O Pontífice aos participantes num congresso internacional realizado na Gregoriana

Uma teologia atenta às famílias provadas e feridas

 Uma teologia atenta às famílias provadas e feridas  POR-021
24 maio 2022

«É necessária uma reflexão teológica» que esteja «atenta às feridas da humanidade», em particular às da família «hoje mais provada do que nunca», disse o Papa aos participantes no Congresso internacional de Teologia moral promovido pela Pontifícia Universidade Gregoriana e pelo Pontifício instituto teológico João Paulo ii para as Ciências do matrimónio e da família, recebidos em audiência a 13 de maio na Sala Clementina.

Estimados irmãos e irmãs
bom dia e bem-vindos!

Agradeço ao Padre da Silva Gonçalves as suas palavras de apresentação; saúdo o Cardeal Farrell, D. Paglia e D. Bordeyne, com todos aqueles que colaboraram para este Congresso, e todos vós que nele participastes. A iniciativa tem lugar no contexto do Ano da “Família Amoris laetitia”, convocado para estimular a compreensão da Exortação Apostólica e para ajudar a orientar as práticas pastorais da Igreja, que quer ser cada vez mais sinodal e missionária.

A Amoris laetitia recolhe os frutos das duas Assembleias sinodais sobre a família: a Extraordinária de 2014 e a Ordinária de 2015. Frutos que amadureceram na escuta do Povo de Deus, constituído em grande parte pelas famílias, que são o primeiro lugar onde viver a fé em Jesus Cristo e o amor recíproco.

Portanto, é bom que a teologia moral se inspire na rica espiritualidade que germina na família. A família é a igreja doméstica (cf. Lumen gentium, 11; Amoris laetitia, 67); nela, cônjuges e filhos são chamados a cooperar na vivência do mistério de Cristo, através da oração e do amor implementado na realidade da vida quotidiana e das situações, no cuidado recíproco capaz de acompanhar de maneira que ninguém seja excluído nem abandonado. «Não esqueçamos que, através do Sacramento do Matrimónio, Jesus está presente neste barco, o barco da família».1

A vida familiar, porém, é hoje mais provada do que nunca. Em primeiro lugar, desde há algum tempo «a família atravessa uma profunda crise cultural, como todas as comunidades e vínculos sociais» (Evangelii gaudium, 66). Além disso, muitas famílias sofrem por falta de trabalho, de habitação digna, ou de terra onde poder viver em paz, numa época de grandes e rápidas mudanças. Estas dificuldades repercutem-se na vida familiar, gerando problemas relacionais. Há muitas «situações difíceis e famílias feridas» (Amoris laetitia, 79). A própria possibilidade de constituir uma família hoje é muitas vezes árdua, e os jovens têm muita dificuldade em casar e ter filhos. Com efeito, as mudanças epocais que vivemos provocam a teologia moral a enfrentar os desafios do nosso tempo e a falar uma linguagem que seja compreensível para os interlocutores — não apenas aos “responsáveis pelos trabalhos” — e assim ajudar a «superar adversidades e contrastes» e fomentar «uma nova criatividade para expressar nos desafios de hoje os valores que nos constituem como povo na sociedade e na Igreja, Povo de Deus».2 Friso: nova criatividade.

A este respeito, a família desempenha hoje um papel decisivo «nos caminhos da “conversão pastoral” das nossas comunidades e da “transformação missionária da Igreja”». Para que isto aconteça, é necessária uma reflexão teológica — “também a nível académico” — que esteja verdadeiramente atenta «às feridas da humanidade».3 Neste sentido, é importante que a Universidade Gregoriana e o Instituto João Paulo ii , em conjunto, tenham organizado este evento, com a participação de teólogas e teólogos de quatro continentes. Leigos, clérigos e religiosos, de diferentes línguas e culturas, participarão e trocarão pontos de vista num diálogo entre gerações que está igualmente aberto aos jovens pesquisadores.

