Acreditar

 Acreditar  POR-019
10 maio 2022

Embora a prática da fé se encontre «periodicamente sob pressão, até violenta» por quantos «procuram degradá-la, tratando-a como um achado arqueológico», acreditar não é «algo para velhos», observou o Papa Francisco na audiência geral de quarta-feira 4 de maio, na praça de São Pedro, continuando as catequeses sobre o valor da velhice. A reflexão do Pontífice foi inspirada pela figura bíblica de Eleazar, com noventa anos, modelo de coerência contra as tentações da hipocrisia em tempos de perseguição e, portanto, testemunha capaz de falar sobretudo aos jovens.

Estimados irmãos e irmãs
bom dia!

No caminho destas catequeses sobre a velhice, encontramos hoje um personagem bíblico — um idoso — chamado Eleazar, que viveu na época da perseguição de Antíoco Epifânio. É uma bonita figura. A sua figura oferece-nos um testemunho da relação especial que existe entre a fidelidade da velhice e a honra da fé. Ele é orgulhoso! Gostaria de falar precisamente da honra da fé, não apenas da coerência, do anúncio e da resistência da fé. A honra da fé encontra-se periodicamente sob pressão, até violenta, da cultura dos dominadores, que procura degradá-la, tratando-a como um achado arqueológico, ou uma velha superstição, um capricho anacrónico e assim por diante.

A narração bíblica — ouvimos um pequeno excerto dela, mas é bom lê-la toda — conta o episódio dos judeus forçados por decreto de um rei a comer carne sacrificada a ídolos. Quando chega a vez de Eleazar, que era um idoso, 90 anos, muito estimado por todos e influente, os oficiais do rei aconselharam-no a fazer uma simulação, ou seja, fingir que comia carne sem realmente o fazer. Hipocrisia religiosa, há tanta hipocrisia religiosa, hipocrisia clerical. Dizem-lhe: “Mas sê um pouco hipócrita, ninguém se aperceberá”. Desta forma Eleazar seria salvo, e — disseram — em nome da amizade aceitaria o seu gesto de compaixão e afeto. Afinal — insistiam — tratava-se de um gesto mínimo, fingir que se come, mas não comer, um gesto insignificante.

É pouco, mas a resposta calma e firme de Eleazar baseia-se num argumento que nos impressiona. O ponto central é este: desonrar a fé na velhice, para ganhar um punhado de dias, não pode ser comparado com a herança que deve deixar aos jovens, a inteiras gerações vindouras. Que boa pessoa Eleazar! Um idoso que viveu na coerência da própria fé durante toda a vida, e agora se adapta a fingir que a repudia, condena a nova geração a pensar que toda a fé tenha sido uma farsa, uma cobertura exterior que pode ser abandonada, pensando que pode ser preservada no próprio íntimo. Não é bem assim, diz Eleazar. Tal comportamento não honra a fé, nem sequer perante Deus. E o efeito desta banalização externa será devastador para a interioridade dos jovens. A coerência deste homem que pensa nos jovens, pensa na herança futura, pensa no seu povo!

Precisamente a velhice — e isto é bom para os idosos — aparece aqui como o lugar decisivo, o lugar insubstituível para este testemunho. Um idoso que, devido à sua vulnerabilidade, aceitasse considerar irrelevante a prática da fé, faria com que os jovens acreditassem que a fé não tem alguma relação real com a vida. Parecer-lhes-ia, desde o seu início, como um conjunto de comportamentos que, se necessário, podem ser simulados ou dissimulados, porque nenhum deles é muito importante para a vida.

