Caminhar juntos

 Caminhar juntos  POR-034
23 agosto 2022

«La Civiltà Cattolica» publicou a 4 de agosto no seu site, assinada pelo diretor, a sinopse da conversa do Papa Francisco com um grupo de jesuítas da província canadense com os quais se encontrou na manhã de 29 de julho, último dia da peregrinação penitencial ao Canadá. O encontro teve lugar no paço arquiepiscopal do Québec.

Estamos a 29 de julho, último dia da viagem apostólica do Papa Francisco ao Canadá. Está prestes a terminar a etapa no Québec e a começar a de Iqaluit, no norte, onde está agendado o encontro com os Inuits. A conversa com os jesuítas está marcada para as 9 horas da manhã, mas o Papa entra no salão do Paço arquiepiscopal um quarto de hora antes. Estão presentes 15 jesuítas da Província do Canadá, que abrange o território país e o Haiti. Está em curso a Congregação provincial, prevista há algum tempo, e por isso o padre provincial está ausente. Após as primeiras saudações espontâneas à entrada do Papa, o padre Marc Rizzetto, da comunidade do Québec, dirige uma cordial saudação de boas-vindas a Francisco em nome dos presentes e dos mais de 200 jesuítas da Província. Em particular, menciona os 45 membros da Congregação provincial reunidos em Midland, e os irmãos idosos das enfermarias provinciais de Richelieu e Pickering.

«Neste país, que é também uma das maiores províncias da Companhia de Jesus, trabalhamos com alegria e esperança, à imagem de São Jean de Brébeuf e dos seus companheiros,1 os Santos Mártires do Canadá», introduziu. «Presentes entre os frágeis, audazes apesar da nossa fragilidade, conscientes da grandeza de cada pessoa e sempre ansiosos por compartilhar os tesouros da nossa vida interior, somos chamados a ser, ainda hoje, homens para e com os outros, peregrinos». E concluiu: «Estamos no barco com Vossa Santidade, remando juntos, apreciando o rumo que dá à Igreja e rezando por Vossa Santidade. Obrigado por contribuir para o trabalho de reconciliação com os povos indígenas».

No final, oferece ao Papa um presente: a imagem de uma borboleta, que o Papa admira, fazendo até um gracejo: «Ao ver esta foto tão bonita, vem-me uma dúvida. É tão bela que poderia ser uma cilada jesuíta. Não sei se é uma borboleta ou um morcego». E assim provoca a hilaridade dos presentes. Depois de agradecer, recorda as suas viagens anteriores ao país.

Papa Francisco : é a terceira vez que venho ao Canadá. A primeira foi nos anos 70. Devia fazer a minha terceira provação na Espanha, mas dado que já tinha sido nomeado mestre de noviços, visitei alguns noviciados. Fui à Colômbia e ao México. Na realidade, no Canadá não havia noviços, mas o padre-geral pediu-me para vir aqui visitar o padre Michel Ledrus.2 Por isso fui visitá-lo em Saint Jérôme. O padre Ledrus foi um mestre espiritual deveras grande. Esta foi para mim a primeira viagem ao Canadá. A segunda vez foi em junho de 2008, para o Congresso eucarístico internacional, que teve lugar aqui no Québec. Fiz uma reflexão sobre o tema «A Eucaristia edifica a Igreja, sacramento da salvação». Portanto, esta é a minha terceira viagem ao vosso país. Muito obrigado pela vossa hospitalidade!

Fiquei impressionado com uma palavra que disseste, Marc: «fragilidade». Muitas vezes ouvimos dizer que os jesuítas são o exército da Igreja, o exército poderoso... é tudo fantasia! Nunca devemos pensar na nossa própria autossuficiência. Creio que a verdadeira força de um jesuíta é desde o início a consciência da sua fragilidade. É o Senhor que nos dá força.

Mas agora, como no futebol, bola no meio e joguemos com as vossas perguntas!

Santo Padre, estamos num processo de reconciliação que não acabou. Estamos a caminho. Quais são as consolações desta sua peregrinação?