De modo especial, a este respeito, gostaria de recordar a necessidade da inter e da transdisciplinaridade, já dentro da teologia, bem como entre teologia, ciências humanas e filosofia. Este método só pode favorecer o aprofundamento das reflexões teológicas sobre o matrimónio e a família. Poderá mostrar a ligação recíproca entre a reflexão eclesiológica e sacramental e os ritos litúrgicos, entre estes e as práticas pastorais, entre as grandes questões antropológicas e as morais relacionadas com a aliança conjugal, a geração e a complexa rede de relações familiares. Com efeito, as diferentes abordagens teológicas não devem ser simplesmente aproximadas ou justapostas, mas levadas ao diálogo para que se instruam mutuamente, de forma sinfónica e coral, ao serviço do único grande objetivo, sintetizado nesta pergunta: como podem as famílias cristãs de hoje, na alegria e nas fadigas do amor conjugal, filial e fraterno, dar testemunho da boa nova do Evangelho de Jesus Cristo?

A Igreja, no seu caminho sinodal, constrói-se na escuta recíproca entre aqueles que constituem o Povo de Deus. Neste caso, «como seria possível falar da família sem questionar as famílias, ouvindo as suas alegrias e esperanças, as suas tristezas e ansiedades?».4 Precisamente por este motivo, sobressai uma necessidade viva de diálogo: certamente não como «mera atitude tática», mas como «exigência intrínseca de ter uma experiência comunitária da alegria da Verdade e de aprofundar o seu significado e implicações práticas» (Veritatis gaudium, 4c). O método dialógico pede-nos para superar uma ideia abstrata da verdade, separada da experiência vivida de pessoas, culturas e religiões. A verdade da Revelação dirige-se na história — é histórica! — aos seus destinatários, que são chamados a implementá-la na “carne” do seu testemunho. Quanta riqueza de bem existe na vida de tantas famílias, em todo o mundo! O dom do Evangelho, além do Doador, pressupõe um destinatário que deve ser levado a sério, que deve ser ouvido.

O matrimónio e a família podem constituir um “kairós” para a teologia moral, para repensar as categorias interpretativas da experiência moral à luz do que acontece na esfera da família. Deve ser estabelecida uma circularidade virtuosa entre a teologia e a ação pastoral. A prática pastoral não pode ser deduzida de princípios teológicos abstratos, como a reflexão teológica não se pode limitar a reiterar a prática. Quantas vezes o matrimónio é apresentado «como um fardo a ser suportado durante toda a vida» e não «como um caminho dinâmico de crescimento e realização» (Amoris laetitia, 37). Isto não quer dizer que a moralidade evangélica renuncia a proclamar o dom de Deus, do qual fluem tarefa e dedicação. A teologia tem uma função crítica, uma inteligência de fé, mas a sua reflexão parte da experiência viva e do sensus fidei fidelium. Só deste modo a inteligência teológica da fé desempenha o seu necessário serviço à Igreja.

E precisamente por esta razão, a prática do discernimento torna-se necessária como nunca, abrindo espaço «à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio das suas limitações e podem realizar o próprio discernimento pessoal face a situações em que todos os padrões se rompem» (ibidem).

Estimados irmãos e irmãs, no centro do nosso compromisso, como pastores e teólogos, está o reconhecimento da relação inseparável, apesar dos dramas e das fadigas da vida, entre a consciência e o bem. A moral evangélica está tão longe do moralismo, que faz da observância literal das normas a garantia da justiça perante Deus, como do idealismo que, em nome de um bem ideal, desencoraja e afasta do bem possível (cf. Amoris laetitia, 308; Evangelii gaudium, 44). No centro da vida cristã está a graça do Espírito Santo, recebida na fé viva, que provoca atos de caridade. Por conseguinte, a bondade é um apelo, é uma “voz”5 que liberta e suscita as consciências, como diz o texto da Gaudium et spes: «No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer. [...] A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser» (n. 16).

A todos vós pede-se que reconsidereis hoje as categorias da teologia moral, na sua relação recíproca: a relação entre a graça e a liberdade, entre a consciência, o bem, as virtudes, a norma e a phrónesis aristotélica, a prudentia tomista e o discernimento espiritual, a relação entre natureza e cultura, entre a pluralidade das línguas e a unicidade do ágape. Sobre este último aspeto, em particular, gostaria de salientar que a diferença de culturas é uma oportunidade preciosa que nos ajuda a compreender ainda mais quanto o Evangelho pode enriquecer e purificar a experiência moral da humanidade, na sua pluralidade cultural.

