grupo com os outros. A doença e a fragilidade comuns fazem cair as barreiras e superar toda a exclusão.

Trata-se de uma imagem significativa também para nós: se formos honestos connosco mesmos, havemos de nos lembrar que todos estamos doentes no coração, todos somos pecadores, todos necessitamos da misericórdia do Pai. Consequentemente deixaremos de nos dividir com base nos méritos, nas funções que desempenhamos ou em qualquer outro aspeto exterior da vida, e então caem os muros interiores, os preconceitos, e por fim descobrimo-nos irmãos. Como nos recordou a primeira Leitura, o próprio Naaman, apesar de ser rico e poderoso, para curar teve de mergulhar no rio onde se banhavam todos os outros. Antes de mais nada, teve que tirar a sua armadura, as suas vestes (cf. 2 Rs 5). Como nos faz bem tirar as nossas armaduras exteriores, as nossas barreiras defensivas e tomar um bom banho de humildade, recordando-nos de que todos somos frágeis por dentro e necessitados de cura, todos somos irmãos! Lembremo-nos disto: a fé cristã sempre nos pede para caminhar junto com os outros, para nunca ser caminhantes solitários; sempre nos convida a sair de nós próprios rumo a Deus e aos irmãos, sem nunca nos fecharmos em nós mesmos; sempre nos pede para nos reconhecermos necessitados de cura e perdão, e partilharmos as fragilidades de quem vive ao nosso redor, sem nos sentirmos superiores.

Irmãos e irmãs, verifiquemos se, na nossa vida, nas nossas famílias, nos nossos lugares de trabalho e de convivência diária, somos capazes de caminhar juntamente com os outros, ouvir, superar a tentação de nos entrincheirarmos na nossa autorreferencialidade e pensarmos só nas nossas necessidades. Mas caminhar juntos — por outras palavras, ser “sinodais” — é também a vocação da Igreja. Interroguemo-nos até que ponto somos verdadeiramente comunidades abertas e inclusivas em relação a todos; se conseguimos trabalhar juntos, padres e leigos, ao serviço do Evangelho; se temos uma atitude acolhedora — feita não só de palavras, mas de gestos concretos — tanto para com os distantes como para com todos os que se aproximam de nós, sentindo-se inábeis por causa dos seus percursos de vida conturbada. Fazemo-los sentir parte da comunidade, ou excluímo-los? Tenho medo, quando vejo comunidades cristãs que dividem o mundo em bons e maus, em santos e pecadores: assim acaba-se por se sentir melhor que os outros e manter fora a muitos que Deus quer abraçar. Por favor, sempre havemos de incluir tanto na Igreja como na sociedade, ainda caraterizada por tantas desigualdades e marginalizações.

O segundo aspeto é agradecer. No grupo dos dez leprosos, há apenas um que, ao ver-se curado, regressa para louvar a Deus e manifestar a sua gratidão a Jesus. Enquanto os outros nove ficam purificados mas prosseguem pelo seu caminho, esquecendo-se d’Aquele que os curou, o samaritano faz do dom recebido o princípio de um novo caminho: regressa para junto de Quem o sarou, vai conhecer Jesus de perto, inicia uma relação com Ele. Assim, a sua atitude de gratidão não é um simples gesto de cortesia, mas o início de um percurso de gratidão: prostra-se aos pés de Cristo (cf. Lc 17, 16), isto é, faz um gesto de adoração, reconhecendo que Jesus é o Senhor e que é mais importante do que a cura recebida.

Esta é uma grande lição também para nós, que todos os dias beneficiamos dos dons de Deus, mas frequentemente prosseguimos pela nossa estrada esquecendo-nos de cultivar uma relação viva com Ele. Trata-se de uma grave doença espiritual: dar tudo como garantido, inclusive a fé, mesmo a nossa relação com Deus, a ponto de nos tornarmos cristãos que deixaram de saber maravilhar-se, já não sabem dizer “obrigado”, não se mostram agradecidos, não sabem ver as maravilhas do Senhor. E acaba-se, assim, por pensar que tudo o que recebemos diariamente seja óbvio e devido. Ao contrário, a gratidão, o saber dizer “obrigado” leva-nos a afirmar a presença de Deus-amor e também a reconhecer a importância dos outros, vencendo o descontentamento e a indiferença que nos embrutecem o coração. É fundamental saber agradecer. Devemos diariamente dar graças ao Senhor, sabermos em cada dia agradecer uns aos outros: em família, por aquelas pequenas coisas que às vezes recebemos sem nos interrogar sequer donde provêm; nos locais que frequentamos quotidianamente, pelos inúmeros serviços de que usufruímos e pelas pessoas que nos apoiam; nas nossas comunidades cristãs, pelo amor de Deus que experimentamos através da proximidade de irmãos e irmãs que muitas vezes em silêncio rezam, oferecem, sofrem, caminham connosco. Por favor, não esqueçamos esta palavra-chave: obrigado!

Os dois Santos, canonizados hoje, lembram-nos a importância de caminhar juntos e saber agradecer. O Bispo Scalabrini, que fundou uma Congregação para o cuidado dos emigrantes, afirmava que, no caminhar comum daqueles que emigram, é preciso não ver só problemas, mas também um desígnio da Providência: «Precisamente por causa da migração forçada pelas perseguições — disse ele — a Igreja superou as fronteiras de Jerusalém e de Israel e tornou-se “católica”; graças às migrações de hoje, a Igreja será instrumento de paz e comunhão entre os povos» (A emigração dos trabalhadores italianos, Ferrara 1899). Scalabrini olhava mais além, olhava lá para diante, para um mundo e uma Igreja sem barreiras, sem estrangeiros. Por sua vez, o irmão salesiano Artémides Zatti foi um exemplo vivo de gratidão: curado da tuberculose, dedicou toda a sua vida a favorecer os outros, a cuidar com amor e ternura dos doentes. Conta-se que o viram carregar aos ombros o corpo morto de um dos seus doentes. Cheio de gratidão por tudo o que havia recebido, quis dizer o seu «obrigado» ocupando-se das feridas dos outros.

Rezemos para que estes nossos santos irmãos nos ajudem a caminhar juntos, sem muros de divisão; e a cultivar esta nobreza de alma tão agradável a Deus que é a gratidão.