Na basílica de São Pedro a missa do Papa com os novos purpurados e com o Colégio cardinalício

A capacidade de se maravilhar é o termómetro da vida espiritual

 A capacidade de se maravilhar  é o termómetro da vida espiritual  POR-036
06 setembro 2022

A primeira concelebração eucarística dos novos cardeais com o Papa e o Colégio cardinalício foi caraterizada pela comunhão e fraternidade. Realizada na tarde de 30 de agosto, na basílica do Vaticano, e presidida pelo Pontífice, a missa concluiu os dias intensos que começaram no sábado 27 com o Consistório e continuou com a reunião dedicada à constituição apostólica «Predicate Evangelium». Uma comunidade a caminho, evidenciada também pela escolha de leituras próprias do formulário «para a Igreja». No momento da consagração, o cardeal Giovanni Battista Re, decano do Colégio cardinalício, com os novos cardeais Arthur Roche e Lazarus You Heung-sik, respetivamente prefeito do Dicastério para o culto divino e a disciplina dos sacramentos, e do Dicastério para o clero, foram ao altar da Confissão. Com o Papa, celebraram cento e sessenta cardeais, entre eles, Pietro Parolin, secretário de Estado. Com o corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé estavam os arcebispos Edgar Peña Parra, substituto da Secretaria de Estado, e Richard Gallagher, secretário para as Relações com os Estados e as Organizações internacionais, e monsenhor Joseph Murphy, chefe do Protocolo. O rito — guiado por monsenhor Diego Ravelli, mestre das Celebrações litúrgicas pontifícias — concluiu-se com o cântico da Salve Regina, entoado pelo coro da Capela Sistina.

As leituras desta celebração — próprias do formulário "pela Igreja" — apresentam-nos uma dupla admiração: a de Paulo perante o desígnio de salvação de Deus (cf. Ef 1, 3-14) e a dos discípulos, incluindo o próprio Mateus, no encontro com Jesus ressuscitado, que os envia em missão (cf. Mt 28, 16-20). Dupla admiração. Entremos nestes dois territórios, onde sopra forte o vento do Espírito Santo, para que possamos recomeçar a partir desta celebração, e desta convocação dos cardeais, mais capazes de “anunciar as maravilhas do Senhor a todos os povos” (cf. Salmo Responsorial).

O hino com que se inicia a Carta aos Efésios brota da contemplação do desígnio salvífico de Deus na história. Assim como permanecemos encantados na presença do universo que nos cerca, a admiração nos invade ao considerarmos a história da salvação. E, se tudo no cosmos se move ou fica parado de acordo com a impalpável força da gravidade, no desígnio de Deus através dos tempos tudo encontra sua origem, existência, destino e fim em Cristo.

No hino paulino esta expressão — “em Cristo” ou “n’Ele” — é o eixo que sustenta todas as fases da história da salvação: em Cristo fomos abençoados antes da criação; n’Ele fomos chamados; n’Ele fomos redimidos; n’Ele toda criatura é reconduzida à unidade, e todos, próximos e distantes, primeiros e últimos, somos destinados, graças à obra do Espírito Santo, a louvar a glória de Deus.

Perante este desígnio — como diz a liturgia — “os retos de coração devem louvá-l’O” (Responsório das Laudes, segunda-feira, semana iv ), cabe a nós: louvor, bênção, adoração e gratidão que reconhece a obra de Deus. Um louvor que vive deste encanto, e é preservado do risco de cair no hábito na medida em que se nutre do fascínio, enquanto se alimenta desta atitude fundamental do coração e do espírito: a admiração. Gostaria de perguntar a cada um de nós, a vós caros irmãos Cardeais, a vós Bispos, sacerdotes, consagrados, consagradas, povo de Deus: como está a tua admiração? Ainda sentes, por vezes, admiração? Ou te esqueceste o que significa?

Este clima de admiração é o clima que respiramos ao penetrar o território do hino paulino.

