Ainda hoje a colonização cria desigualdade e injustiça

 Ainda hoje a colonização  cria desigualdade e injustiça  POR-033
09 agosto 2022

Durante o voo de regresso do Canadá, o Papa, como faz habitualmente, respondeu às perguntas de alguns jornalistas do séquito. A entrevista foi apresentada pelo diretor da sala de Imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni.

Boa noite a todos! Santidade, foram dias de peregrinação e penitência em várias etapas com muitos encontros, gestos — este último, comovedor, em Iqaluit. Estes dias — como Vossa Santidade disse — não acabam indo embora desta terra, e também neste sentido eis-nos neste encontro com os jornalistas. Mas talvez queira dizer-nos algumas palavras antes de o começar...

Boa noite e obrigado pelo acompanhamento, pelo vosso trabalho aqui. Sei que trabalhastes arduamente, disseram-me como vos movestes! E obrigado também pela companhia. Obrigado!

[Jessica Ka’nhehsíio Deer (Cbc Radio — Canada Indigenous)] Como descendente de um sobrevivente de uma escola residencial, sei que os sobreviventes e as suas famílias querem ver ações concretas após o seu pedido de perdão, incluindo a rejeição da “doutrina da descoberta”. Considerando que ela ainda está inserida na Constituição e nos sistemas legais do Canadá e dos Estados Unidos, onde os povos indígenas continuam a ser defraudados das suas terras e privados do poder, não foi uma oportunidade perdida para fazer uma declaração neste sentido, durante a sua viagem ao Canadá?

Sobre esta última questão, não compreendo o problema...

Consiste no facto de que os povos indígenas ainda hoje são privados da terra e do poder, em virtude daquelas bulas papais e do conceito da “doutrina da descoberta”. Quando falo com os indígenas, eles dizem que quando as pessoas vieram colonizar as Américas, houve esta “doutrina da descoberta” que, de certa forma, deu poder à ideia de que os povos indígenas dos novos países eram “inferiores” aos católicos. Foi assim que o Canadá e os Estados Unidos se tornaram “países”.

Obrigado pela pergunta. Acho que este é um problema com todos os colonialismos. Ainda hoje: as colonizações ideológicas atuais seguem o mesmo esquema. Quem não percorre o seu caminho é inferior. Mas quero ir mais longe nesta questão. Não só eram considerados inferiores: alguns teólogos um pouco loucos perguntavam-se se tinham uma alma. Quando João Paulo ii foi à África, à porta onde eram embarcados os escravos [Ilha de Gorée, a porta sem retorno], deu um sinal para que compreendêssemos o drama, o drama criminoso: aquelas pessoas eram atiradas para dentro do navio, em condições desastrosas, e depois tornavam-se escravos na América. É verdade que havia vozes que falavam claramente, como por exemplo Bartolomeu de las Casas, Pedro Claver, mas eram a minoria. A consciência da igualdade humana veio lentamente. E digo consciência, porque no subconsciente ainda existe algo... Temos sempre — permito-me dizer — uma certa atitude colonialista de reduzir a cultura deles à nossa. É algo que nos vem do nosso estilo de vida desenvolvido, e às vezes perdemos valores que eles têm.

Por exemplo: os povos indígenas têm um grande valor, que é a harmonia com a Criação, e pelo menos alguns que conheço o expressam com a palavra bem viver [bien vivir]. Esta expressão não significa, como nós ocidentais a entendemos, passar bem ou viver a “dolce vita”, não! Bem viver significa preservar a harmonia. E para mim este é o grande valor dos povos originais. Harmonia. Estamos habituados a reduzir tudo à cabeça: ao contrário, os povos originais – falo em geral — sabem expressar-se com três linguagens: da cabeça, do coração e das mãos. Mas todas juntas e eles sabem falar esta linguagem com a criação.

