Discurso às autoridades do país

Um grito de paz face à guerra louca e trágica

 Um grito de paz  face à guerra louca e trágica  POR-037
15 setembro 2022

Na tarde de terça-feira 13 de setembro, após a receção oficiais no aeroporto internacional da capital Nur-Sultan, o Papa Francisco foi de carro até ao palácio presidencial “Ak Ord” para os primeiros encontros da viagem que acabou de começar no Cazaquistão: a cerimónia de boas-vindas, a visita de cortesia ao presidente da República e o encontro público com as autoridades, a sociedade civil e o corpo diplomático. À chegada à residência do chefe de Estado, o bispo de Roma foi recebido pelo presidente Kassym-Jomart K. Tokayev no pátio, onde tiveram lugar a guarda de honra, a execução dos respetivos hinos e a apresentação das delegações. Depois, de elevador, dirigiram-se juntos até ao East Hall para o diálogo particular, precedido pela foto oficial. Nesta ocasião, Francisco ofereceu a medalha de ouro do Pontificado e um pequeno azulejo da viagem, realizado pela artista Amalia Mistichelli que representa, no reverso, a Virgem Maria emergindo do lago da misericórdia, onde ela lança os peixes que lhe dá o Menino Jesus, que ela tem ao colo. A efígie está ligada ao santuário de Oziornoje, no norte do país, desde 1941 símbolo de salvação e fé do povo cazaque. Também no reverso, no centro, há uma pomba de paz que entra na “yurt”, habitação típica das aldeias da Ásia central. Por fim, ambos encontraram-se no “Qazaq Concert Hall” onde, após a saudação do chefe de Estado, o Papa proferiu o primeiro discurso em solo cazaque, na presença de autoridades, representantes da sociedade civil e membros do corpo diplomático acreditado junto do Cazaquistão. No final, o Papa Francisco regressou de carro à Nunciatura apostólica, onde passou a noite.

Senhor Presidente da República
Distintos Membros do Governo
e do Corpo Diplomático
Ilustres Autoridades
religiosas e civis
Insignes Representantes
da sociedade civil
e do mundo da cultura
Senhoras e Senhores!

Saúdo-vos cordialmente e agradeço ao Senhor Presidente as palavras que me dirigiu. Sinto-me honrado por estar aqui convosco, nesta terra tão extensa como antiga, aonde venho como peregrino de paz à procura de diálogo e de unidade. Disto, tem urgente necessidade o nosso mundo: precisa de voltar a encontrar harmonia. Esta, podemos vê-la bem representada num instrumento musical, tradicional e caraterístico deste país, que conheci: a dombra. Constitui um emblema cultural e um dos símbolos mais importantes do Cazaquistão, a ponto de lhe ter sido dedicado, recentemente, um dia específico. Gostaria precisamente de assumir a dombra como elemento à volta do qual articular quanto desejo partilhar convosco.

Ao preparar-me para esta viagem, vim a saber que algumas versões da dombra eram tocadas já na época medieval e que, ao longo dos séculos, acompanhou os contos musicais de sagas e obras poéticas, ligando o passado ao presente. Símbolo de continuidade na diversidade, marca a cadência da memória do país e, face às rápidas mudanças económicas e sociais em curso, recorda a importância de não se transcurar os laços com a vida de quem nos precedeu, inclusive através das tradições que permitem fazer tesouro do passado e valorizar tudo o que se herdou. Penso, por exemplo, no significativo e difuso costume de cozer, na manhã de sexta-feira, sete pães em honra dos antepassados.

A memória do Cazaquistão, que o Papa João Paulo ii — aqui peregrino — definiu como «Terra de mártires e de crentes, Terra de deportados e de heróis, Terra de pensadores e artistas» (Discurso na cerimónia de boas-vindas, 22 de setembro de 2001), traz impressa uma gloriosa história de cultura, humanidade e sofrimento. Como não lembrar, em particular, os campos de detenção e as deportações em massa que viram a opressão de tantas populações nas cidades e estepes infindas destas regiões? Mas os cazaques não se deixaram cair reféns destes abusos: da memória da reclusão floresceu o cuidado pela inclusão. Nesta terra, percorrida desde a antiguidade por grandes deslocamentos de povos, a recordação do sofrimento e das provações vividas seja uma bagagem indispensável para se encaminhar para o futuro, colocando em primeiro lugar a dignidade do homem, de cada homem e de cada grupo étnico, social, religioso.