A antiga gnose heterodoxa, que foi uma armadilha muito poderosa e muito sedutora para o cristianismo dos primeiros séculos, teorizava precisamente sobre isto, esta é uma coisa antiga: que a fé é uma espiritualidade, não uma prática; uma força da mente, não uma forma de vida. Fidelidade e honra de fé, segundo esta heresia, nada têm a ver com os comportamentos da vida, as instituições da comunidade, os símbolos do corpo. A sedução desta perspetiva é forte, porque interpreta, à sua maneira, uma verdade indiscutível: que a fé nunca pode ser reduzida a um conjunto de regras alimentares ou de práticas sociais. A fé é outra coisa. O problema é que a radicalização gnóstica desta verdade anula o realismo da fé cristã, pois a fé cristã é realista, a fé cristã não é só recitar o Credo, mas é pensar no Credo, é sentir o Credo, é fazer o Credo. Agir com as mãos. Ao contrário, esta proposta gnóstica é um “fazer de contas”, o importante é que tu dentro tenhas a espiritualidade e depois podes fazer o que quiseres. Isto não é cristão. É a primeira heresia dos gnósticos, que está muito na moda aqui, neste momento, em tantos centros de espiritualidade e assim por diante. E esvazia o testemunho destas pessoas, que mostra os sinais concretos de Deus na vida da comunidade e resiste às perversões da mente através dos gestos do corpo.

A tentação gnóstica, que é uma das — digamos a palavra — heresias, um dos desvios religiosos deste tempo, a tentação gnóstica permanece sempre atual. Em muitas tendências da nossa sociedade e cultura, a prática da fé sofre uma representação negativa, por vezes sob forma de ironia cultural, por vezes com uma oculta marginalização. A prática da fé para estes gnósticos que já existiam no tempo de Jesus, é considerada como uma exterioridade inútil e até prejudicial, como um resíduo antiquado, como uma superstição disfarçada. Em suma, algo para idosos. A pressão que esta crítica indiscriminada exerce sobre as gerações mais jovens é forte. Certamente, sabemos que a prática da fé pode tornar-se uma exterioridade sem alma — este é outro perigo, o contrário — mas em si mesma não o é absolutamente. Talvez caiba precisamente a nós, idosos, uma missão muito importante: restituir à fé a sua honra, fazê-la coerente como o testemunho de Eleazar, a coerência até ao fim. A prática da fé não é o símbolo da nossa fraqueza, mas sim o sinal da sua força. Já não somos jovens. Não estávamos a brincar quando nos pusemos no caminho do Senhor!

A fé merece respeito e honra até ao fim: mudou a nossa vida, purificou a nossa mente, ensinou-nos a adoração a Deus e o amor ao próximo. É uma bênção para todos! Mas toda a fé, não uma parte. Não negociaremos a fé por um punhado de dias tranquilos, mas faremos como Eleazar, coerente até ao fim, até ao martírio. Demonstraremos, com toda a humildade e firmeza, precisamente na nossa velhice, que acreditar não é algo “para idosos”, mas é questão de vida. Crer no Espírito Santo, que renova todas as coisas, e Ele ajudar-nos-á de bom grado.

Queridos irmãos e irmãs idosos, para não dizer velhos — estamos no mesmo grupo — por favor, olhemos para os jovens. Eles olham para nós, não nos esqueçamos disto. Vem-me à mente aquele filme do pós-guerra tão bonito: “I bambini ci guardano” [A culpa dos pais]. Podemos dizer o mesmo com os jovens: eles olham para nós e a nossa coerência pode abrir-lhes um caminho de vida belíssimo. Ao contrário, uma eventual hipocrisia fará muito mal. Rezemos uns pelos outros. Que Deus abençoe todos nós idosos!

Após a catequese o Papa saudou os grupos de fiéis presentes, exortando-os a rezar a Nossa Senhora, no mês mariano, pela paz na Europa. Aos lusófonos dirigiu as seguintes palavras.

Queridos fiéis de língua portuguesa, saúdo-vos a todos e de modo particular aos alunos e professores do Colégio Horizonte, do Porto. Começamos há pouco o mês de maio, que tradicionalmente chama o povo cristão a multiplicar os gestos diários de veneração à Virgem Maria. O segredo da sua paz e coragem era esta certeza: «A Deus, nada é impossível». Precisamos de aprender isto com a Mãe de Deus; mostremo-nos agradecidos, rezando o terço todos os dias. Que Deus vos abençoe e Nossa Senhora vos proteja!