Depois, este progressismo acelerado do desenvolvimento um pouco exagerado, neurótico, que temos, não é verdade? Não falo contra o desenvolvimento: o desenvolvimento é bom. Mas não é bom com a ansiedade do desenvolvimento, desenvolvimento, desenvolvimento... Reparai, uma das coisas que a nossa civilização comercial excessivamente desenvolvida perdeu foi a capacidade de poesia: os povos indígenas têm essa capacidade poética. Não idealizo.

Além disso, esta doutrina da colonização: é verdade, ela é má, é injusta. É usada ainda hoje, talvez com luvas de seda, mas é usada hoje em dia. Por exemplo, alguns bispos de certos países disseram-me: “Quando o nosso país pede crédito a uma organização internacional, colocam-nos condições, inclusive legislativas, colonialistas. Para te conceder um crédito, fazem-te mudar um pouco o teu estilo de vida”. Voltando à nossa colonização da América, dos ingleses, dos franceses, dos espanhóis e dos portugueses: são quatro [potências coloniais] para as quais sempre houve este perigo, aliás, esta mentalidade, “somos superiores e esses povos indígenas não contam”, e isto é grave! É por isso que devemos trabalhar sobre o que dizes: voltar atrás e purificar, por assim dizer, o mal feito, conscientes de que ainda hoje existe o mesmo colonialismo. Pensemos, por exemplo, num caso, que é universal e que me permito dizê-lo: penso no caso dos Rohingyas, em Myanmar: não têm direito à cidadania, são de nível inferior. Ainda hoje. Thank you very much!

[Brittany Hobson (The Canadian Press)] Boa noite, Papa Francisco! O meu nome é Brittany Hobson, da The Canadian Press. Vossa Santidade diz frequentemente que é necessário falar em termos claros, honestos, diretos e com parrésia. Sabe que a Comissão para a Verdade e a Reconciliação, no Canadá, descreveu o sistema das escolas residenciais como um “genocídio cultural”, e esta expressão foi corrigida simplesmente em “genocídio”. As pessoas que ouviram as suas palavras de perdão nesta semana lamentaram que o termo genocídio não foi utilizado. Utilizaria este termo e reconheceria que os membros da Igreja participaram neste genocídio?

É verdade, não usei a palavra porque não me veio à mente, mas descrevi o genocídio e pedi desculpa, pedi perdão por este trabalho que é genocida. Por exemplo, condenei também isto: tirar as crianças, mudar a cultura, mudar as mentalidades, mudar as tradições, mudar uma raça, por assim dizer, uma cultura inteira. Sim, é uma palavra técnica — genocídio — mas não a utilizei porque não me veio à mente. Mas descrevi que era verdade, sim, foi genocídio, sim, não te preocupes. Podes dizer que eu disse que sim, que foi genocídio. Thank you!

[Maria Valentina Alazraki Crastich (Televisa)] Papa Francisco, boa noite! Assumimos que esta viagem ao Canadá foi também um teste, uma provação para a sua saúde, pelo que esta manhã descreveu como “limitações físicas”. Então queríamos saber: depois desta semana, o que nos pode dizer sobre as suas viagens futuras? Se quer continuar a viajar assim? Se há alguma viagem que não pode fazer devido a estas limitações, ou se talvez depois de uma semana pensa que a operação ao joelho possa melhorar a situação e viajar... como antes?

Obrigado, não sei! Acho que não posso ir ao mesmo ritmo de antes. Acho que na minha idade e com esta limitação me devo poupar um pouco para poder servir a Igreja ou, ao contrário, pensar na possibilidade de me retirar. Isto com toda a honestidade. Não é uma catástrofe, pode-se mudar o Papa, não há problema! Mas penso que devo limitar-me um pouco com estes esforços. A cirurgia ao joelho não funciona, não funciona no meu caso. Os técnicos dizem que sim, mas há todo o problema da anestesia: há dez meses estive sob anestesia mais de seis horas e ainda há vestígios. Não se brinca com a anestesia. Por isso, julga-se que não é inteiramente conveniente. Mas vou tentar continuar a viajar e estar perto das pessoas, pois considero que estar perto é um modo de servir. Não posso dizer mais do que isto. Esperemos... Ao México não está programado... ainda!

