A viagem em África do cardeal Parolin

A viagem em África do cardeal Parolin

 A viagem em África do cardeal Parolin  POR-027
05 julho 2022

Quando as religiosas o encontraram à sua porta numa manhã de Sábado Santo há muitos anos, o corpo de Guy estava coberto de moscas e feridas. Tinha sido deixado na rua pelos seus pais que o acusaram de bruxaria após a morte dos seus dois irmãos no espaço de poucos dias. Espancado até sangrar, derramaram água quente sobre ele; atordoado, a família abandonou-o no passeio. As irmãs do Sagrado Coração de Jesus trataram-no num centro médico. Hoje Guy ensina francês aos jovens e pede orações para a conversão da sua família. Ontem à tarde sorriu ao cardeal Pietro Parolin que o encontrou na Nunciatura apostólica em Kinshasa, com uma representação de congregações religiosas locais e dos seus assistidos.

Após a missa matutina na esplanada do Palais du peuple, o secretário de Estado quis dedicar à humanidade mais ferida o último encontro da sua etapa na República Democrática do Congo. Idosos, crianças, mães solteiras com filhos, adolescentes, todos unidos pelo denominador comum do sofrimento. Aquele que assume a forma de rejeição e estigma social, de doença e incapacidade intelectual, de abandono até dos próprios membros da família. O sofrimento curado às vezes apenas com amor e sem cuidados médicos específicos — sem os recursos económicos para o apoiar — por congregações religiosas e realidades eclesiais que compensam um grande vazio institucional. Os seres humanos que «passaram da morte para a vida, da humilhação para a dignidade, da tristeza para a alegria», assim os definiu o cardeal Parolin, que durante o encontro distribuiu carícias e bênçãos, recebendo em troca canções de ação de graças e um colar de rosas roxas, um típico presente indiano colocado à volta do seu pescoço pelas Missionárias da Caridade. Elas e as representantes de outras congregações revezaram-se ao microfone para contar as suas histórias de serviço. Começaram as Filhas de São José de Genoni, congregação hospitalar fundada em 1888 na Sardenha, que relataram o seu compromisso com as crianças geralmente conhecidas como “meninos de rua”, a quem preferem chamar “filhos de Deus”. As religiosas procuram-nas nas ruas poeirentas de Kinshasa, com as crianças abandonadas que dormem debaixo de árvores ou nos passeios. Os mesmos em que vagueiam os sorceleurs, acusados de ser feiticeiros e, portanto, rejeitados pelos seus familiares. São recolhidos pelas irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, que fundaram o Centro Telema, para evitar que acabem por comer do lixo ou ser expostas a violência física e ao abuso sexual. Como aconteceu com Joséphine, que após um esgotamento acabou por viver nas ruas, sem se lavar durante anos, vestindo roupas rasgadas, alimentando-se nos caixotes de lixo. Uma religiosa trouxe-a a Telema e um mês depois «foi-lhe restituído o sorriso, a dignidade». Agora dirige uma pequena empresa. Uma história de redenção e renascimento, como as contadas ao cardeal pelas irmãs dos Pobres que recordaram as religiosas que morreram de ébola em Kikwit, onde tinham ido para servir os doentes. Na Nunciatura acompanhavam “um casal de avós”, pessoas idosas cuidadas nas suas casas perto do aeroporto: «Hoje são todos postos de lado. Entre nós são bem-vindos como familiares». As Missionárias da Caridade apresentaram ao cardeal alguns jovens encontrados na rua, quando eram adolescentes, cobertos de feridas, ou quando eram bebés em caixas de papelão. A Comunidade de Santo Egídio ilustrou o seu projeto Dream graças ao qual mais de 1.700 pessoas que sofrem de Sida, mas também de malnutrição, hipertensão, diabetes, malária e tuberculose são tratadas gratuitamente. A todas estas pessoas, tomando a palavra com emoção visível, Parolin assegurou: «Levarei certamente os vossos nomes e rostos ao Papa Francisco, pedindo-lhe que se recorde de vós nas suas orações». «A Igreja universal agradece-vos e encoraja-vos a perseverar nas vossas obras, até à custa de dificuldades e aparentes falhas», acrescentou o cardeal. «Na vossa vida diária, experimentais como o amor, quando é distribuído, não se divide nem se esgota, mas multiplica-se e cresce».