Voltemos à dombra… É tocada dedilhando as suas duas cordas. Também o Cazaquistão se carateriza pela capacidade de avançar criando harmonia entre “duas cordas paralelas”: temperaturas tão rígidas no inverno como elevadas no verão; tradição e progresso, bem simbolizados pelo encontro de cidades históricas a par doutras modernas, como esta capital. E sobretudo ressoam, no país, as notas de duas almas, a asiática e a europeia, que fazem dele uma permanente «missão de ligação entre dois continentes» ( João Paulo ii , Discurso aos jovens, 23 de setembro de 2001), «uma ponte entre a Europa e a Ásia», um «elo de união entre o Oriente e o Ocidente» ( Id. , Discurso na cerimónia de despedida, 25 de setembro de 2001). Habitualmente, as cordas da dombra são tocadas juntamente com outros instrumentos de arco típicos destes lugares: a harmonia matura e cresce no conjunto, no coro que torna harmoniosa a vida social. “A fonte do sucesso é a unidade”: reza um belo provérbio local. Se isto é válido em todo o lado, é-o de modo particular aqui: os cerca de cento e cinquenta grupos étnicos e as mais de oitenta línguas presentes no país, com histórias, tradições culturais e religiosas variegadas, compõem uma sinfonia extraordinária e fazem do Cazaquistão um laboratório multiétnico, multicultural e multirreligioso único, revelando a sua peculiar vocação que é a de ser país do encontro.

Estou aqui para sublinhar a importância e a urgência deste aspeto, para o qual são chamadas a contribuir de modo particular as religiões; por isso terei a honra de participar no sétimo Congresso dos Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais. Apropriadamente, a Constituição do Cazaquistão, ao defini-lo como um Estado laico, prevê a liberdade de religião e de crença. Uma laicidade sã, que reconheça o papel precioso e insubstituível da religião e contraste o extremismo que a corrói, representa uma condição essencial para o équo tratamento de todo o cidadão, além de favorecer o sentimento de pertença ao país por parte de todas as suas componentes étnicas, linguísticas, culturais e religiosas. Com efeito as religiões, enquanto desempenham o papel insubstituível de buscar e testemunhar o Absoluto, precisam da liberdade de se expressar. E assim a liberdade religiosa constitui o álveo melhor para a convivência civil.

Trata-se de uma necessidade inscrita no nome deste povo: a palavra «cazaque» evoca precisamente o caminhar livre e independente. A tutela da liberdade, aspiração inscrita no coração de cada ser humano, única condição para que o encontro entre as pessoas e os grupos seja real e não artificial, traduz-se na sociedade civil principalmente através do reconhecimento dos direitos, acompanhados pelos deveres. Deste ponto de vista, quero manifestar apreço pela afirmação do valor da vida humana através da abolição da pena de morte, em nome do direito à esperança para todo e cada um dos seres humanos. A par disto, é importante garantir a liberdade de pensamento, consciência e expressão, para dar espaço ao papel único e paritário que cada um reveste para o conjunto.

Também nisto, pode servir-nos de estímulo a dombra. É principalmente um instrumento musical popular e, como tal, comunica a beleza de preservar o génio e a vivacidade de um povo. Isto está confiado em primeiro lugar às autoridades civis, primeiras responsáveis pela promoção do bem comum, e realiza-se de modo especial através do apoio à democracia, que constitui a forma mais adequada para que o poder se traduza em serviço a favor de todo o povo, e não só de alguns. Sei que foi lançado, sobretudo nos últimos meses, um processo de democratização tendente a reforçar as competências do Parlamento e das Autoridades locais e, de modo mais geral, uma maior distribuição do poder. Trata-se de um trajeto meritório e exigente, com certeza não breve, que exige prosseguir para a meta sem se voltar para trás. De facto, cresce a confiança em quem governa, quando as promessas resultam não instrumentais, mas efetivamente implementadas.