E o Cazaquistão? E se for ao Cazaquistão, não deveria ir também à Ucrânia, talvez?

Eu disse que gostaria de ir à Ucrânia. Vamos ver agora o que encontro quando voltar para casa. Neste momento, gostaria de ir ao Cazaquistão: é uma viagem tranquila, sem muito movimento, um congresso de religiões. Mas, por enquanto, tudo fica assim. Também tenho que ir ao Sudão do Sul, antes do Congo, pois é uma viagem com o Arcebispo de Canterbury e o Bispo da Igreja da Escócia, nós três juntos, como fizemos o retiro há dois anos. Depois, o Congo. Mas será no próximo ano, porque há a estação das chuvas... Vejamos. Tenho toda a boa vontade, mas vamos ver o que diz a perna.

[Caroline Pigozzi] Boa noite Santo Padre, esta manhã Vossa Santidade encontrou-se no arcebispado, como sempre que vai a um país, com os membros locais da Companhia de Jesus, a sua família. Há nove anos, regressando da jmj no Brasil, perguntei-lhe, a 28 de julho de 2013, se ainda se sentia jesuíta. A resposta foi afirmativa. Em 4 de dezembro explicou, após ter visto os Jesuítas da Grécia em Atenas: «Quando se inicia um processo, é preciso deixá-lo desenvolver-se, deixar crescer uma obra e depois retirar-se. Cada jesuíta deve fazer isto, nenhuma obra lhe pertence porque é do Senhor». Santo Padre, poderia esta declaração ser também um dia válida para um Papa jesuíta?

Acho que sim, claro!

Isso significa que poderia retirar-se como os jesuítas?

Sim, sim, é uma vocação.

Ser Papa ou ser jesuíta?

Que o Senhor o diga. O jesuíta procura — procura, nem sempre, não pode, mas procura — cumprir a vontade do Senhor, e também o Papa jesuíta deve fazer o mesmo. Quando o Senhor fala, se o Senhor te diz “vai em frente”, vais em frente; se o Senhor te diz “vai para o canto”, tu vais para o canto. Mas é o Senhor que...

Mas o que diz significa que nessa altura espera a morte...

Mas todos esperamos a morte!

Não, quero dizer, não se retira antes....

O que o Senhor disser. O Senhor pode dizer: “Renuncia!”. É o Senhor que manda. Uma coisa sobre Santo Inácio, isto é importante: quando alguém estava cansado, doente, dizia a Santo Inácio: “Não posso recitar a oração”, e ele dispensava a oração. Mas nunca dispensou o exame de consciência: duas vezes por dia, para ver o que aconteceu... Não é uma questão de pecados ou não, não: “Que espírito me moveu hoje?”. A nossa vocação dizia: ver o que aconteceu hoje. Se eu — é uma hipótese — vejo que o Senhor me diz algo, uma inspiração disto ou daquilo, devo discernir para ver o que o Senhor me pede. E pode ser que o Senhor queira mandar-me para um canto, é uma sua decisão, é Ele que manda. Creio que este é o modo de vida religioso de um jesuíta: permanecer em discernimento espiritual para tomar decisões, optar por formas de trabalho e também escolher compromissos. O discernimento é fundamental para a vocação do jesuíta. Isto é importante. Santo Inácio foi muito firme nisto, porque foi a sua própria experiência de discernimento espiritual que o levou à conversão. E os exercícios espirituais são realmente uma escola de discernimento. Assim, o jesuíta deve, por vocação, ser um homem de discernimento, de discernimento das situações, de discernimento da própria consciência, de discernimento das decisões a tomar. E para isso deve estar aberto a tudo o que o Senhor lhe pedir. Isto é um pouco a nossa espiritualidade.

Mas agora sente-se mais Papa ou mais jesuíta?