O encontro na Nunciatura foi o penúltimo da viagem à República Democrática do Congo do secretário de Estado, que a 4 de julho se transferiu para Juba, Sudão do Sul. Na manhã de 3 de julho, o cardeal presidiu à «celebração pela paz e a reconciliação na República Democrática do Congo», a Missa solene a que assistiram mais de 100.000 fiéis reunidos na esplanada do Parlamento em Kinshasa, sob um céu de chumbo onde o cheiro do incenso era de tão forte que dominou o cheiro de cinza que permeia toda a cidade.

No mesmo lugar onde João Paulo II celebrou em 1980 e 1985, quase contemporaneamente com a missa do Papa em São Pedro com a comunidade congolesa em Roma, Parolin chegou no meio de aplausos e “zaghroutah”, o grito típico das mulheres locais, enquanto um coro cujos membros em túnicas brancas e amarelas cantavam canções com tambores, bateria e guitarra elétrica, movendo os quadris e os braços, e grupos de meninas da primeira Comunhão dançavam incessantemente. Foi um ambiente festivo que trouxe de volta a cor a uma cidade tornada cinzenta por uma manta perene de poluição, humidade e fumaça das barracas de rua, onde os jovens, quando não vagueiam pelas ruas ou a apoiar-se nas paredes descascadas dos mercados alimentares e outros estabelecimentos, assam salsichas e espigar de milho. É uma imagem que pode ser vislumbrada em cada canto desta “grande periferia” que é Kinshasa, onde o trânsito, com camiões amarelos e motocicletas com até quatro pessoas, é capaz de bloquear-se até por duas horas.

O som distante das buzinas dos carros foi o pano de fundo da missa presidida pelo cardeal, quando no momento da homilia — em francês, intercalado com algumas frases em bantu — o precedente som vibrante dos hinos transformou-se em silêncio. Um silêncio obsequioso perante o apelo do secretário de Estado que, do palco vermelho onde se encontrava uma imagem de Nossa Senhora, denunciou o que hoje impede a paz no país: «A ganância pelas matérias-primas, a sede de dinheiro e de poder». Estes são «um ataque ao direito das pessoas à vida e à serenidade... Paz a esta casa! Paz à terra congolesa: que volte a ser uma casa de fraternidade», exclamou o purpurado, olhando para os rostos de um povo oprimido pela pobreza, desemprego, interesses predatórios e, nas regiões orientais, pela violência feroz dos grupos armados.

O cardeal pediu a todos para não «desistir perante a realidade, para não se fechar numa resignação fatalista e assim, talvez sem se aperceber, fugir das suas responsabilidades, caindo numa espécie de vitimização, deixando aos outros o fardo de arregaçar as mangas e o esforço de reconstrução». Ao mesmo tempo, dirigindo o olhar para o Oriente, o cardeal Parolin invocou «Paix, paz!», apelando aos cristãos, que é «a grande maioria da população», e a todos os líderes a trabalhar pela estabilidade «neste grande país, abençoado pela beleza da criação, mas sobretudo pela riqueza das almas que o povoam».

Em nome do Papa Francisco — cuja mensagem vídeo às populações da República Democrática do Congo e do Sudão Sul foi projetada nos ecrãs gigantes antes da celebração — o cardeal deixou uma mensagem de esperança: «Não desanimeis. Somos filhos da ressurreição!».

E ainda em nome do Papa, o cardeal apresentou-se a uma representação de fiéis congoleses, com quem se encontrou nas primeiras horas de sábado 2 de julho no pátio da sede da Cenco (Conferência episcopal da República Democrática do Congo). Acolhido por um hino em francês «Unis par la joie de sa présence... Unidos pela alegria da sua presença», o cardeal sob um cartaz de “Bienvenue”, pediu orações para que, assim que as condições o permitirem, o Papa possa realizar esta tão desejada viagem. Uma promessa que o cardeal fez como certeza: «Não venho para substituir o Santo Padre, disse, mas para antecipar a sua vinda entre vós».

do enviado
Salvatore Cernuzio