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O tomismo não deve ser uma peça de museu mas uma fonte sempre viva

 O tomismo não deve ser uma peça de museu  mas uma fonte sempre viva  POR-039
29 setembro 2022

Por ocasião do xi Congresso tomístico internacional, o Papa Francisco entregou aos participantes o seguinte discurso preparado.

Senhores Cardeais
Ilustres Académicos
Senhoras e Senhores!

Tenho o prazer de dar as boas-vindas a todos vós que viestes a Roma de várias partes do mundo para celebrar o xi Congresso Tomístico Internacional. Agradeço ao Cardeal Luis Ladaria as amáveis palavras que me transmitiu. Saúdo o Padre Serge-Thomas Bonino, Presidente da Pontifícia Academia de S. Tomás de Aquino, bem como todos os Académicos presentes. Manifesto também a minha gratidão ao Cardeal Gianfranco Ravasi que, como Presidente do Conselho de coordenação das Academias Pontifícias, acompanhou a vida da Academia durante muitos anos.

No próximo ano será celebrado o sétimo centenário da canonização de S. Tomás de Aquino, que teve lugar em Avignon, em 1323. Tal acontecimento recorda-nos que este grandíssimo teólogo — o “Doutor comum” da Igreja — é em primeiro lugar um santo, um discípulo fiel da Sabedoria encarnada. Por isso, na oração da coleta na sua memória, pedimos a Deus, «que o fez grande pela busca da santidade de vida e a paixão pela doutrina sagrada», que «nos conceda compreender os seus ensinamentos e imitar os seus exemplos». E aqui encontramos também o vosso programa espiritual: imitar o Santo e deixar-vos iluminar e guiar pelo Doutor e Mestre.

A mesma oração realça a paixão de frei Tomás pela doutrina sagrada. Com efeito, ele foi um homem apaixonado pela Verdade, um investigador incansável do rosto de Deus. O seu biógrafo narra que quando criança perguntara: «O que é Deus?».1 Esta interrogação acompanhou Tomás, motivando-o durante a sua vida inteira. Esta busca da verdade a respeito de Deus é movida e permeada pelo amor. Assim escreve: «Movido por uma vontade ardente de acreditar, o homem ama a verdade em que acredita, considera-a na sua inteligência e abraça-a com as razões que pode encontrar para tal fnalidade».2 Perseguir humildemente, sob a orientação do Espírito Santo, o intellectus fidei não é opcional para o crente, mas faz parte do próprio dinamismo da sua fé. É necessário que a Palavra de Deus, já recebida no coração, alcance a inteligência para “renovar o nosso modo de pensar” (cf. Rm 12, 2), a fim de avaliarmos tudo à luz da Sabedoria eterna. Portanto, a busca apaixonada de Deus é oração e, simultaneamente, contemplação, de tal forma que S. Tomás é modelo da teologia que nasce e cresce na atmosfera da adoração.

Esta busca da verdade a respeito de Deus usa as duas “asas” da fé e da razão. Como sabemos, o modo como S. Tomás soube coordenar as duas luzes da fé e da razão permanece exemplar. São Paulo vi escrevia: «O ponto central e quase o núcleo da solução que S. Tomás deu ao problema do novo confronto entre razão e fé com a genialidade da sua intuição profética, foi o da conciliação entre a secularidade do mundo e a radicalidade do Evangelho, evitando assim a tendência antinatural de negar o mundo e os seus valores, contudo sem deixar de satisfazer as exigências supremas e inflexíveis da ordem sobrenatural».3 Portanto, o cristão não tem medo de encetar um diálogo sincero e racional com a cultura do seu tempo, convencido, de acordo com a fórmula de Ambrosiaster, querida a Tomás, de que «toda a verdade, quem quer que a diga, vem do Espírito Santo».4

Na oração da coleta, já citada, pedimos a graça não só de imitar o Santo, mas também de «compreender os seus ensinamentos». Com efeito, S. Tomás é a fonte de uma tradição de pensamento cuja «novidade perene» foi reconhecida.5 O tomismo não deve ser uma peça de museu, mas uma fonte sempre viva, de acordo com o tema do vosso Congresso: “Vetera novis augere. Os recursos da tradição tomista no contexto atual”. É necessário promover, segundo as palavras de Jacques Maritain, um “tomismo vivo”, capaz de se renovar para responder às interrogações de hoje. Assim, o tomismo progride, seguindo um duplo movimento vital de “sístole e diástole”. Sístole, porque primeiro é preciso concentrar-se no estudo da obra de S. Tomás no seu contexto histórico-cultural, a fim de identificar os seus princípios estruturantes e apreender a sua originalidade. Depois, porém, vem a diástole: dirigir-se no diálogo ao mundo de hoje, para assimilar criticamente o que é verdadeiro e correto na cultura da época.

Entre as numerosas doutrinas iluminadoras do Aquinate, gostaria apenas de chamar a atenção, como fiz na Encíclica Laudato si’, para a fecundidade do seu ensinamento sobre a criação. Não é por acaso que o escritor inglês Chesterton definiu o Aquinate “Tomás do Criador”. Para S. Tomás a criação é a primeira manifestação da extraordinária generosidade de Deus, aliás, da sua misericórdia gratuita.6 É a chave do amor, diz Tomás, que abriu a mão de Deus e a mantém sempre aberta.7 Depois, ele contempla a beleza de Deus que resplandece na diversidade ordenada das criaturas. O universo das criaturas visíveis e invisíveis não é um bloco monolítico, nem uma pura diversidade sem forma, mas constitui uma ordem, um todo em que todas as criaturas estão ligadas porque todas vêm de Deus e vão para Deus, e porque agem umas sobre as outras, criando assim uma densa rede de relações. «S. Tomás de Aquino sublinhava, sabiamente, que a multiplicidade e a variedade “provêm da intenção do primeiro agente”, o qual quis que “o que falta a cada coisa, para representar a bondade divina, seja suprido pelas outras”, pois a sua bondade “não pode ser convenientemente representada por uma só criatura”. Por isso, devemos reconhecer a variedade das coisas nas suas múltiplas relações. Assim, compreendemos melhor a importância e o significado de qualquer criatura, se a contemplarmos no conjunto do plano de Deus».8

Por tudo isto, queridos irmãos e irmãs, no sulco dos meus predecessores, recomendo-vos: Ide a Tomás! Não tenhais medo de aumentar e enriquecer com coisas novas as coisas velhas e sempre fecundas. Desejo-vos bom trabalho e abençoo-vos de coração. E peço-vos, por favor, que oreis por mim. Obrigado!

1 Petrus Calo , Vita s. Thomas Aquinatis, in Fontes vitae s. Thomae Aquinatis, editado por D. Prümmer e M.-H. Laurent, Toulouse, s.d., p. 19.

2 Summa theologiae, ii a- ii ae, q. 2, a. 10.

3 Carta Apostólica Lumen Ecclesiae (20 de novembro de 1974), 8: aas 66 (1974), 680.

4 Ambrosiaster, In 1 Cor 12, 3: pl 17, 258. Cf. S. Tomás de Aquino , Summa theologiae, i a- ii ae, q. 109, a. 1, ad 1.

5 São João Paulo ii , Carta Encíclica Fides et ratio (14 de setembro de 1998), 43-44.

6 Cf. S. Tomás de Aquino , In iv Sent., d. 46, q. 2, a. 2, qla. 2, ad 1; Summa theologiae, i a, q. 21, a. 4, ad 4.

7 Cf. S. Tomás de Aquino , In ii Sent., Prologus.

8 Carta Encíclica Laudato si’ (24 de maio de 2015), 86.