Desta forma ajudaremos as famílias a redescobrir o significado do amor, uma palavra que hoje «muitas vezes aparece desfigurada» (Amoris laetitia, 89): porque o amor «não é apenas um sentimento», mas a escolha na qual cada pessoa decide «“fazer o bem” [...] de forma superabundante, sem medir, sem exigir recompensas, apenas para dar e servir» (ibid., 94). A experiência concreta das famílias é uma escola extraordinária de vida boa. Por conseguinte, convido-vos, teólogas e teólogos morais, a continuardes o vosso trabalho rigoroso e valioso com fidelidade criativa ao Evangelho e à experiência dos homens e mulheres do nosso tempo, particularmente a experiência viva dos crentes. O sensus fidei fidelium, na pluralidade das culturas, enriquece a Igreja, para que hoje seja um sinal da misericórdia de Deus, que não se cansa de nós. Nesta perspetiva, as suas reflexões enquadram-se muito bem no atual processo sinodal: este Congresso internacional faz plenamente parte dele e pode oferecer a própria contribuição original.

Gostaria de acrescentar um aspeto, que tanto prejudica a Igreja neste momento: é como um “voltar para trás”, seja por medo, falta de genialidade ou falta de coragem. É verdade que nós teólogos, também cristãos, temos de voltar às raízes. Sem as raízes, não podemos dar um passo em frente. A partir das raízes inspiramo-nos, mas para seguir em frente. Isto é diferente de voltar para trás. Voltar para trás não é cristão. Com efeito, se não me engano é o autor da Carta aos Hebreus que diz: “Não somos pessoas que voltam para trás”. O cristão não pode voltar para trás. Para voltar às raízes sim, para se inspirar, para continuar. Voltar para trás é regressar para ter uma defesa, uma segurança para evitar o risco de avançar, o risco cristão de carregar a fé, o risco cristão de percorrer o caminho com Jesus Cristo. E isto é um risco. Hoje, vê-se este voltar para trás em muitas figuras eclesiásticas — não eclesiais, eclesiásticas — que nascem como cogumelos, aqui, ali, e se apresentam como propostas para a vida cristã. Na teologia moral há também um voltar para trás com propostas casuísticas, e a casuística que eu pensava estar enterrada a sete metros, ressuscita como uma proposta — um pouco disfarçada — de “até aqui pode, até aqui não pode, aqui sim, aqui não”. E reduzir a teologia moral à casuística é o pecado de voltar para trás. A casuística foi superada. A casuística foi o meu alimento e da minha geração no estudo da teologia moral. Mas é própria do tomismo decadente. O verdadeiro tomismo é o da Amoris laetitia, aquele que ali se realiza, bem explicado no Sínodo e aceite por todos. É a doutrina viva de S. Tomás, que nos faz avançar arriscando, mas em obediência. E isto não é fácil. Por favor, estai atentos a este voltar para trás que é uma tentação atual, também para vós, teólogos da teologia moral.

Que a alegria do amor, que encontra um testemunho exemplar na família, se torne um sinal eficaz da alegria de Deus, que é misericórdia, e da alegria daqueles que recebem esta misericórdia como um dom. Alegria! Obrigado, e por favor não vos esqueçais de rezar por mim, pois preciso disso. Obrigado!

1 Carta aos casais por ocasião do Ano da Família “Amoris laetitia” (26 de dezembro de 2021).

2 Ibid.

3 Carta Ap. Motu Proprio “Summa familiae cura” que funda o Pontifício Instituto Teológico João Paulo ii para as Ciências do Matrimónio e da Família (19 de setembro de 2017).

4 Discurso no cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos (17 de outubro de 2015).

5 «Que a tua consciência, que é a voz de Deus, te dê testemunho» (Santo Agostinho, In Epistolam Ioannis ad Parthos tractatus, 6, 3).