Por toda a parte é preciso que a democracia e a modernização não sejam relegadas a proclamações, mas confluam num serviço concreto ao povo: uma boa política feita de escuta do povo e de resposta às suas legítimas carências, de envolvimento constante da sociedade civil e das organizações não-governamentais e humanitárias, de particular atenção aos trabalhadores, jovens e às faixas mais débeis; e feita também de medidas (no mundo, todos os países precisam delas!) para combater a corrupção. Este estilo político realmente democrático é a resposta mais eficaz a possíveis extremismos, personalismos e populismos, que ameaçam a estabilidade e o bem-estar dos povos. Penso também na necessidade de uma certa segurança económica, que foi invocada, ao início do ano, aqui em regiões onde, apesar dos consideráveis recursos energéticos, várias dificuldades se fazem sentir. É um desafio que diz respeito não só ao Cazaquistão, mas a todo o mundo, cujo desenvolvimento integral se vê refém de uma generalizada injustiça, aparecendo distribuídos de forma desigual os recursos. E é missão do Estado, mas também do setor privado, tratar todas as componentes da população com justiça e igualdade de direitos e deveres, e promover o desenvolvimento económico, não com base no lucro de poucos, mas na dignidade de cada trabalhador.

Voltemos pela última vez à dombra (ainda vão dizer que este Papa é músico!)... A dombra associa o Cazaquistão a vários países da área circundante e contribui para difundir a sua cultura no mundo. Espero que, de forma análoga, continue o nome deste grande país a ser sinónimo de harmonia e de paz. O Cazaquistão configura-se como encruzilhada de relevantes nós geopolíticos, revestindo consequentemente um papel fundamental na mitigação da conflitualidade. Aqui veio João Paulo ii semear esperança logo a seguir aos trágicos atentados de 2001. Por minha vez, chego cá no curso da louca e trágica guerra originada pela invasão da Ucrânia, enquanto outros confrontos e ameaças de conflito colocam em risco os nossos tempos. Venho para amplificar o clamor de tantos que imploram a paz, caminho de desenvolvimento essencial para o nosso mundo globalizado. E a paz é isto: um caminho de desenvolvimento essencial para o nosso mundo globalizado.

Assim é cada vez mais premente a necessidade de ampliar o empenho diplomático a favor do diálogo e do encontro, porque o problema de qualquer um é hoje problema de todos, e quem mais poder detém no mundo, maior responsabilidade tem para com os outros, especialmente com os países colocados em maior crise por lógicas conflituais. Era isto que se deveria ter em consideração, e não apenas os interesses finalizados a vantagem própria. É hora de evitar a acentuação de rivalidades e o reforço de blocos contrapostos. Precisamos de líderes que, a nível internacional, permitam aos povos compreenderem-se e dialogarem, e gerem um novo «espírito de Helsínquia», a vontade de reforçar o multilateralismo, de construir um mundo mais estável e pacífico pensando nas novas gerações. E, para fazer isto, é preciso compreensão, paciência e diálogo com todos. Repito: com todos.

Pensando precisamente no empenho global pela paz, exprimo vivo apreço pela renúncia às armas nucleares empreendida com determinação por este país; bem como pelo desenvolvimento de políticas energéticas e ambientais centradas na descarbonização e no investimento em fontes limpas, que há cinco anos pôs em destaque a Exposição Internacional. Juntamente com a solicitude pelo diálogo inter-religioso, são sementes concretas de esperança plantadas no terreno comum da humanidade, que cabe a nós cultivar para as gerações vindouras; para os jovens, a cujos desejos é preciso olhar ao empreender as decisões de hoje e de amanhã. A Santa Sé está solidária convosco neste percurso: há trinta anos, logo depois da independência do país, foram estabelecidas relações diplomáticas e sinto-me feliz por visitar o país na iminência deste aniversário. Asseguro que os católicos, presentes na Ásia central desde tempos antigos, desejam continuar a testemunhar o espírito de abertura e diálogo respeitoso que carateriza esta terra. E fazem-no, sem espírito de proselitismo.

Senhor Presidente, queridos amigos, agradeço-vos o acolhimento que me reservastes e que revela o vosso conhecido sentido de hospitalidade, bem como a oportunidade de passar estes dias de diálogo fraterno juntamente com os líderes de muitas religiões. O Altíssimo abençoe a vocação de paz e unidade do Cazaquistão, país do encontro. A vós, que tendes a responsabilidade prioritária do bem comum, e a cada um dos seus habitantes, expresso a minha alegria por estar aqui e a vontade de acompanhar com a oração e a proximidade cada esforço para um futuro próspero e harmonioso deste grande país. Raqmét! [Obrigado!]. Deus abençoe o Cazaquistão!