Isabel e a defesa da fé

Members of the public file past as soldiers of The Grenadier Guards and Yeomen of the Guard, stand ...
15 setembro 2022

A10 de setembro de 2022, o príncipe Carlos foi proclamado «pela graça de Deus» rei Carlos iii . Ao aceitar o ato de proclamação no St. James’s Palace, o novo rei declarou-se consciente da grave responsabilidade. Deve ter-se sentido como Eduardo vii , quando a 22 de janeiro de 1901, aquando da morte da sua mãe — a rainha Vitória, soberana durante 63 anos de um vasto e poderoso império — foi chamado para a substituir no trono. Hoje o rei Carlos não é imperador das Índias, nem emparentado com o kaiser e o czar, como Eduardo (tanto que foi apelidado “o tio da Europa”), porque desde os tempos vitorianos o mundo e a Grã-Bretanha mudaram profundamente; em particular, o longo reinado de Isabel ii (1952-2022) cobriu um período de radical transformação social e económica, tecnológica e política. Também o contexto religioso do reino já não é o mesmo, apesar da continuidade das fórmulas tradicionais de investidura, que há séculos entrelaçam monarquia e religião. Há alguns dias, o rei Carlos foi proclamado soberano do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e chefe da Commonwealth, mas também «defensor da fé», título que fora conferido em 1521 pelo papa Leão x ao rei Henrique viii da Inglaterra (que se opunha aos ensinamentos de Lutero), e que foi depois mantido pela Igreja anglicana inclusive após a rutura com Roma. Carlos assumirá formalmente a guia da Igreja da Inglaterra no dia da sua coroação, e comprometer-se-á a manter a Igreja presbiteriana da Escócia, como aconteceu com a sua mãe há 70 anos, em conformidade com o ato de União entre a Inglaterra e a Escócia de 1707.

No dia da sua solene coroação, 2 de junho de 1953, a jovem rainha, consagrada com o santo óleo pelo arcebispo de Cantuária para que dedicasse a vida ao serviço dos seus súbditos, afirmou que o espírito e o significado daquele rito antigo brilhavam através dos séculos: Isabel comprometeu-se perante Deus a governar a nação que o Todo-Poderoso lhe tinha confiado e invocou o apoio e a bênção divina. Deste apoio, durante o seu longo reinado entre os séculos xx e xxi , Sua Majestade falou em discursos à nação por ocasião do Natal ou em tempos de crise, com citações frequentes da Bíblia (que definia uma «casa do tesouro»). Isabel ii testemunhou em público uma fé geralmente confinada à esfera particular.

No seu primeiro discurso de Natal em 1952, a rainha pediu a todos os seus súbditos, independentemente da sua religião, que rezassem a fim de que Deus lhe desse a força e a sabedoria necessárias para cumprir as promessas solenes que estava prestes a fazer. No discurso proferido e transmitido a 25 de dezembro de 2000, a rainha reconheceu a sua responsabilidade perante Deus e declarou o seu compromisso de seguir os ensinamentos de Cristo, e dois anos mais tarde confidenciou como a fé a tinha sustentado na dor pela morte da irmã, a princesa Margaret, e da rainha mãe. No discurso de 2016, Isabel explicou que o exemplo de Cristo a ajudou a apreciar a beleza das pequenas coisas feitas com grande amor, «seja quem for que as faça e independentemente do que crê». Durante o lockdown na primavera de 2020, Isabel sugeriu que os súbditos de todas as religiões utilizassem aqueles dias de pausa forçada como uma oportunidade para meditar e rezar. A rainha representava a nação nas funções em honra dos mortos de guerra ou nas celebrações de ação de graças pelos seus jubileus, mas para ela, que ia regularmente à igreja, o culto cristão não era apenas um espetáculo público. Ao mesmo tempo, Isabel, que durante o seu reinado se encontrou com cinco Papas, reconheceu e celebrou a diversidade e a tolerância religiosa, convidando para as cerimónias reais os líderes de diferentes crenças e denominações, como no “Jubileu de Platina” na catedral londrina de St. Paul, em junho passado.

Na receção no Palácio Lambeth em 2012, para o seu “Jubileu de Diamante”, a rainha exaltou perante os líderes dos vários credos presentes no Reino Unido o papel fundamental da religião em proporcionar a milhões de pessoas não só um sistema de crenças, mas também um sentido de pertença e identidade e um precioso estímulo para a ação social de assistência aos mais necessitados. Carlos, que acaba de assumir o título de defensor fidei, comprometeu-se a seguir o exemplo da mãe, e deverá fazê-lo num contexto religioso em transformação, num reino com muitas religiões e igrejas cristãs e muitos súbditos que já não acreditam num Deus que os criou.

Alessandro Scafi