Há cinco anos recebi o Primeiro-Ministro do vosso país, que é também o atual. Nesse encontro ele pediu-me para fazer algo acerca dos indígenas e das escolas residenciais. Os bispos também me falaram sobre este assunto. A opinião de todos era de que se devia fazer algo, mas também que devia ser bem preparado. E assim os bispos prepararam bem, durante anos, uma ação que chegou a ponto de tornar possível esta minha visita. Passamos por uma fase em que parecia que o assunto dependia essencialmente dos bispos das áreas em questão, da plena adesão do episcopado.

O mais importante é precisamente que o episcopado concordou, aceitou o desafio e seguiu em frente. O do Canadá foi exemplo de um episcopado unido. E quando um episcopado está unido, então consegue enfrentar bem os desafios. Testemunho o que vi. Assim, quero salientar isto: se tudo corre bem, não é por causa da minha visita. Sou apenas a cereja no bolo. Foram os bispos que fizeram tudo com a sua unidade. Então é bom salientar humildemente que a parte indígena é realmente capaz de lidar bem com esta questão, é capaz de se comprometer. Em síntese, são estes os milagres que podem acontecer quando a Igreja está unida. E vi que há familiaridade entre bispos e indígenas. Claro, não vale a pena escondê-lo, há alguns que trabalham contra a cura e a reconciliação, tanto na sociedade como na Igreja. Ainda esta noite vi um pequeno grupo tradicionalista que protestava, dizendo que a Igreja é outra coisa... Mas isto faz parte da situação.

Só sei que um dos piores inimigos da unidade da Igreja e dos episcopados é a ideologia. Portanto, avancemos ao longo deste processo: a caminho. Gostei do lema da viagem, que o diz claramente: Marcher ensemble. Caminhar, mas juntos. Conheceis aquele ditado: «Se quiseres ir depressa, vai sozinho; mas se quiseres ir em segurança, vai acompanhado».

Vossa Santidade fala de peregrinação, de reconciliação, de escuta. Será que tudo isto plasma a sua visão sinodal da Igreja? É a isto que se refere?

Repara, incomoda-me que o adjetivo “sinodal” seja utilizado como se fosse a receita da última hora para a Igreja. Quando se diz “Igreja sinodal” a expressão é redundante: a Igreja ou é sinodal ou não é Igreja. Foi por isso que chegamos a um Sínodo sobre a sinodalidade, para o reafirmar. Certamente podemos dizer que a Igreja no Ocidente tinha perdido a sua tradição sinodal. A Igreja no Oriente conservou-a. Pode-se discutir as formas de viver a sinodalidade, sem dúvida. Paulo vi instituiu a Secretaria do Sínodo dos bispos, porque queria progredir neste tema. Sínodo após sínodo avançou-se, às apalpadelas, melhorando, compreendendo melhor, amadurecendo.

Em 2001 fui relator do Sínodo dos bispos em substituição do cardeal Egan que, devido à tragédia das Torres gémeas, teve que regressar à sua diocese, Nova Iorque. Recordo que as opiniões eram recolhidas e enviadas para a Secretaria geral. Assim, eu recolhia o material e depois submetia-o à votação. O secretário do Sínodo vinha ver-me, lia o material e dizia-me para eliminar isto ou aquilo. Havia coisas que ele não considerava apropriadas e censurava-as. Em síntese, havia uma pré-seleção do material. Não se entendia o que é um Sínodo. No final do último Sínodo, na sondagem sobre os temas a tratar no próximo, os dois primeiros foram o sacerdócio e a sinodalidade. Compreendi que devíamos refletir sobre a teologia da sinodalidade para dar um passo decisivo em frente.

Parece-me fundamental reiterar, como faço frequentemente, que o sínodo não é um encontro político nem um comité para decisões parlamentares. É a expressão da Igreja cujo protagonista é o Espírito Santo. Se não houver Espírito Santo, também não haverá sínodo. Pode haver democracia, parlamento, debate, mas não «sínodo». Se quiserdes ler o melhor livro de teologia sobre o sínodo, então voltai a ler os Atos dos Apóstolos. Ali é possível ver claramente que o protagonista é o Espírito Santo. É isto que se experimenta no sínodo: a ação do Espírito. Verifica-se a dinâmica do discernimento. Por exemplo, experimenta-se que às vezes se vai depressa com uma ideia, um debate, mas depois acontece algo que volta a unir as ideias, que as harmoniza de modo criativo. Por isso, gosto de deixar claro que o sínodo não é um voto, um confronto dialético de uma maioria e de uma minoria. Corre-se também o risco de perder o quadro geral, o sentido das coisas.

