Graças à «hospitalidade missionária» os estranhos tornam-se irmãos

 Graças à «hospitalidade missionária»  os estranhos tornam-se irmãos  POR-040
06 outubro 2022

«A cultura da convivência fraterna, da oração comunitária, que também dá lugar à oração pessoal, é o fundamento de uma verdadeira “hospitalidade missionária”, que visa fazer com que os “estranhos” se tornem irmãos», frisou o Papa Francisco dirigindo-se aos Cónegos regulares premonstratenses recebidos em audiência a 22 de setembro na Sala do Consistório por ocasião do nono centenário da fundação da Abadia de Prémontré. No seu discurso, o Pontífice relançou também a sustentabilidade como critério-chave na gestão das comunidades religiosas, bem como a justiça social.

Estimados irmãos e irmãs
bem-vindos!

Agradeço ao Abade-Geral as suas palavras. Saúdo todos vós, feliz por me encontrar convosco, com um ano de atraso. De facto, no ano passado celebrastes o 900º aniversário da primeira profissão de São Norberto e dos seus primeiros companheiros, em Prémontré, no dia de Natal de 1121. Este acontecimento marcou o nascimento da Ordem dos Premonstratenses.

Aquela pequena aldeia no norte da França tornou-se assim a forja em que a vossa protocomunidade tomou forma. Já no seu primeiro século, a nova Ordem experimentou um crescimento extraordinário em toda a Europa. As diversas comunidades, associadas à de Prémontré, tinham cada uma a própria fisionomia, o seu estilo. Assim, a Ordem da qual Norberto lançou as bases tornou-se uma federação de comunidades autónomas e estáveis. De resto, os Cónegos Regulares emitem a profissão numa Igreja específica, enraizada num lugar específico.

A história das Ordens religiosas mostra frequentemente uma certa tensão entre o fundador e a sua fundação. E isto é bom, porque quando não há tensão, o fundador assume tudo consigo e o instituto morre com o fundador. A tensão faz crescer a comunidade, a ordem religiosa. São Norberto, por exemplo, foi missionário, pregador itinerante e, como arcebispo de Magdeburgo, planeou a evangelização das fronteiras do então império germânico. Por conseguinte, vem a pergunta de como o carisma missionário de São Norberto pudesse ser implementado em comunidades estáveis ligadas a um determinado lugar.

Nos próximos anos, muitas abadias e mosteiros da vossa Ordem celebrarão o seu nono centenário de fundação. Este facto torna a vossa reflexão ainda mais útil, até necessária. A organização da Ordem tem fomentado uma grande estabilidade ao longo dos séculos. Muitos dos vossos mosteiros e abadias estão profundamente ligados a acontecimentos felizes e provações, a toda a história de uma determinada região. Esta simbiose já nos dá uma visão de como a estabilidade e a missão, a vida num lugar e a evangelização podem andar de mãos dadas.

A presença de uma comunidade de irmãs ou irmãos é como um farol luminoso no ambiente circundante. No entanto, as pessoas também sabem que as comunidades religiosas nem sempre respondem plenamente à vida a que são chamadas. A experiência cristã concreta é feita de boas intenções e erros, consiste em recomeçar sempre de novo. Não devemos envergonhar-nos disto! É o caminho. Não por acaso, na vossa profissão canonical, prometeis levar uma vida de conversão e comunhão. Sem conversão não há comunhão. E precisamente este recomeçar e converter-se à fraternidade é um claro testemunho do Evangelho, mais do que muitos sermões.

A comum e fiel celebração da Liturgia das Horas e da Eucaristia reconduz-vos continuamente à fonte da comunhão. A liturgia está no centro da espiritualidade dos Cónegos Regulares, e envolve todo o povo de Deus. Além disso, a oração da Igreja não conhece fronteiras. A fidelidade à oração comum, que é a oração de Cristo, tem em si um grande valor apostólico. Ajuda a abrir corações e mentes a todos; e esta abertura é expressa no caráter público e acessível das celebrações nas vossas igrejas. Fiéis e visitantes são bem-vindos e envolvidos na comunidade orante. A cultura da convivência fraterna, da oração comunitária, que também dá lugar à oração pessoal, é o fundamento de uma verdadeira “hospitalidade missionária”, que visa fazer com que os “estranhos” se tornem irmãos e irmãs.

Ao longo da história, muitos Premonstratenses foram missionários, encarnando mais claramente o espírito missionário de São Norberto. A história da missão é uma história de coragem e abnegação, por amor. Pouco a pouco, cresceu a consciência de que a missão, na vossa Ordem, podia incluir a constituição de novas comunidades estáveis em terras de missão. E assim surgiram novos mosteiros e abadias em contextos muito diferentes da Europa. O desafio era centrar-se no essencial e submeter as formas tradicionais a uma crítica adequada, para distinguir o que é necessário e universal e o que pode e deve ser adaptado às circunstâncias.

Hoje, as vossas fundações históricas na Europa são convidadas a reconsiderar a própria história. Na medida em que reviverdes, por assim dizer, os vossos inícios, compreendereis qual é a vossa inspiração fundamental. Não esqueçamos: ser uma Ordem significa aprender uns com os outros; significa que as comunidades federadas, na sua autonomia, devem cultivar um interesse fraterno por todas as outras comunidades. Esta é uma forma de viver a catolicidade da Igreja. Cada comunidade mantém a própria identidade, muitas vezes determinada pelas suas origens e história, e por isso nenhuma comunidade pode pretender impor a sua identidade a outras. Trata-se antes de reconhecer o que é partilhado como uma expressão do carisma comum.