Nunca fiz essa consideração! Nunca a fiz! Sinto-me servo do Senhor, com o hábito jesuíta, porque não existe uma espiritualidade papal, não existe. Cada Papa realiza a própria espiritualidade. Pensa em São João Paulo ii , com aquela bonita espiritualidade mariana que tinha, já a tinha antes e depois como Papa. Pensa em tantos Papas que levaram a cabo a própria espiritualidade. O papado não é uma espiritualidade, é um trabalho, uma função, um serviço, mas é cada um que o leva em frente com a própria espiritualidade, com as suas graças, com a sua fidelidade e também com os seus pecados. Mas não existe uma espiritualidade papal, por isso não há comparação entre a espiritualidade jesuíta e a espiritualidade papal porque esta última não existe. Compreendes? Obrigado!

[Severina Elisabeth Bartonitschek Cic] Boa noite! Santo Padre, ontem falou também da fraternidade da Igreja, de uma comunidade que sabe ouvir e entrar em diálogo, que promove uma boa qualidade de relações. Mas há alguns dias houve a declaração da Santa Sé sobre o caminho sinodal da Alemanha, sem assinatura. Acha que esta forma de comunicar contribui, ou é um obstáculo para o diálogo?

Antes de mais nada, esse comunicado foi feito pela Secretaria de Estado, foi um erro não ter especificado em baixo... Penso que dizia “Comunicado da Secretaria de Estado”, mas não tenho a certeza. Contudo, foi um erro não assinar como Secretaria de Estado, um erro de gabinete, não de má vontade. Isto é mais ou menos a última coisa. E sobre o Sogenannter Synodaler Weg, o percurso sinodal, escrevi uma carta — fi-lo sozinho, um mês com oração, reflexão, consultas — e disse tudo o que devia dizer sobre o Caminho sinodal, mais do que isso não vou dizer. É o Magistério papal sobre o Caminho sinodal, aquela carta que escrevi há dois [três] anos. Não interpelei a Cúria, porque não fiz consultas, nada! Fi-lo como o meu próprio caminho, como pastor de uma Igreja que procura um caminho, como irmão, pai, crente, fi-lo desta forma. E esta é a minha mensagem. Sei que não é fácil, mas está tudo aí, nessa carta. Obrigado!

[Ignazio Ingrao (Rai-Tg1)] A Itália atravessa um período difícil, que é também preocupante a nível internacional. Há a crise da economia, a pandemia, a guerra e agora também nos encontramos sem um governo. Vossa Santidade é o primaz da Itália: no telegrama ao presidente Mattarella por ocasião do seu aniversário, falou de um país marcado por muitas dificuldades e chamado a fazer escolhas cruciais. Como viveu a queda de Draghi?

Em primeiro lugar, não quero intrometer-me na política interna italiana. Depois, ninguém pode dizer que o Presidente Draghi não era um homem de alta reputação internacional. Foi Presidente do Banco Central Europeu, uma boa carreira, digamos assim. E então só fiz uma pergunta a um dos meus colaboradores: “Diga-me, quantos governos teve a Itália neste século?”. Ele disse-me: “20”. Essa é a minha resposta.

Mas que apelo faz às forças políticas, em vista destas difíceis eleições?

Responsabilidade. Responsabilidade cívica!

[Claire Giangravè (Religion News Service)] Olá, Santo Padre, boa noite! Muitos católicos, mas também numerosos teólogos, acreditam que é necessário um desenvolvimento na doutrina da Igreja relativamente aos contracetivos. Parece que até o seu predecessor, João Paulo i, pensava que talvez fosse necessário reconsiderar uma proibição total. O que pensa a este respeito, em síntese: está aberto a uma reavaliação neste sentido? Ou existe a possibilidade de um casal considerar os contracetivos?