Isto aconteceu com a redução dos temas sinodais a uma questão específica. Por exemplo, o sínodo sobre a família. Afirmou-se que fora organizado para dar a comunhão aos divorciados recasados. Mas na Exortação pós-sinodal sobre este tema só há uma nota, e o resto são reflexões sobre o tema da família, como por exemplo sobre o catecumenato familiar. Portanto, há muita riqueza: não se pode concentrar no âmbito de uma única questão. Repito: se a Igreja for assim, então será sinodal. É assim desde o início!

Os comentários dos jornalistas sobre a sua viagem e os seus discursos parecem-me essencialmente muito positivos. No entanto, uma pergunta que os jornalistas fizeram foi esta: por que o Papa pede perdão em nome dos cristãos, mas não da Igreja como instituição? O que poderia responder?

Sim, ouvi dizer. Vê, realmente não compreendo esta dificuldade. Não falo em meu nome nem no nome de uma ideologia ou de um partido. Sou bispo e falo em nome da Igreja, não no meu nome. Falo em nome da Igreja, até quando não o explicito. Com efeito, não devo torna-lo explícito, pois é óbvio que é assim. Diria ao contrário: devo tornar explícito que é meu pensamento pessoal, quando não falo em nome da Igreja. Então sim, devo dizê-lo.

Trabalho nos meios de comunicação da igreja. São importantes, neste campo, a colaboração, o trabalho em rede, até com os bispos?

Claro! Acima de tudo, é importante que se alargue o diálogo. O diálogo nunca é supérfluo entre os profissionais da comunicação social e certamente também com os bispos. O intercâmbio, o confronto, o diálogo são fundamentais para a comunicação.

A propósito dos meios de comunicação, vem-me à mente algo. Vi que algumas pessoas se perguntavam por que, durante esta viagem, não tive um encontro específico com quantos foram vítimas de abusos sexuais. Para vos dizer a verdade, recebi várias cartas sobre isto antes da viagem. Respondi a estas cartas, explicando que havia dois tipos de problema. O primeiro foi de tempo, de agenda. O segundo, importante para mim, era que eu queria trazer à tona um tema forte nesta viagem, o dos povos indígenas, para que ficasse muito claro. Muitas pessoas responderam-me dizendo que compreendiam que não se trata de modo algum de uma exclusão. Noutros contextos, como a visita à Irlanda, tais encontros foram possíveis e o tema sobressaiu claramente.

Por falar em abuso. Ocupo-me de direito canónico. Vossa Santidade fez muitas alterações. Alguns chamam-lhe o Papa das mudanças. Também fez alterações a nível penal, precisamente no que diz respeito aso abusos, e foram benéficas para a Igreja. Gostaria de saber como vê a evolução da situação até à presente data e se prevê outras mudanças no futuro.

Sim, é verdade! Constatou-se que era preciso fazer alterações, e elas foram feitas. O direito não pode ser conservado no frigorifico. O direito acompanha a vida, e a vida continua. Como a moral, que se aperfeiçoa. Antes a escravatura era lícita, hoje já não é. Hoje a Igreja diz que até a posse de armas atómicas, não só a sua utilização, é imoral. Antes não se dizia isto. A vida moral progride ao longo da mesma linha orgânica. É a linha de S. Vincent de Lérins: ita étiam christiánae religiónis dogma sequátur tem decet proféctuum leges, ut annis scílicet consolidétur, dilatétur témpore, sublimétur aetáte («Até o dogma da religião cristã deve seguir estas leis. Progride, consolida-se ao longo dos anos, desenvolve-se com o tempo, aprofunda-se com a idade»). S. Vincent de Lérins comparava o desenvolvimento biológico do homem com a transmissão, de uma era para a outra, do depositum fidei, que cresce e se consolida com a passagem do tempo. A compreensão do homem muda com o tempo, e a consciência do homem aprofunda-se.

