Publicamos o posfácio do Papa Francisco para o livro “La tessitura del mondo. Dialogo a più voci con i grandi protagonisti della cultura sul racconto” [A tecelagem do mundo. Diálogo a muitas vozes com os grandes protagonistas da cultura sobre a narração] publicado pela Lev e Salani. Editado por Andrea Monda, o volume reúne as vozes de grandes protagonistas da cultura sobre o tema crucial da narração porque — como escreve o Papa Francisco — «na confusão de vozes e mensagens que nos rodeiam, precisamos de uma narrativa humana, que fale de nós e da beleza que nos habita. Uma narração que saiba olhar para o mundo e para os acontecimentos com ternura».
«As histórias que contamos, recontamos e transmitimos uns aos outros são tendas sob as quais nos reunimos, estandartes a seguir em batalha, cordas indestrutíveis para ligar os vivos e os mortos, e a trama destas vastas teias ao longo dos séculos e culturas ligam-nos fortemente uns aos outros e à história, guiando-nos através das gerações». Assim escreve Donna Tartt depois de ter lido este volume que reúne as reflexões de 44 entre escritores, artistas, teólogos e jornalistas sobre o tema da narração. A romancista norte-americana compreende perfeitamente um dos pontos em que muitos dos autores deste livro convergem: o conto como um “tecido”, feito de “cordas indestrutíveis” que conecta tudo e todos, presente e passado, e permite que nos abramos ao futuro com sentimentos de confiança e esperança.
Este aspeto do textum (em latim para indicar tecido, em italiano testo [em português texto]) estava no centro da minha Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais para o ano de 2020, que foi como a centelha que gerou todas as outras reflexões aqui reunidas. Com efeito, de fevereiro a outubro de 2020 estes textos “provocados” pela leitura daquela minha Mensagem foram publicados nas páginas de L’Osservatore Romano. Foi-me então pedido para acrescentar uma conclusão no final desta rica e bela série que já tinha lido com grande prazer à medida que se desenrolava ao longo dos meses. Então aceitei com prazer, contanto que não seja considerado “final”, em parte porque, como diz Frodo, o protagonista de O Senhor dos Anéis de Tolkien, «os contos nunca acabam», e também porque um aspeto muito bonito deste livro é precisamente o sentido de abertura, de circularidade e de diálogo.
Antes de voltar ao tema do “conteúdo”, gostaria de me deter brevemente no “método” deste volume: no início há uma mensagem que é lançada; esta mensagem é partilhada e oferecida à atenção de várias pessoas que se deixam interpelar e enriquecem aquela mensagem com a própria contribuição; o autor da mensagem lê todas estas contribuições e relança uma nova reflexão mais rica do que a inicial, graças à contribuição de todos; por fim, o leitor deste livro entrará dentro deste diálogo e prossegui-lo-á na sua vida quotidiana. Eis as “tendas sob as quais se reunir” de que Donna Tartt fala, eis o entrelaçamento que “nos une fortemente uns aos outros” também através das gerações.
Tudo isto diz muito. E diz em particular que nas histórias o que importa é obviamente o dizer, mas talvez ainda mais o ouvir. Este livro é o relato de um diálogo que não termina na última página e, enquanto diálogo, tem o seu coração na escuta. Também silenciosa. Nestas páginas sobre a narração, a presença do silêncio é sentida fortemente. Deste ponto de vista, é importante que haja também um ensaio, refiro-me ao texto “Tu parli anche quando taci” [Tu falas também quando ficas em silêncio] de Massimo Grilli, dedicado diretamente ao silêncio. Quase um contraponto, um contracanto, tão essencial como o tema principal interpretado pelo resto da orquestra. Palavra e silêncio, juntos.
E aqui quero voltar aos aspetos de conteúdo para evidenciar, entre os muitos possíveis (a coletânea é bela precisamente devido à liberdade e à variedade de abordagens e pontos de vista), três temas que me parecem ser os mais recorrentes: o primeiro já sublinhei, a narração de histórias como “tecer”; o segundo está escondido dentro da menção do silêncio, e é o tema do “mistério”; o terceiro é o tema da “compaixão”.
No primeiro, como já disse, o tecer, é talvez o aspeto em que a maioria dos autores se concentra, alguns salientando o papel das mulheres, como Marcelo Figueroa, outros destacando a “maleabilidade” da tecelagem das histórias «capaz de concentrar em si situações sempre novas e novos destinatários» (J. P. Sonnet), outros como Antonella Lumini refletiram sobre a consistência “magmática” das histórias que contudo “subsistem”, possuem uma “propriedade” e uma tendência, «como as águas na nascente de um rio que depois correm para o mar».