Compreendo, isto é muito oportuno. Sabei que o dogma, a moralidade, percorre sempre um caminho de desenvolvimento, mas de desenvolvimento no mesmo sentido. Para usar uma coisa que é clara, acho que já o disse outras vezes aqui, para o desenvolvimento de uma questão moral, um desenvolvimento teológico, digamos, ou dogmático, há uma regra que é muito clara e esclarecedora, já o disse outras vezes: o que Vincent de Lérins fez, no século v , ele era francês. Ele dizia que a verdadeira doutrina, para avançar, para se desenvolver, não deve ser silenciosa, ela desenvolve-se ut annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate. Ou seja, consolida-se com o tempo, dilata-se e torna-se mais firme, mas progride sempre. É por isso que o dever dos teólogos é a investigação, a reflexão teológica. Não se pode fazer teologia com um “não” à frente. Então será o Magistério a dizer: “Não, foste longe demais, volta!”. Mas o desenvolvimento teológico deve ser aberto, os teólogos estão lá para isso. E o Magistério deve ajudar a compreender os limites. Sobre o problema dos contracetivos, sei que saiu uma publicação, sobre esta e outras questões matrimoniais. São os trabalhos de um congresso e no congresso há as “ponências”, depois discutem entre eles e fazem propostas. Devemos ser claros: aqueles que fizeram este congresso cumpriram o seu dever, porque procuraram avançar na doutrina, mas num sentido eclesial, não fora, como disse com aquela regra de Vincent de Lérins. Então o Magistério dirá: “Sim, é bom” – “Não, não é bom”.

Mas muitas coisas são postas em causa. Pensemos, por exemplo, nas armas atómicas: hoje declarei oficialmente que a utilização e a posse de armas atómicas são imorais. Pensemos na pena de morte: primeiro a pena de morte, sim... Agora posso dizer que estamos perto da imoralidade, pois a consciência moral se desenvolveu bem...

Para ser claro: quando o dogma ou a moral se desenvolve, está bem, mas nessa direção, com as três regras de Vincent de Lérins. Penso que isto é muito claro: uma Igreja que não desenvolve o seu pensamento em sentido eclesial é uma Igreja que retrocede. E hoje em dia este é o problema, tantos que se dizem “tradicionais”. Não, não são tradicionais, são “retrocedistas”, andam para trás, sem raízes. Sempre se fez assim, no século passado fez-se assim. E o “retrocedismo” é um pecado, porque não vai para a frente com a Igreja. Ao contrário, a tradição — penso que eu o disse num dos discursos — a tradição é a fé viva dos mortos. Ao contrário, para estes “retrocedistas” que se autodenominam tradicionalistas, é a fé morta dos vivos. A tradição é precisamente a raiz da inspiração para avançar na Igreja. E isto é sempre vertical. O “retrocedismo” vai para trás, está sempre fechado. É importante compreender bem o papel da tradição, que está sempre aberta, como as raízes da árvore, e a árvore cresce assim... Um músico tinha uma frase muito bonita, disse Gustav Mahler: a tradição neste sentido é a garantia do futuro, é a garantia, não é uma peça de museu. Se conceber a tradição como algo fechado, não é tradição cristã. É sempre a seiva das raízes que o leva em frente, para a frente... É por isso que, pelo que dizes, é preciso pensar e levar para a frente a fé e a moral, e desde que se vá rumo às raízes, à seiva, está bem. Com estas três regras de Vincent de Lérins que mencionei.

[Eva Fernandez (Cadena Cope)] Santo Padre, no final de agosto teremos um Consistório. Ultimamente muitas pessoas perguntaram-lhe se já pensou em renunciar, não se preocupe, desta vez não lho perguntaremos, mas temos uma certa curiosidade, Santo Padre: já pensou nas caraterísticas que gostaria que o seu sucessor tivesse?