A visão da doutrina da Igreja como um monólito a defender sem matizes está errada. Por isso, é importante respeitar a tradição, a tradição autêntica. Certa vez alguém disse que a tradição é a memória viva dos crentes. O tradicionalismo, por outro lado, é a vida morta dos nossos crentes. A tradição é a vida daqueles que nos precederam e isto continua. O tradicionalismo é a sua memória morta. Em síntese, da raiz ao fruto: é assim que se faz. Devemos ter como referência a origem, não uma experiência histórica particular como modelo perpétuo, como se tivéssemos que parar aqui. O «ontem fazia-se assim» torna-se «sempre se fez assim». Mas isto é paganismo do pensamento! E o que eu disse é válido também para as questões jurídicas, o direito.

Sou um jesuíta haitiano. Vivemos um processo de reconciliação nacional, mas perde-se a esperança. Considerando o que vivemos no Canadá, o que podemos dizer à Igreja haitiana para ter esperança? Inclusive como jesuítas, o que podemos fazer?

Atualmente o Haiti atravessa uma situação crítica. Vive um calvário, como se não conseguisse encontrar o caminho certo a percorrer. Não me parece que as organizações internacionais compreenderam como agir. Sinto-me muito próximo do Haiti, também porque sou constantemente atualizado sobre a situação por alguns sacerdotes meus amigos. Receio que se caia num poço de desespero: tenho medo disto. Como podemos ajudar o Haiti a crescer na esperança? Se há algo que podemos fazer como Igreja, é certamente a oração, a penitência... Mas há que perguntar: como podemos ajudar? O povo do Haiti é nobre. Pois bem, digo-te simplesmente que estou ciente do que acontece.

Gostaria de lhe fazer uma pergunta sobre a liturgia e a unidade da Igreja. Sou estudante de liturgia e quero saber quão importante é este estudo para a formação. Refiro-me também ao nosso trabalho pastoral como jesuítas.

Quando existe um conflito, a liturgia é sempre maltratada. Na América Latina, há trinta anos, verificaram-se deformações litúrgicas monstruosas. Depois caiu-se no lado oposto, com a embriaguez “retrocedista” do antigo. Criou-se uma divisão na Igreja. A minha ação neste campo visava seguir a linha adotada por João Paulo ii e por Bento xvi , que tinha permitido o rito antigo, pedindo uma averiguação posterior. A verificação mais recente deixou claro que era necessário disciplinar esta matéria, e sobretudo evitar que se tratasse, digamos assim, de uma “moda” e que, ao contrário, permanecesse uma questão pastoral. Depois virão os estudos, que aperfeiçoarão a reflexão sobre este tema, que é importante: a liturgia é o louvor público do povo de Deus!

***

Já passou uma hora de conversa e o responsável pela organização da viagem apostólica assinala discretamente que é preciso ir embora. Assim, o Papa agradece pelo encontro, pelo presente recebido e pela proximidade que sente da parte dos jesuítas. Depois, convida todos a recitar juntos uma Ave-Maria, no final da qual concede a bênção. Em seguida, propõe que se tire uma fotografia todos juntos.

1 Jean de Brébeuf (1593-1649) foi um sacerdote jesuíta francês, um dos oito mártires canadenses-americanos proclamados santos pelo Papa Pio xi em 1930. Em 1625, partiu para o Canadá com outros missionários da Companhia de Jesus. No ano seguinte, estabeleceu-se no território dos Urons, com os quais viveu durante muito tempo. Foi assassinado por uma tribo de iroqueses em 1649.

2 O padre Michel Ledrus (Gossellies, Bélgica, 1899 — Roma, 1983) ensinou Missiologia em Leuven e Filosofia indiana na Pontifícia Universidade Gregoriana. Em Calcutá publicou o mensário «The New Review». Em 1939, regressou a Roma, onde ensinou Teologia missionária e Teologia espiritual na Gregoriana. Foi «insigne mestre de doutrina e de vida», como afirmou o cardeal Carlo Maria Martini.

Antonio Spadaro, s.j.