O tema do mistério, declinado como sentido do limite, mas também como “magia” que intervém no momento da inspiração poética, está presente desde o primeiro texto, o do arquiteto Renzo Piano, para quem «nós, seres humanos, estamos todos unidos por esta consciência de um mistério que nos sobrevoa, nos supera. Isto também tem a ver com poesia». «Aquilo que não sei, sei cantá-lo» diz uma canção do cantor-compositor romano Francesco De Gregori entrevistado na coletânea, e os artistas, acrescenta Judith Thurman, com profunda intuição, «devem escrever não tanto sobre o que sabem, quanto sobre o que não sabiam que sabem até quando não o resgataram da obscuridade».
O sentido do mistério abre ao transcendente, a uma dimensão inconfundivelmente espiritual, religiosa. Donna Tartt observa que «talvez mais propriamente, as histórias são lonas para velas que içamos a fim de capturar um respiro do divino. Os pensamentos de outras pessoas adquirem uma vida estranha em nós, razão pela qual a literatura é a arte mais espiritual de todas e certamente a mais transformadora. Como nenhuma outra forma de comunicar, uma história pode mudar a nossa maneira de pensar, no bem ou no mal [...] as culturas antigas e modernas sempre consideraram as histórias mágicas — e perigosas — por uma razão: porque se pode ouvir uma história e, no seu final, ser uma pessoa totalmente diferente».
E isto leva ao terceiro aspeto, a compaixão, também presente em vários textos recolhidos no volume. Em particular, a escritora Marylinne Robinson, recordando as histórias e canções que a sua mãe costumava ler-lhe, reflete sobre a compaixão, que no seu sentido mais amplo segundo ela é «na vida da alma, equivalente humano da graça divina» e acrescenta mais adiante: «a história mostra como as narrações são importantes para as comunidades». Assim a literatura está ligada à compaixão e isto leva à transformação que ocorre em cada experiência de escrita e leitura, e acontece de forma ambígua, ambivalente e, portanto, arriscada: contar histórias também pode desencadear uma força negativa, manipuladora e destrutiva.
A compaixão, como frequentemente repito nos meus discursos, é uma das três caraterísticas do estilo de Deus, juntamente com a proximidade e a ternura. É uma força poderosa, e não pode ser reduzida apenas a um aspeto interior, íntimo, porque tem também uma dimensão evidentemente pública, social, motivo pelo qual a história se revela como uma força de memória, por conseguinte, guardiã do passado, mas também, precisamente por esta razão, um fermento de transformação para o futuro. A compaixão encontra o seu ícone mais representativo na figura do Bom Samaritano narrada no capítulo 10 do Evangelho de Lucas. Aquele homem tem compaixão pelo ferido e oferece-lhe não só cuidados e cura, mas com eles outro relato da sua vida que com o seu gesto “redimiu das trevas”. A compaixão transforma a vida dos dois protagonistas, e isto aplica-se a cada pessoa e a cada comunidade.
Esta dimensão, podemos dizer “política” da narrativa está também muito presente nos 44 textos do livro. Estou a pensar na reflexão de Alessandro Zaccuri que fala de Jesus como um “Messias narrador”, aparentemente desarmado, mas na realidade dotado da poderosa arma da narração. Assim o romancista irlandês Collum McCann vê a narração como «um dos meios mais poderosos que temos para mudar o nosso mundo. [...] A narração é a nossa grande democracia. É aquilo a que todos nós temos acesso. Contamos as nossas histórias porque precisamos de ser ouvidos. E nós ouvimos histórias porque precisamos de pertencer. A narração transcende as fronteiras. Supera os confins. Despedaça estereótipos. E dá-nos acesso à floração total do coração humano». Aquilo ao que McCann alude é a conclusão a que Daniel Mendelsohn chega quando afirma que «a palavra é uma ponte [...] através da narração de histórias podemos reduzir a distância que nos separa e penso que isto hoje é necessário como nunca». Mendelsohn refere-se à época em que estes textos foram escritos, a sua contribuição é de abril de 2020, e aponta para uma referência literária exata: Decameron de Boccaccio, ambientado numa época de peste. Também este livro, com os seus 44 textos, foi composto numa época de pandemia, e sente-se a importância, a urgência de regressar à atividade mais antiga e humana: a arte de contar histórias, ou seja, de construir pontes que possam «interligar os vivos e os mortos» para nos guiar, através dos séculos e das gerações, rumo a um futuro a construir, a tecer, juntos.