Esta é uma obra do Espírito Santo, sabes? Eu não me atreveria a pensar... O Espírito Santo pode fazer isto melhor do que eu, é melhor do que todos nós. Porque inspira as decisões do Papa, inspira sempre. Porque está vivo na Igreja, não se pode conceber a Igreja sem o Espírito Santo, é Ele que faz as diferenças, e também o barulho — pensa na manhã de Pentecostes — mas depois faz a harmonia. É importante falar de “harmonia” em vez de “unidade”. Unidade, mas harmonia, não como algo fixo. O Espírito Santo dá-lhe uma harmonia progressiva, que prossegue. Gosto do que São Basílio diz sobre o Espírito Santo: “Ipse armonia est”, “Ele é harmonia”. Ele é harmonia porque primeiro faz barulho com a diferença dos carismas. Deixemos esta obra ao Espírito Santo. Sobre a minha renúncia, gostaria de vos agradecer por um bonito artigo que uma de vós escreveu, sobre todos os sinais que poderiam levar a uma demissão e todos os sinais que se veem. Este é um bom trabalho jornalístico, um jornalista que dá uma opinião no final. Ver também os sinais, não apenas as declarações; aquela linguagem subterrânea que também dá sinais. Sabendo ler os sinais ou pelo menos fazer um esforço para interpretar que pode ser isto ou aquilo, este é um bom trabalho vosso e agradeço-vos muito.

[Phoebe Natanson (Abc News)] Desculpe, Santo Padre, sei que já ouviu muitas perguntas como esta, mas gostaria de lhe perguntar, neste momento, com as dificuldades de saúde e o resto, se já lhe veio à mente que talvez seja o momento de se retirar. Teve algum problema que o fez pensar nisso? Houve momentos difíceis que o fizeram pensar nisso?

A porta está aberta, é uma das opções normais, mas até hoje não bati a essa porta, não disse: “Vou entrar nesta sala”. Ainda não me quis pensar nessa possibilidade. Mas talvez isso não signifique que depois de amanhã eu não comece a pensar nisso, certo? Mas neste momento, sinceramente, não o faço. Esta viagem foi também um pouco um teste... É verdade que não se pode fazer viagens nestas condições, talvez seja preciso mudar um pouco o estilo, diminuir, pagar as dívidas das viagens que ainda devem ser feitas, reordenar... Mas o Senhor o dirá. A porta está aberta, isso é verdade.

E depois, antes de me despedir, gostaria de falar sobre algo que é muito importante para mim. A viagem aqui no Canadá esteve muito ligada à figura de Santa Ana. Disse algumas coisas sobre as mulheres, mas especialmente sobre as mulheres idosas, mães e avós. E sublinhei algo claro: a fé deve ser transmitida “em dialeto”, e o dialeto — disse-o claramente — materno, o dialeto das avós. Recebemos a fé dessa forma dialetal feminina, e isto é muito importante: o papel da mulher na transmissão da fé e no desenvolvimento da fé. É a mãe ou a avó que ensina a rezar, é a mãe ou a avó que explica as primeiras coisas que a criança não compreende sobre a fé. E atrevo-me a dizer que esta transmissão “dialetal” da fé é feminina. Alguém me pode dizer: mas teologicamente, como o explica? Porque, direi, quem transmite a fé é a Igreja e a Igreja é mulher, a Igreja é esposa; a Igreja não é homem, a Igreja é uma mulher. E devemos entrar neste pensamento da Igreja como mulher, a Igreja como mãe, que é mais importante do que qualquer fantasia ministerial machista ou qualquer poder machista. A Igreja Mater, a maternidade da Igreja. A figura da Mãe do Senhor. Neste sentido, convém enfatizar a importância na transmissão da fé deste dialeto materno. Descobri isto lendo, por exemplo, o martírio dos Macabeus (cf. 2 Mac 7): duas ou três vezes diz que a mãe lhes deu coragem no dialeto materno. A fé deve ser transmitida em dialeto. E esse dialeto é falado pelas mulheres. Esta é a grande alegria da Igreja, porque a Igreja é mulher, a Igreja é esposa. Queria dizer isto claramente, tendo em mente Santa Ana. Obrigado, obrigado pela paciência. Obrigado por me terdes ouvido, descansai e boa viagem. Obrigado!