Os Cónegos Regulares são missionários porque, em virtude do seu carisma, procuram sempre partir do Evangelho e das necessidades concretas do povo. O povo não é uma abstração. É constituído por pessoas que conhecemos: comunidades, famílias, indivíduos com um rosto concreto. Estão ligados à abadia ou ao mosteiro porque vivem e trabalham na mesma região. Por vezes partilham uma longa história comum com as vossas comunidades. E é necessário ter a capacidade de nos inserirmos culturalmente no povo, de dialogar com o povo, de não negar o povo de onde viemos. Este é um carisma que nos faz continuamente “aterrar” na realidade.

Concretamente, o impulso missionário de uma casa premonstratense traduz-se em escolhas concretas nos campos social, económico e cultural. A atividade económica de uma comunidade religiosa visa o sustento dos seus membros, a sua formação e o seu apostolado. Para muitos existe frequentemente a manutenção e preservação de um património cultural e arquitetónico. A atividade económica serve a missão e a realização do carisma: nunca é um fim em si mesma, mas orienta-se para um objetivo espiritual. Nunca poderá contradizer o propósito que serve. Isto significa que ao escolher como ganhar dinheiro, é preciso perguntar a si mesmo: qual é o impacto nas pessoas do território? Quais serão as consequências para os pobres, para os nossos hóspedes, para os visitantes? As nossas escolhas são uma expressão de simplicidade evangélica? Será que fomentam o acolhimento e a vida fraterna? Aqui vemos como as decisões no campo económico devem ser harmonizadas pela missão, pelo povo, pela comunidade, e não o contrário. Quando numa ordem religiosa, ou numa diocese, a atividade económica passa para o primeiro plano, esquece-se das pessoas e esquece-se do que disse Jesus: que não se pode servir dois senhores (cf. Lc 16, 13). “Ou serves a Deus — e eu esperava que ele dissesse “ou o diabo”, não, ele não diz o diabo — ou o dinheiro”. A idolatria do dinheiro. Isto distancia-nos da verdadeira vocação. É por isso que devemos fazer sempre estas perguntas, sobre as consequências. Quais serão as consequências para os pobres, para os nossos hóspedes, para os visitantes que veem a nossa atividade económica? São as nossas escolhas económicas uma expressão de simplicidade evangélica ou somos empresários? Será que fomentam a hospitalidade e a vida fraterna? E não se podem servir dois senhores. Estai atentos. O diabo entra normalmente pelos bolsos.

Também se deve perguntar quais são as consequências para o meio ambiente. A estabilidade e a longa experiência da comunidade ajudam a prever as consequências das escolhas a longo prazo. A sustentabilidade é um critério-chave, assim como a justiça social. Como empregador, uma abadia ou mosteiro pode considerar a admissão de pessoas que tenham dificuldade em encontrar trabalho ou colaborar com uma agência especializada para o emprego social. Uma abertura sábia na partilha de bens culturais, jardins e áreas naturais pode contribuir para o dinamismo de uma área mais ampla. De resto, faz parte da vossa tradição ter em conta o meio ambiente e as pessoas que o habitam convosco. Isto cria as condições para um cuidado pastoral eficaz e para um anúncio credível do Evangelho. As escolhas económicas e sociais não estão separadas da missão. Os contactos com organismos públicos e várias sociedades, assim como os investimentos de uma comunidade, também podem contribuir para o desenvolvimento de boas iniciativas. Que os contactos recíprocos dentro da Ordem mantenham o olhar aberto, despertem a solidariedade entre as comunidades e a atenção para o contexto em que cada uma delas vive e testemunha o Evangelho.

Juntamente com esta preocupação de boa gestão, é preciso exercê-la para quantos estão fora da rede social, para aqueles que são marginalizados devido à extrema pobreza ou fragilidade e, por esta razão, de difícil acesso. Algumas necessidades só podem ser aliviadas através da caridade, o primeiro passo para uma melhor integração na sociedade.

Muitos Premonstratenses serviram como párocos, professores e missionários. Vivem na memória das vossas comunidades, assim como das paróquias, escolas e aldeias onde serviram. São a força vital da vossa tradição, como ecoa no lema do vosso Jubileu: “Juntos, com Deus, com o povo”.

Seguindo os passos de São Norberto, a piedade dos Premonstratenses dedicou um lugar cada vez mais central à Eucaristia, quer na solene e recolhida celebração comunitária, quer na adoração silenciosa. Tal como Ele está presente para nós no Sacramento, assim o Senhor quer estar presente através de nós na vida das pessoas que encontramos. Que vós, irmãos e irmãs, possais tornar-vos o que celebrais, recebeis e adorais: o corpo de Cristo, e n’Ele um lar de comunhão, no qual muitos podem ser aquecidos.

A primeira profissão de Norberto e dos seus discípulos, no dia do Santo Natal, liga para sempre a vossa Ordem ao Mistério da Encarnação. Que a simplicidade e a pobreza de Belém vos inspirem o sentido de fraternidade humana. Que a presença materna de Maria Santíssima vos guie no caminho da fé e da caridade atenciosa. A sua oração com os discípulos acompanhou o nascimento da Igreja apostólica, que desde sempre inspirou o vosso modo de viver. Possa a Mãe de Cristo e da Igreja ajudar-nos a tornar-nos plenamente humanos, para sermos testemunhas credíveis do Evangelho da salvação.

Que o Espírito Santo vos ilumine no vosso caminho e no vosso serviço à Igreja. De coração abençoo todos vós e as vossas comunidades. E, como disse o Abade-Geral, rezai por mim. Obrigado!