Francisco e a questão decisiva da fraternidade

Francisco e a questão decisiva da fraternidade

12 julho 2022

Há acontecimentos neste pontificado, escolhas feitas por Francisco que, com o passar dos anos, assumem uma força cada vez maior e uma dimensão que, nalguns casos, não é exagerado definir profética. A 8 de julho de há nove anos, alguns meses após o início do seu ministério petrino, realizou a sua primeira viagem apostólica, indo a Lampedusa. Uma viagem que foi também “uma mensagem” porque naquelas poucas horas passadas na ilha-símbolo do drama dos migrantes no Mediterrâneo, Francisco testemunhou com gestos e sinais o que entendia por “Igreja em saída”. E mostrou porque é necessário começar, concreta e não metaforicamente, a partir das “periferias existenciais”, se quisermos construir um mundo mais justo e solidário, uma humanidade reconciliada consigo mesma.

Daquela visita ainda conservamos a indelével memória de algumas imagens: o Papa celebrando a Missa num altar feito com os barcos dos migrantes, a coroa de flores lançada ao mar, o abraço com os jovens que sobreviveram àquelas viagens chamadas da esperança, mas que tantas vezes infelizmente se transformam em viagens do desespero. Assim, o coração da visita era claramente a difícil situação dos migrantes. Contudo, naquela ocasião Francisco pronunciou uma homilia que alargava o olhar, a partir daquela ilha e daquilo que ela significava naquele momento. Uma homilia que hoje faz efeito reler (e ainda mais ouvir de novo) à luz do que está a acontecer nos últimos meses na Ucrânia sob ataque russo, bem como em cada ângulo mais ou menos remoto da Terra onde as guerras se desencadeiam — “libertam das correntes” — aquele «espírito cainista de matar, em vez do espírito de paz».

Naquela homilia, o Papa ofereceu a sua meditação pessoal sobre o diálogo que o Senhor tem com Caim imediatamente após o assassinato do irmão Abel. Deus faz a pergunta que hoje e sempre deve ressoar como uma admoestação para cada um de nós: «Caim, onde está o teu irmão?». Francisco repete seis vezes esta pergunta lancinante: «Onde está o teu irmão?». O teu irmão migrante, o teu irmão prostrado pela pobreza, o teu irmão esmagado pela guerra. Nos anos sucessivos àquela viagem, o Pontífice regressou inúmeras vezes à antinomia decisiva fraternidade-fratricídio. A 13 de fevereiro de 2017, numa missa na Casa Santa Marta, falando mais uma vez sobre Caim e Abel, proferiu fortes palavras de condenação para quantos decidem que «um pedaço de terra é mais importante do que o vínculo da fraternidade». Francisco advertia os poderosos da terra que ousam dizer: «A mim interessa este pedaço de terra, aqueloutro, se a bomba cair e matar duzentas crianças, a culpa não é minha: a culpa é da bomba».

O Papa da Fratelli tutti, da Declaração de Abu Dhabi sobre a fraternidade, o bispo de Roma que assumiu o nome do frate Francisco, adverte que precisamente esta luta entre a fraternidade e o fratricídio é a questão das questões do nosso tempo. À medida que os anos passam, vê tragicamente definir-se o esboço sombrio do que define «Terceira Guerra Mundial aos pedaços». E que mais é isto a não ser também este “Fratricídio Mundial aos pedações”, porque cada guerra traz em si aquela raiz maligna que leva Caim a matar o irmão e depois a responder desdenhosamente a Deus que o interpela: «Sou porventura o guarda do meu irmão?».

Na Statio Orbis de 27 de março de 2020, na Praça de São Pedro vazia, o Papa afirmou que, com a tempestade da pandemia, «ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos». Causa impressão justapor estas palavras com aquelas, amargas e angustiadas, que pronunciou na Urbi et Orbi deste ano, na Páscoa. «Era o momento de sairmos do túnel juntos, de mãos dadas — frisou referindo-se à Covid-19 — juntando as forças e os recursos... Em vez disso, estamos a demostrar que ainda não existe em nós o Espírito de Jesus, mas existe ainda em nós o espírito de Caim, que vê Abel não como um irmão, mas como um rival, e pensa como há de eliminá-lo».

Francisco afirmou repetidamente que de uma crise saímos melhores ou piores, nunca iguais. Hoje, a humanidade está a confrontar-se com uma das crises mais profundas e multifacetadas nunca enfrentada. Por conseguinte, para sairmos melhores, devemos inverter a rota, exorta-nos o Papa, afastando-nos do poderoso íman de Caim e orientando a bússola da nossa vida de modo decidido rumo à estrela polar da fraternidade.

Alessandro Gisotti