Se depois entramos no relato curto, mas denso, do Evangelho, se respondemos ao chamamento do Senhor, juntamente com os discípulos, e formos à Galileia – cada um de nós tem a sua Galileia na própria história, aquela Galileia onde sentimos o chamamento do Senhor, o olhar do Senhor que nos chamou; voltemos àquela Galileia –, se voltamos a esta Galileia, ao monte por Ele indicado, experimentamos uma nova admiração. Desta vez, não é o próprio plano de salvação que nos encanta, mas o facto — ainda mais surpreendente — de que Deus nos envolve no seu plano: é a realidade da missão dos apóstolos com Cristo ressuscitado. Com efeito, dificilmente podemos imaginar em que estado de espírito os “onze discípulos” ouviram aquelas palavras do Senhor: «Ide [...] fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-lhes tudo o que vos ordenei» (Mt 28, 19-20); e depois a promessa final que infunde esperança e consolação — hoje [na reunião da manhã] falamos da esperança —: «Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim dos tempos» (v. 20). Estas palavras do Ressuscitado ainda têm força para fazer vibrar nossos corações, dois mil anos depois. Não acaba de nos maravilhar a insondável decisão divina de evangelizar o mundo a partir daquele miserável grupo de discípulos, que — como observa o evangelista — ainda estavam em dúvida (cf. v. 17). Mas, olhando mais de perto, não é diferente a admiração que nos invade se olharmos para nós, aqui reunidos hoje, a quem o Senhor repetiu aquelas mesmas palavras, aquele mesmo envio! Cada um de nós, e nós como comunidade, como Colégio.

Irmãos, esta admiração é um caminho de salvação! Que Deus a mantenha sempre viva em nós, porque nos liberta da tentação de nos sentirmos “à altura”, de nos sentirmos “eminentíssimos”, de nutrir a falsa segurança de que hoje, na realidade, é diferente, não é mais como era no início, hoje a Igreja é grande, a Igreja é sólida, e nos situamos nos graus eminentes de sua hierarquia — nos chamam “eminências” — ... Sim, há alguma verdade nisso, mas também há tanto engano, com que o Mentiroso de sempre tenta mundanizar os seguidores de Cristo e torná-los inofensivos. Este chamamento está sob a tentação da mundanidade que, passo a passo, priva-te das forças, priva-te da esperança, impede-te de ver o olhar de Jesus que nos chama pelo nome e nos envia. Este é o verme da mundanidade.

Na verdade, a Palavra de Deus hoje desperta em nós admiração de estar na Igreja, a admiração de ser Igreja! Voltemos a esta admiração inicial, batismal! E é isso que torna atraente a comunidade dos crentes, primeiro para si e depois para todos: o duplo mistério de ser abençoado em Cristo e ir com Cristo ao mundo. E essa admiração não diminui em nós com o passar dos anos, nem diminui com o crescimento das nossas responsabilidades na Igreja. Graças a Deus não. Fortalece-se, torna-se mais profunda. Estou certo de que é assim também para vós, queridos Irmãos, que entrastes a fazer parte do Colégio Cardinalício.

E dá-nos alegria que este sentimento de gratidão nos una a todos, todos nós batizados. Devemos ser muito gratos ao Papa São Paulo vi , que soube transmitir-nos este amor pela Igreja, um amor que antes de tudo é reconhecimento, uma grata admiração pelo mistério da Igreja e pelo dom de ser admitido n’Ela, e não apenas, mas de envolver-se n’Ela, participar, e ainda mais, de ser corresponsável por Ela. No Prólogo da Encíclica Ecclesiam suam — programática, escrita durante o Concílio — o primeiro pensamento que anima o Papa é — cito — «vivemos a hora de a Igreja aprofundar a consciência de si mesma, [...] sua origem, sua missão»; e refere-se precisamente à Carta aos Efésios, ao plano providencial do «mistério escondido, desde toda a eternidade, em Deus... que se dá a conhecer... por meio da Igreja» (Ef 3, 9-10).

Este, queridos irmãos e irmãs, é um ministro da Igreja: alguém que sabe maravilhar-se com o desígnio de Deus e que ama apaixonadamente a Igreja com este espírito, pronto a servir a sua missão onde e como quiser o Espírito Santo. Assim foi Paulo Apóstolo — vemo-lo nas suas Cartas —: o entusiasmo apostólico e a solicitude pelas comunidades nele são sempre acompanhados, aliás, precedidos pela bênção cheia de grata admiração: “Bendito seja Deus...”, e cheia de encanto. E esta seja talvez a medida, o termómetro de nossa vida espiritual. Repito a pergunta, querido irmão, querida irmã — nisto estamos todos juntos —: como está a tua capacidade de admirar-te? Ou estás tão habituado, habituada, que a perdeste? Ainda és capaz de admirar-te?

Que seja assim para nós também! Admirar-se. Que seja assim para cada um de vós, queridos irmãos Cardeais! Que a intercessão da Virgem Maria, Mãe da Igreja — que guardava e mantinha todas as coisas em seu coração com admiração —, obtenha para nós esta graça.